quarta-feira, 30 de outubro de 2013

a escolha do Supremo (3)


O Deus de um homem é o monstro do outro. De resto, o que se faz na vida é jogar. Tudo pode fazer parte do jogo no grupo de doze pessoas que trabalham na 1Q84, salvo política e religião. Menos pela primeira que pela segunda, em pouco tempo ficou evidente a necessidade de impor limites de cima pra baixo; maiormente por causa da bancada evangélica: majoritária, multifacetada e proselitista. Com o poder de Cristo não se bole.
Adotamos o sistema japonês: uma bancada contínua serpenteia em ângulos retos através do escritório, não há paredes, salas fechadas, nem divisórias, cada um dispõe de uma porta de armário, uma cadeira, um terminal e, eventualmente, alguns servidores. Todos vêem e ouvem todos, o tempo todo. Ninguém está imune à zoação geral, exceto o Capo di tutti i capi ― embora soe pretensioso, tive de proteger o Todo Poderoso de qualquer possibilidade de caçoada ou assédio moral.
Administrar pessoas não é brinquedo, aprendi errando.
Originalmente, era um bom programador para automação comercial, desenvolvi o sistema carro-chefe da empresa há quinze anos: um programa estável, eficiente, interface intuitiva, pouquíssimos bugs. Associei-me a um vendedor ambicioso, o Mamma Mia, e criamos uma empresa de serviços bem sucedida no altamente competitivo mercado de tecnologia da informação. O organograma é enxuto: são dois níveis hierárquicos, dois sócios e dez pê-jotas contratados; e três categorias funcionais: vendedores, técnicos e programadores.
― Gaúcho, tô cheia de todo mês ser a campeã de vendas e também das reclamações internas...
― Você é ninja, menina, tem o DNA do marreteiro: fala mansa, chavequeira e com sangue no zóio pra vender... Natural que a turma aqui dentro chie, você promete até casamento pra fechar a venda, depois os outros que se virem pra entregar...
A Gogrila é assim, vendedora nata, viradora, capaz de convencer esquimó a comprar freezer, mas o nível da baixo-estima dela oscila perpetuamente entre a meia e a sola do sapato. Com ela, tenho sempre que elogiar, apoiar, mostrar a face dourada da pílula amarga.
― Pô, mas os cara não dão uma folga, ficam no meu pé o dia todo, feito band aid.
― Don’t worry, be happy, com eles eu me entendo. Como é que tá o papo com a rede de magazines? Se entrarmos lá, ficamo bonito na foto!
― Humm, não quero nem falar pra não zicar, mas já tou com um pé e meio lá dentro!...
Um belo dia, ela resolveu trazer no escritório o imbecil com quem namora, noiva, desfaz o namoro/noivado, volta, rompe novamente, há uns oito anos. Um animal de tetas que a destrata publicamente, desdiz diante dos amigos, fala errado ― e ainda por cima ganha menos da metade do que ela ganha. Foi o suficiente pra que surgisse uma nova criatura mitológica no nosso bestiário: o Gogrilo. O namorado, ou noivo, ou ex-atual, ou seja lá o que for, ostentava um tórax largo como o de um gorila... encimando umas perninhas de grilo. Quem o Gogrilo ama, Gogrila será.
A natureza humana não tem forma definida, aparece e desaparece como uma fantasmagoria, foge ao entendimento, esconde-se na região nebulosa das crenças, do acaso, das taras. Qualquer um dos meus funcionários poderia ser o patrão. Por que isso não acontece? Difícil explicar. Há um misterioso mix de timidez, auto-sabotagem, infantilidade, ignorância e acoelhamento, que impede a maioria das pessoas de atingir seu potencial.
            O caso mais intrigante pra mim é o Dozão. Uma inteligência alienígena superior nascida numa favela, um cara brilhante que não suporta a autoria, se acomodando na colaboração do projeto de outrem. Negrão de um metro e oitenta e cinco, gênio autodidata da programação, killer no design de software, e, no entanto, um simplório capaz de cair na mais manjada das casas-de-caboclo.
― Fala aí, meu irmão, um negão dessa idade... é verdade o que dizem?, quer dizer, o tamanho da mandioca...
― Ah mano, aqui é dozão...
― Dozão?! Dozinho, isso sim, pô meu, isso daí é um isqueirinho bic!...
― Quer deixar eu falar?
― Mano, tu é a vergonha da raça!
― Caraca, doze? Hahaha! Um gambitinho de sabiá...
― É, é! Com esse palito de fósforo tu deve fazer a mulherada gozar... de tanta cosquinha!
― Cês querem me ouvir, porra, é dozão... mole! Mole, entendeu?!
― Não é mole, não, fio, um homão desse com um gancho de toalha de rosto...
Dozão ficou ensandecido, virado no cão, saiu feito um louco, o rosto distorcido num esgar de louco, olhos injetados, prometendo que íamos ter de engolir aquela palhaçada. Ninguém entendeu nada, até que, uns quarenta minutos depois, ele liga de casa e põe a mulher na linha. Alguém apertou a tecla do viva-voz, todos pararam de trabalhar pra escutá-lo.
― Mulher, faça o favor, conta pra eles, vai... fala o tamanho da criança, vai!
― Desculpa gente, o Sebastião chegou aqui falando meio estranho, ele andou bebendo? Nem sei que história de centímetros é essa, ele inventa muito, não deve ser isso tudo que ele tá falando...
Em resumo, esta escolha do Supremo cabe a mim, na qualidade de aniversariante do mês. Ainda não decidi. Na minha lista tríplice despontam o Psai, a Gogrila e o Dozão.


quarta-feira, 23 de outubro de 2013

a escolha do Supremo (2)


― Tou falando procês... rapaziada, é a Primavera do Leste Europeu, a ponta de estoque desses países vocês não acham aqui nem no shopping de luxo: Estônia, Lituânia, República Tcheca, Albânia, Valáquia, Ucrânia...
― Tá bom, tá bom, mas daí a dizer que a Ana Hickman na Ucrânia não serve nem cafezinho, é meio over...
― Que nada. Lá ela não paga pule de dez. Vou trazer a Olienka aqui pra cês babarem na gola. Só não pode encostar a mão na minha deusa do Cáucaso...
― Escuta, Aber, na real, tu comprou essa ucraniana?!
― Bem, essa é uma maneira feminina de colocar as coisas... são os azares da globalização, prefiro pensar que estou ajudando uma família em apuros. Mas é que os coitados... lá rola uma pindaíba sinistra: crise econômica, invernaço de quarenta negativos, meu, se faltar aquecimento morre metade da população!
― Abre seu Face, mostra as fotos senão ninguém acredita ― eu já conhecia a Olienka, uma loiraça difícil de tirar os olhos de cima, um metro e meio de pernas ―, além de quê, com o seu retrospecto, quanto menos gente você apresentar ela, melhor...
― Hahaha, na boa, Aber... quanto?
― Aí é que a coisa fica linda: mando o equivalente a mil e quinhentos por mês, acho que uns dez ucranianos sobrevivem dessa grana. O melhor é que a sogrovska me idolatra, e ainda vive do outro lado do mundo. Melhor que isso, só dois disso...
― Pô, meu, picanha de primeira... certeza que a Sharapova aí deve ter umas amigas da hora pra apresentar pra nóis!
― Muita calma nessa hora, isso ainda não tá ao alcance da classe C... primeiro, a passagem aérea da Ucrânia é uma bala, e depois, ela exige passar o Natal com a família. Fora os gastos dela aqui, correndo por minha conta. Bom mesmo era quando ela não falava uma palavra em português...
O Aber talvez seja o ser mais humano que conheço: consegue a proeza de ser digno de desprezo, inveja e pena no mesmo grau e proporção. A firma dele presta serviços à minha, judeu arquetípico, é sócio do irmão e mora com a mãe aos cinqüenta anos de idade. É um serial corno. Recusa-se a entender porque a mulherada dá com o pé na bunda dele depois de seis meses, em média. A última foi um verdadeiro nocaute egóico: meteu-lhe uma galhada de envergonhar as renas do Papai Noel, deu até pro moto boy da empresa.
E com a ucraniana a presepada já começou, ou antes, recomeçou. A mãe não deixou o Aber morar com ela, solução: instalou-a num flat. O tontão virou entidade mantenedora, enquanto a Olienka, que progride na língua a olhos vistos, tratou de estabelecer convênios alternativos. A situação nas ex-repúblicas soviéticas não está bolinho pra ninguém.
Sem perceber o que até surdo vê, o paspalho acha de usar camisas da marca Abercrombie & Fitch ― sim, isso mesmo, a marca de roupas norte-americana cujo logotipo é um frondoso alce. Daí pro pessoal começar a chamá-lo de Abercrombie foi um passo, a abreviatura Aber veio como conseqüência natural. “O chifre é próprio do Aber, o alce usa de enxerido”, virou trending topic na 1Q84.
Quando contratamos um funcionário é sempre a mesma água: na entrevista inicial comparece o homem (ou a mulher), mas quem vem todos os dias pegar o batente, é a criança. Incrível o quanto as pessoas regridem num grupo relativamente fechado. É como se voltassem ao tempo de escola, ou até àquele manicômio primeiro e primordial, a família. Mais incrível ainda é o fato de ser o enforcado, invariavelmente, a trazer a corda que o enforca.
― Boa tarde, senhor, isso são horas?
― Foi mal, chefia, teve fuzuê no trem, acabou que atrasei...
― É, Gaúcho, perdoa aí, o cara mora na zona Lost, dois pontos depois da pequepê, lá onde o vento faz a curva.
―... e onde o Judas perdeu as pregas!
― Ih, mano, foi mó resenha... bem do meu lado, o CPTM com gente saindo pelos tampo, maluco tava lá descascando uma bronha na maciota... disfarçava pondo uma pastinha na frente, daí, na hora de gozar, o mané largou a pasta e borrifou em cima de uma mina. A mulher começou a berrar, armou um bafafá do carai, os passageiros foram pra cima dele... nego só não foi linchado porque os guardinha da estação seguinte apareceram.
― Hmm, suspeito... borfaram na sandalinha...
― A pergunta que não quer calar: sobrou uma gala espirrada pro teu lado?
― Que nada, mano, eu tava esperto. Maluco tinha pinta de treze, deu até dó o jeito que a fuça dele ficou... O cara tem que ser discreto. Eu, por exemplo, quando tô na necessidade, bato uma aqui no banheiro...
Pronto, falei. Morria desta forma o cidadão Kléver da Silva Gomes, e nascia o instantaneamente famigerado Gozadinho. Além da alcunha, o vacilão ganhou dos colegas a cronometragem rigorosa de cada uma das suas idas ao toalete, aliás, hoje todos evitam usar o banheiro depois do Gozadinho. E também mudou a forma comum de saudação ― inclusive com as mulheres ―, adotou-se o cumprimento black: punho contra punho, ambos fechados.


sexta-feira, 18 de outubro de 2013

a escolha do Supremo (1)



            ― Perfeito, sem problemas. Agora arredondou, a coisa vai sair redonda desse jeito... tá, tou mandando agora mesmo um e-mail... isso, com o meu de acordo... Hmm, isso daí vou ver com ele e te retorno ainda hoje. Quem vai trazer? Ah, sim, o Daniel...
― Daniel, Daniel... Daniel Boone!
― João Paulo e Daniel.
― Danny DeVito!
― Ei, ei, peraí, tem certeza que Danny vem de Daniel?
― Claro que vem, seu sem noção, já viu americano chamar Danilo?
― Mas ele é americano? Pra mim, era italiano...
― Se for assim, Dan Brown também pode!
― Daniel Day-Lewis.
― Daniel e Samuel.
― O, o… o James Bond...
― Daniel Craig!
― Não vale, essa era minha!
― Daniel na cova dos leões…
― O quê? Chupa essa manga: Daniel Harry Potter.
― Chupa tu, cabeção, é Daniel Radcliffe!
― Daniel, o cantor.
― Já foi: esse é o Daniel do João Paulo...
― Daniel Filho.
― Oziel e Daniel.
― Continuando no sertanejo: Gustavo e Daniel.
― Daniel Passarella.
― Daniel... la Mercury!
― Não pode! Já decidimos que é pra ser exatamente...
― Ah, mas é Daniella com dois ‘eles’. Pra quem sabe ler, um pingo é letra.
― Daniel Barenboim.
― Essa não! Daniel Boeing?! Vou dar já um Google, esse cara tá inventando, não é possível!
Mas era. O Psai tinha ganho aquela.
Assim começava uma das mais populares tradições culturais da 1Q84. Sem nenhum motivo explícito, às vezes por causa da repetição, ou de uma entonação diferente, uma palavra ou conceito eram destacados do discurso corrente e se tornavam a senha de um concurso de associações. Ganhava quem achasse o último exemplar, podiam ser nomes, sinônimos, partes de listas, verbos, acrósticos, símiles, quase qualquer coisa.
E havia ainda o fenômeno associado: a proliferação das regras, que deviam ser aprovadas por unanimidade, e que, uma vez sancionadas, ninguém esquecia nem ousava desrespeitar. Vários jogos internos surgiram por geração espontânea na empresa nestes quinze anos de existência, mas nenhum alcançou o grau de adição da escolha do Supremo.
Outra mania, menos inócua, são os apelidos. O Psai, por exemplo, não ganhou o nom d’artiste em homenagem ao saltitante coreano do Gangnam Style, vem de Psycho mesmo. Não que o Edilei não faça jus à fama, mas o recado é direto demais, cru demais. Tentei chamá-lo de quatro-e-um, em referência à hora fixa em que ele se levanta e, simplesmente, vai pra casa. Entra às sete, sai às quatro, não fala com ninguém, não aceita gozação ― o que, claro, pendura nas costas dele o alvo do bullying geral assim que deixa o ambiente.
Porém, verdade seja dita, o Psai é o melhor técnico que se poderia encontrar. Mito. Resolve qualquer problema de hardware ou software que lhe botamos na mesa. Quase não conheço a voz dele.
A 1Q84 foi batizada assim por causa do conjunto que ocupava no treme-treme do centrão da cidade quando começou. Naquela época, ainda nos chamávamos Global Network Services, nome que perderíamos dois anos mais tarde: um cara de uma banquinha de celulares já tinha registrado. É Flórida. E, desta vez, mesmo com várias sessões de diarréia mental, não chegamos nem perto de um consenso. Mais por desistência que por convicção, ficou desse jeito mesmo.


quarta-feira, 16 de outubro de 2013

vozes (III)



― Que bagaça, esses seus amigos! O que os caras mamaram no churrasco não foi brinquedo... no final, já tavam tomando sorvete no mesmo prato que comeram a carne, todo mundo bebia no copo de todo mundo, arrgh! Nojeira...
― Pronto, lá vem dona Luísa falando de alguma errada minha; hoje o tema mudou da minha família pros meus amigos... Que tem?, eles são toscos demais pra você, é?
― Pára, que mania! Você só sabe falar com as mãos? Sabe que detesto esses beliscões... Além do que, cê tá dirigindo, lembra?
― Fazer o quê, cê fica tão gostosa bravinha...
― E as conversas, então? Sempre alguém lembra de uma bebedeira de dois dias que acabou em alguma versão nacional de Jack Ass...
― Caretona!...
― Sou mesmo, se é pra achar graça num desmiolado que tomou todas e mais uma, e acabou dormindo no cemitério... com o carro suspenso entre duas lápides!
― Vai, essa até você riu...
― Dá pra você entender que passei a tarde toda rindo amarelo pra não ser a chata do rolê?
― Putzgrila, Luísa, tira esse limão amargo da sua alma azeda...
― E você, vê se não tira as mãos do volante. Escuta, não quer mesmo que eu dirija? Cê tomou várias a mais, tá correndo que nem louco...
― Não quero pegar a marginal entupida na chegada. Esquece, este aqui só eu dirijo. Cavalo, mulher e carro...
― Ah, sim, só estava faltando mesmo aparecer o macho-alfa... essa daí está bem no nível das conversas de hoje!
― Ok, ok, vamos mudar de assunto, tá bom assim procê?
(...)
― Antes de te conhecer, eu tinha uma amiga, a Telma. A gente vivia junta, pra cima e pra baixo; tanto, que começou a zoação: Telma e Luísa.
― Tem um filme assim, não?
― Então, todo mundo falava, mas eu nunca tinha visto... um dia, tô lá sem fazer nada, e pego esse filme no cabo. E aí é que me caiu a ficha: minha amiga Telma era uma Telma.
― Não pesquei, rebobina a fita...
― Cê lembra do filme?
― Hã-hã, pouca coisa.
― É o seguinte: a Telma é aquele tipo de amiga que só te põe em roubada, programa de índio, enfim, sempre acaba que ela faz uma merda que fode ela e quem tá junto...
― Hahaha! É que... a parte que lembro é que as duas fazem um ménage com o Brad Pitt!
― Pára de me cutucar, porra!!
― Caralho, você me empurrou, Luísa, perdi o controle...
― Que barulho foi esse?! Em quê o carro bateu?...
― Luísa, a gente atravessou a mureta da ponte, tamo caindo na represa... ABRE AS JANELAS, RÁPIDO, ABRE AS JANELAS!!
― Nós tamo caindo, caindo!!


sábado, 12 de outubro de 2013

vozes (II)



― Por mim não há mal nenhum, tá certo, o camarada batalhou, conseguiu acesso a um crediário, já dá pra comprar um carrinho popular, e tal... só que é de foder a paciência ficar entalado atrás de um desses motoristas de carroça.
― Na minha imodesta opinião, o maior problema são os Corollas, os Citys e, principalmente, os Civics...
― Puta merda, é mesmo, dá pra ver esses babacas de longe: é o carrão da vida dele, ele tá perdidão, simplesmente não sabe o que fazer diante de um câmbio assistido!
― Hahaha! Pode crer, o tipo de imbecil que estoura o air bag a cada duas freadas... hahaha!
― Rapazes, rapazes, pensem por outro lado, é melhor mesmo Deus não dar asa pra cobra: imagina o perigo que é um roda-presa sentado numa turbina de verdade?...
― Isso, deixa, não tem gente que acha que Camaro é carro?
― Peraí, peraí, não é bem assim, há casos em que a lerdeza está mais do que justificada... Pensem no nosso amigo Cacau, com aquele Bentley dele, tem que chegar o mais devagar que puder no Antiquarius...
― Mas também, a bordo de uma milheta e meia, pô, tem mais é que desfilar, esfregar bem na cara de todo mundo!
― Certeza. Se fosse comigo, quem pedia gorjeta pro manobrista era eu: só pelo prazer de ter sentado num puro sangue...
― Caraca, as nossas meninas estão animadas hoje, a discussão lá tá pegando fogo.
― Hmmpf, na certa é a nova coleção do Marc Jacobs...

― Ai, vocês viram aquela história do rato que entrou na garrafa?...
― ... de Coca-Cola? Sim, vi, um horror!, parece que a pessoa que bebeu teve a garganta toda queimada, o queixo derreteu na hora...
― Mas como é que... como foi possível?
― Ora, o bichinho estava cheio de veneno!
― Não entendo, Nana...
― O quê você não entende, querida?
― Um ratão nojento, e você ainda chama ele de bichinho! Isso é levar longe demais o amor pelos pets...
― Já eu, não entendo como é que o bicharoco foi parar dentro da garrafa...
― Ah, mas é fácil: ele conseguiu entrar no gargalo porque é um invertebrado!
― Rato é invertebrado?!
― Claro que sim, eles se espremem pra passar nas frestas. Nunca viu?
― Ai, graças a Deus nunca vi um de verdade! Acho que eu mudava de casa no mesmo dia, nunquinha que ia voltar a dormir num lugar com ratos... O Zé Luís que se virasse.
― Não pode ser. Os invertebrados não têm pêlos, nem focinho.
― Sei não, cobra tem focinho e é sem pêlo, e outra: cobra não tem osso!
― Nada disso, invertebrado tem que ser gosmento que nem lesma!
― Bom, aí já não sei, mas rato tem osso, sim. Sabe por quê? Tipo, que nem nos desenhos animados: quando o ratinho leva um choque elétrico, aparece o esqueleto dele...


quarta-feira, 9 de outubro de 2013

vozes (I)



            ― Fala mais alto, o trem tá gemendo mais que parede de barragem no calor!
― Então, tava te falando, acordei c’uma inziquizira ruim que nem...
― Mas, tomém, ocê mistura farinha com pinga, fia. Dá certo não. Isso empanzina a barriga do freguês, que é a gota.
― Ave Mãe, passei mal de mais de manhãzinha! Vou é fazer um chá de boldo...
― Bom, então vê se não esquece de ponhar tomém um pouco de melissa e cansanção. Tu ainda exagerou demais nas fruta, mulher, sabia não?, fruta de tarde é veneno: melancia de noite dá sezão; manga com banana, forma tricnina no bucho; e abacaxi, então?, mulher de chico e grávida num pode nem chegar perto!
― Que moleira no corpo, meu Santo, como é amargoso o limão do mundo! Como se já não tivesse meus poblema...
― Não é assim que fala...
― Assim como?
― Poblema. São duas coisa diferente: poblema e pobrema.
― Mas... num é tudo uma coisa só?...
― É não, minina, poblema tem quem nasce com poblema: pé torto, lábio chunchado, ou titela afundada...
― Entendi! Os pobrema, então, são aqueles da vida de todo mundo: prestação atrasada, dívida no cartão, parente em casa... é não?
― Isso daí. Pior coisa é os outro tirar nóis por burraldo.