Um sentimento infuso toma conta de
mim conforme a correnteza me arrasta mais e mais ao sul: o pasmo. Acentuado pela
circunstância de não haver insinuação da mais leve sombra de outra qualquer
vivalma nas redondezas; não que o pasmo alheio me interesse, nem a mim
interessa pasmar: sou apenas solitária testemunha.
Tudo tão fosco!
Estou reduzido à simples condição
humana, o vazio sobre a cabeça e sob os pés, e sobretudo dentro, dentro da
alma. Posso ser um maldito pré-cadáver, pode ser que o movimento involuntário
deste barco cave abismos irrefreáveis, mas recuso-me a ser enterrado em vida —
o meu fogo-fátuo escolho queimá-lo em meu próprio gozo, num auto-de-fé de
perplexidade e gases.
Um novo fenômeno atrai minha atenção
de navegante passivo: a progressiva tonalidade violácea que adquirem as águas
vulcânicas por onde trafego. Frio e calor extremos divididos pela linha da
água. Nada faz sentido para além desta casca de noz, e mesmo a bordo começam a
esgarçar os laços da razão. Soa a terrível pergunta no silêncio da mente: quem
sou eu? A ipseidade, sensação de ser quem se é, parece imediata, biográfica e
óbvia quando presente, mas revela-se uma perda desorientadora quando some.
Sempre me perturbou o fato de estar
pintando um quadro impressionista ou cubista, quando deveria tirar uma foto, ao
pensar em mim mesmo. Todo tipo de fatores limitam a minha confiabilidade como
observador — preconceitos, estados da alma, padrões de reação, a limitação do
ponto de vista, etc. —, fazendo com que eu, o narrador, selecione e edite
coisas que engendram um outro eu, o narrado. Quanto mais penso nisso, mais
prefiro protelar o tópico mim mesmo; o
que gostaria era saber mais sobre a realidade objetiva fora de mim.
As trevas aumentaram, aliviadas tão
somente pela reflexão nas águas da catarata vaporosa. Numerosas aves, de porte
gigantesco e brilhante alva plumagem, sobrevoam o barco desde cedo. E agora a corrente
nos conduz, a mim e ao barco, na direção do centro da cortina nebulosa; mas
logo à frente, interrompendo a trajetória, ergue-se do mar uma figura velada de
proporções descomunais — um colosso de feições humanas, mas súbito e imponente
como as aparições divinas. Em sua face luzia uma inexprimível bonomia e a pele
era branca como a neve.
Profundo abatimento me invadiu quando
percebi que "ele" não era a estação final da curiosa odisséia; a
canoa passou perto o suficiente para uma segunda constatação deprimente: o
gigante dava mostras de sofrer com o calor da água, bem como com o frio
atmosférico.
Depois de vogar por um tempo
indeterminado por aquela região em que as estrelas giram sem sair do céu e o
sol leva meses para se pôr, finalmente avistava o continente antártico, uma massa
de gelo eterno e uniforme tomando toda a extensão visível à frente da proa. Duas
escarpas de alvura sem falhas erguiam-se da geleira litorânea a uma altura de
vertigem: calculei em mil metros do sopé ao cume; mediando as estranhamente
delgadas montanhas havia uma espécie de gruta, para onde o bote me conduzia
irresistivelmente.
Novamente iludido pela distância,
veio o absurdo desenganar-me na aproximação da terra: não eram rochas, nem gelo
tampouco; no lugar das montanhas siamesas, distinguia claramente duas pernas de
mulher — mas que mulher poderia ter aquelas dimensões de pesadelo? Onde antes
havia a caverna, avistava um despenhadeiro de... nada; o vórtice de ausência não
possuía forma, cor, sequer escuridão, apenas um vácuo no lugar em que as
mulheres, mesmo as gigantas, têm a vagina. Era para lá que rumava o barco. O opaco
abismo abria-se, esperando.
— Estão te chamando, parece que há
alguma coisa... sei lá, só sei tem que ser você.
— Ai minha nossa, coisa boa não deve
ser. Esse tempo todo demorando, algo não vai bem, posso sentir...
— É. Deve ser importante mesmo,
senão o chefe da equipe não chamaria você... Ah, é naquela salinha lá no fim do
andar.
— Você me espera aqui, tá? Não estou
gostando nada dessa falta de notícias, gente correndo pra lá e pra cá...
— Claro que fico, vai tranqüila.
Um comentário:
Pensei tanta coisa...Vou aguardar o final
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