quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Sul (parte final)




            — Bem, a senhora entende, hoje em dia é uma raridade surgir esse tipo de acidentes anestésicos... veja, o risco cirúrgico nunca é zero. Foi uma reação anafilática bastante severa, com perda pressórica importante e prolongada; tivemos muita dificuldade em reverter, o que resultou em hipóxia dos tecidos, hãm, inclusive no cérebro, onde a tomografia de urgência mostra lesões extensas...
            — Doutor, porque ele está assim, congelado?
            — É uma técnica que temos usado bastante, a crioterapia, retira-se o calor do corpo criando um estado de hipotermia para favorecer uma redução da taxa metabólica local, promovendo uma diminuição das necessidades de oxigênio nas células; com isto, reduzimos as lesões teciduais. A sedação também tem este mesmo objetivo; o corpo do seu marido está agora numa temperatura de 35 graus...
            — Acha que ele pode voltar... normal como antes?...
            — É... neste momento, não posso afirmar com certeza. Ainda estamos lutando pela vida dele.
            — Será que ele... sente dor?
            — Dificilmente estará sentindo alguma coisa, a sedação é profunda.


            Fui despertado por uma música distante, quase inaudível. Um som regular, como a rebentação das ondas de um mar sem nome, me fez recobrar os sentidos para cair dentro de outro cenário: sem vento, nem mesmo o ruído das ondas; somente o luar banhando a terra. Fiquei ali, escutando. O mais estranho é que a música parecia vir do alto dessa montanha que não estava aí, dessa lua que, até há pouco, não estava lá, alta e distraída do que acontece neste mundo sublunar e lunático.
            A essa altura, eu estava totalmente desperto. O ar da noite era agradável, estival, com uma profundidade misteriosa. Apoiei as mãos nos quadris, estiquei o tronco e respirei fundo, contemplando o céu estrelado. O frescor da noite me inundou, um brilho intenso pairava sobre tudo, tornando fácil a caminhada. Já não duvidava que era a coisa certa a fazer, escalar o topo daquela montanha. Vou até onde puder, decidi.
            Sentia como se estivesse vivendo dentro de um sonho, faltava o princípio que torna possível a escolha — ou talvez a escolha, de tão inevitável, evidenciasse o princípio de liberdade que faltava. Parei e me virei para trás. O luar criava sombras complexas entre os rochedos, tingindo o solo com matizes inesperados; a encosta abaixo de mim descia sinuosa e pálida como os rastos de uma cobra noturna.
            Olhei para o céu, e relanceei os olhos para a palma da minha mão — um lampejo de compreensão me atravessou o cérebro: aquela não era mais a minha mão! Não havia explicação. Um olhar e, de repente, eu soube: a minha mão não era mais a minha mão, as minhas pernas não eram mais as minhas pernas. Banhado pela luz branca, meu corpo, como um boneco de vodu, perdera todo o calor de organismo; a centelha de vida tinha desaparecido. A minha vida real tinha adormecido em um lugar remoto, e algum desconhecido a estava enfiando em uma mala, preparando-se para partir.
            Um calafrio horripilante me atravessou e perdi o fôlego de um golpe. Alguém tinha reordenado as minhas células, desatado os fios que mantinham a mente ligada ao esquema do corpo; não conseguia raciocinar direito. Sobreveio um momento de pânico; tudo o que eu sou, fui, ou podia ter sido se dissolvia sob o signo do terror, da anarquia e do caos. Respirei fundo, pois sabia que afundava no mar da consciência, uma água pesada que me arrastava para o fundo comprimindo meus tímpanos. Não queria ver o negror, fechei meus olhos bem apertados e prendi a respiração, resistindo.
            Fui acostumando à pressão da água, à falta de ar, à escuridão paralisante, ao desfalecimento — a situação me era familiar, algo com que venho lutando repetidamente desde criança. O tempo se inverteu, foi e voltou, desmoronou, tornou a reordenar-se; o mundo expandia-se interminavelmente, imagens soltas da memória percorriam corredores sombrios, como vagalumes, como almas à deriva. Por quanto tempo permaneci assim, não sei. Quando voltei à tona, abri os olhos e respirei silenciosamente. A música tinha cessado.
            Levantei do chão (não lembrava de ter caído) e prossegui a subida. Se tinha chegado até ali, podia muito bem atingir o cume. Do alto da montanha, a lua parecia incrivelmente próxima; à minha frente, uma escuridão sem bordas, atrás de mim, um mundo de luz gélida. Deixei-me ficar ali, em terra estrangeira, no cimo de uma montanha banhada pelo luar.
            E aqui estou eu finalmente; sem saber onde é "aqui", ou quem sou "eu", tendo apenas a certeza do finalmente. Faz séculos que me procuro e não encontro, faz uma porção de séculos desde que sou eu, desde que não sou eu; moro num quarto mudo e sem paredes, e sou eu o mudo — e também sou a falta de paredes, a falta de história deste eu e a incapacidade de seguir adiante. Vim buscar este silêncio que é meu, a única coisa realmente minha, qualquer palavra não teria aqui nenhum sentido; terra a bombordo e a estibordo: inatingíveis.
            Talvez tudo tivesse sido meticulosamente planejado, desde o começo. A minha mente, como um sopro de ar quente, estremecia e desaparecia gradativamente.

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