— Bem, a senhora entende, hoje em
dia é uma raridade surgir esse tipo de acidentes anestésicos... veja, o risco
cirúrgico nunca é zero. Foi uma reação anafilática bastante severa, com perda
pressórica importante e prolongada; tivemos muita dificuldade em reverter, o
que resultou em hipóxia dos tecidos, hãm, inclusive no cérebro, onde a
tomografia de urgência mostra lesões extensas...
— Doutor, porque ele está assim,
congelado?
— É uma técnica que temos usado
bastante, a crioterapia, retira-se o calor do corpo criando um estado de
hipotermia para favorecer uma redução da taxa metabólica local, promovendo uma
diminuição das necessidades de oxigênio nas células; com isto, reduzimos as
lesões teciduais. A sedação também tem este mesmo objetivo; o corpo do seu
marido está agora numa temperatura de 35 graus...
— Acha que ele pode voltar... normal
como antes?...
— É... neste momento, não posso
afirmar com certeza. Ainda estamos lutando pela vida dele.
— Será que ele... sente dor?
— Dificilmente estará sentindo
alguma coisa, a sedação é profunda.
Fui despertado por uma música
distante, quase inaudível. Um som regular, como a rebentação das ondas de um
mar sem nome, me fez recobrar os sentidos para cair dentro de outro cenário:
sem vento, nem mesmo o ruído das ondas; somente o luar banhando a terra. Fiquei
ali, escutando. O mais estranho é que a música parecia vir do alto dessa
montanha que não estava aí, dessa lua que, até há pouco, não estava lá, alta e
distraída do que acontece neste mundo sublunar e lunático.
A essa altura, eu estava totalmente
desperto. O ar da noite era agradável, estival, com uma profundidade
misteriosa. Apoiei as mãos nos quadris, estiquei o tronco e respirei fundo,
contemplando o céu estrelado. O frescor da noite me inundou, um brilho intenso pairava
sobre tudo, tornando fácil a caminhada. Já não duvidava que era a coisa certa a
fazer, escalar o topo daquela montanha. Vou até onde puder, decidi.
Sentia como se estivesse vivendo
dentro de um sonho, faltava o princípio que torna possível a escolha — ou
talvez a escolha, de tão inevitável, evidenciasse o princípio de liberdade que
faltava. Parei e me virei para trás. O luar criava sombras complexas entre os
rochedos, tingindo o solo com matizes inesperados; a encosta abaixo de mim descia
sinuosa e pálida como os rastos de uma cobra noturna.
Olhei para o céu, e relanceei os
olhos para a palma da minha mão — um lampejo de compreensão me atravessou o
cérebro: aquela não era mais a minha mão! Não havia explicação. Um olhar e, de
repente, eu soube: a minha mão não
era mais a minha mão, as minhas pernas não eram mais as minhas pernas. Banhado
pela luz branca, meu corpo, como um boneco de vodu, perdera todo o calor de organismo;
a centelha de vida tinha desaparecido. A minha vida real tinha adormecido em um
lugar remoto, e algum desconhecido a estava enfiando em uma mala, preparando-se
para partir.
Um calafrio horripilante me
atravessou e perdi o fôlego de um golpe. Alguém tinha reordenado as minhas
células, desatado os fios que mantinham a mente ligada ao esquema do corpo; não
conseguia raciocinar direito. Sobreveio um momento de pânico; tudo o que eu
sou, fui, ou podia ter sido se dissolvia sob o signo do terror, da anarquia e
do caos. Respirei fundo, pois sabia que afundava no mar da consciência, uma
água pesada que me arrastava para o fundo comprimindo meus tímpanos. Não queria
ver o negror, fechei meus olhos bem apertados e prendi a respiração,
resistindo.
Fui acostumando à pressão da água, à
falta de ar, à escuridão paralisante, ao desfalecimento — a situação me era familiar,
algo com que venho lutando repetidamente desde criança. O tempo se inverteu,
foi e voltou, desmoronou, tornou a reordenar-se; o mundo expandia-se
interminavelmente, imagens soltas da memória percorriam corredores sombrios,
como vagalumes, como almas à deriva. Por quanto tempo permaneci assim, não sei.
Quando voltei à tona, abri os olhos e respirei silenciosamente. A música tinha
cessado.
Levantei do chão (não lembrava de
ter caído) e prossegui a subida. Se tinha chegado até ali, podia muito bem
atingir o cume. Do alto da montanha, a lua parecia incrivelmente próxima; à
minha frente, uma escuridão sem bordas, atrás de mim, um mundo de luz gélida.
Deixei-me ficar ali, em terra estrangeira, no cimo de uma montanha banhada pelo
luar.
E aqui estou eu finalmente; sem
saber onde é "aqui", ou quem sou "eu", tendo apenas a
certeza do finalmente. Faz séculos que me procuro e não encontro, faz uma
porção de séculos desde que sou eu, desde que não sou eu; moro num quarto mudo
e sem paredes, e sou eu o mudo — e também sou a falta de paredes, a falta de
história deste eu e a incapacidade de seguir adiante. Vim buscar este silêncio
que é meu, a única coisa realmente minha, qualquer palavra não teria aqui
nenhum sentido; terra a bombordo e a estibordo: inatingíveis.
Talvez tudo tivesse sido
meticulosamente planejado, desde o começo. A minha mente, como um sopro de ar
quente, estremecia e desaparecia gradativamente.
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