domingo, 14 de agosto de 2011

a bárbara multiplicidade do maravilhoso terrível


Todos os meus cachorros se chamam Bingo.

Quero dizer todos os que vieram depois do Bingo, o primeiro, aquele que desapareceu no mesmo dia em que terminou a minha infância. Ainda não ia para a escola, mas começaria no ano seguinte; acabava de completar seis anos.

Quase sempre, em meus devaneios, me transporto para aquela casa, e é sempre a mesma sala onde derivo sozinho, perdido entre painéis de mogno; (estou sentado no chão escuro), os dedos entrelaçados ao brocado do sofá, oprimido pelo estofamento e o peso das cortinas.

Às vezes quedo-me pasmando durante minutos ou horas, tenho esse costume de ficar de cisma, espécie de meditação involuntária que termina numa pergunta inútil: “Será possível que não tenham percebido a ação da Bloqueadora?”

A escada do sobrado onde morávamos tinha um patamar onde a Bloqueadora se escondia para nos tocaiar. Surgia do nada e impedia a passagem de um lado: “Oh, me desculpe”; depois do outro, “Me desculpe novamente”.

“Desculpe, desculpe, desculpe outra vez”, ela prosseguia até o primeiro grito; então, desaparecia correndo, deixando um dos irmãos mais novos a chorar. Eu era o caçula, tinha menos sete anos que ela. O único ser vivo que me ligava ao mundo era um fox paulistinha com jeito de vira-lata.

Castigos físicos não a assustavam, como se a certeza de saber infligir mais do que recebia lhe pagasse com alguma forma de corretagem da dor. Descobriu que podia maximizar a minha angústia adiando a retaliação e, sobretudo, variando suas muitas, e para mim incompreensíveis, vinganças.

Viajamos nessa época com toda a família, duas semanas em Caxambu. O carro cheio, a casa trancada e a Bloqueadora com um sorriso petulante. O Bingo ia ficar com uma vizinha que não conhecia; acho que foi a última vez que rezei ainda acreditando.

Voltamos e o Bingo não voltou. Anos depois disso, mudamos para um apartamento em outro bairro. Mas aí já era outra pessoa. Lembro que odiei a escola, os colegas, o bairro, e tudo mais que veio em seguida desde então.

Foi também quando comecei a desejar que Deus morresse. Até porque Ele tinha visto tudo: a trama da minha irmã, a omissão conivente de mamãe, a paralisia do meu pai, os primeiros sinais do problema do meu irmão...

Mas o que o cão tinha a ver com tudo isso me escapava, como ainda escapa. Nas lições da catequese descreveram-me o pecado como um cravo na madeira mole da alma; a confissão é capaz de remover o cravo, mas não a marca deixada por ele.

Um comentário:

Dalva M. Ferreira disse...

O cão tem tudo a ver. O cão não tem nada a ver.