segunda-feira, 29 de agosto de 2011

os zerossexuais (parte 1)


            A campainha soa. Péim, péim, péeeim...
            Um toque apressado, impertinente, quase irritado de sem paciência. Quem seria a uma desora destas? A Mulher não está esperando ninguém.
            Pensa no que a avó lhe dizia: “Pra quê essa mania de independência? Pode isso?, ficar enfiada nesse apartamento num sábado à noite... acha que o príncipe encantado vai bater na sua porta?”
            Levanta-se do sofá, vai até à entrada. Abre a porta.
            Antes de completar o gesto, enquanto gira a maçaneta, vem o pânico: ninguém tinha sido anunciado pelo interfone do condomínio. Mas já não consegue interromper o movimento.
            Um homem, desconhecido.
            Que lhe estende um arranjo de flores amarrado com fita, de onde pende um pequeno envelope grampeado ao embrulho. O olhar dela escaneia rapidamente a figura do sujeito procurando adivinhar onde poderia estar escondida uma arma.
            ― Bem, se é só a entrega...
            ― Hãm, meu nome é Alfredo. Sei que você não perguntou, nem pediu para me ver, mas acho que é mais adequado começarmos assim.
            ― Começarmos... começar o quê, cara-pálida? E como é que a portaria deixou você subir sem me avisar, heim, Alberto?
            ― Alfredo. Mostrei o bilhete e eles entenderam, aliás, não vai ler?
            A Mulher permanecia em guarda na soleira, mantinha o lado esquerdo do corpo semi-oculto pela folha da porta. Não se dignava pegar as flores que o outro se esforçava por lhe entregar.
            Alfredo atura cada uma das questões e objeções com uma serenidade tão desabituada que ela não consegue deixar de se impressionar com o rapaz.
            A Mulher, finalmente, lê o cartão.
            Empalidece. O rosto dele se ilumina de expectativas. Um silêncio cavo constrange ambos no hall do elevador.
            ― Isto é uma brincadeira, ou você é maluco? Com que direito você invade a minha privacidade... vem dizer que me ama, que, se eu lhe der chance, também vou lhe amar, e que, depois que a nossa relação nos transformar, tem medo de que me afaste de você?!...
            ― É, a minha fachada não impressiona, mas se você chegar a me conhecer...
            ― Como assim, lhe conhecer? E você, de onde me conhece, senhor perfeito desconhecido?
            ― Ah, isso!, bem, com tanta informação por aí, você sabe, hoje dá pra saber quase tudo sobre alguém antes de conhecer propriamente...
            E por aí foi.
            Ela foi também, mas não sem que antes lhe viesse à mente outra frase dos tempos do zagaia: “Se a Terra gira, então andamos todos tontos”.
            Deixou que ele se explicasse na sala de estar. Fez-lhe um café. E um drinque. Alfredo tinha dito a verdade, e ela foi se encantando conforme o conhecia; embora a chocasse tamanha facilidade em aceitar um estranho dentro de casa.
           

4 comentários:

Mery disse...

Taí, gostei desse jeito de contar uma pequena história que deu certo, pode ser, sim, perigoso, mas foi tão romântico... aqui onde moro não podemos nem pensar em abrir a porta a um desconhecido...Rio de Janeiro!
Beijos, Mery, já te sigo, visita-me, se puderes.

Dalva M. Ferreira disse...

Que bom!

filipe com i disse...

bem, caríssimas, ainda não acabou...

J Araújo disse...

Está um belo blog, vou segui-lo, gostei! Parabéns!

Abraço