domingo, 29 de setembro de 2013

os construtores de instantes (final)


Antes que pudesse impedi-lo, correu para o alto de um morro e pôs-se a gritar como um louco. Dirigia-se em altos brados, pregando feito profeta de rua, aos súditos daquele estranho reino. Belo de um porra doida esse meu marido, defensor dos frascos e comprimidos, um energúmeno em guerra permanente com o mundo.
― Dragotiranenses, irmãos e irmãs, plebe rude, meus iguais, meus semelhantes, hipócritas e queridos, vocês já não precisam mais se submeter à maldade do dragão! Vocês me escutam?! As mortes inúteis podem, e devem, cessar!
Saí correndo no pinote doido, pra ver se o detinha antes de chegar ao topo, gritava, gesticulava, me descabelava ― mas dizer que alguém pára esse surtado depois que ele começa? Sérgio vive lançando campanhas contra o avanço contínuo da estupidez, a qual, na sua modesta opinião, atravanca a marcha do progresso e a confraternização universal dos povos.
― Sérgio, cê tá maluco? Criando quizumba num país desconhecido, com pessoas que nunca viu?... Cala a boca, cretino! ― me esgoelei em vão.
Lembrei do revólver, procurei nos bolsos sem parar de correr. Em vez da arma, encontrei uma flor murcha, pouco útil diante da confusão que estava se armando. Uma multidão se havia reunido ao pé da montanha pra ouvir o sermão do meu marido, enquanto isso, os cortesãos confabulavam ameaçadoramente e o rei posicionava seus exércitos.
― Dragonenses, tiranianos, por que não usais o que já possuís, as ferramentas que tendes nas mãos?! Há muito que dominais os meios de vos livrar dessa opressão sinistra, esperar, por quê?
― Sérgio, mas que catso?... ah, meu Cristo, lá vamos nós, de novo...
O primeiro tiro de canhão foi seguido de uma longa salva de obuses e o silvado arrepiante de uma nuvem de flechas voando... na nossa direção! Ele virou os olhos de celerado pra mim, então acompanhei na mímica do seu rosto transfigurado a ficha caindo.
― Caralho... Sujou, Dó, e agora?
― Agora?, agora é: hit the road Jack and don’t come back no more.
Puxei-o pela camisa e escapamos dali, escorraçados até pelas pedradas do zé-povinho, descendo aos tropicões a encosta traseira do morro. Tava puta das calças com ele, e não fiz muita questão de esconder.
― Isso que dá levar luz a surdo, seu tapado!
― Só quis ajudar...
― Essa é a frase de abertura de todas as suas batatadas. Seu samba é de uma nota só?
Demos com uma trilha no meio do mato que se nivelou progressivamente até sair num descampado de onde seguimos por uma estrada de chão batido. Doralice não parava de reclamar das minhas iniciativas humanitárias. Continuávamos correndo, com as balas de canhão caindo cada vez mais perto.
― Cê viu, Dó? A estrada tá nos levando de volta.
― Mas, como?, não pegamos nenhuma bifurcação...
― Sei lá. Este limbo que nós caímos desde ontem à noite parece um ninho de tudo que existe, mais o que nunca foi sonhado... Tudo aqui é verso e reverso.
Invertemos o sentido da nossa fuga e nos afastamos do reino do Dragão Tirano. Senti que ela progressivamente voltava a confiar em mim, era como se agora fosse eu a guiá-la por uma teia de cidades que se sucediam num território instável e desconhecido.
Com uma lente de aumento e alguma atenção, bastava fixar um ponto, não maior que uma gota de sereno, pra ver em seu interior telhados, antenas, caixas-d’água, jardins, tanques, prédios, pontes, pistas de corrida de cachorros; o ponto não permanecia imóvel: em um ano, já está grande como um limão, depois, um prato de sopa, e eis que se torna uma cidade de tamanho natural, contida numa outra, invisível, uma nova cidade que abre espaço em meio à primeira cidade e a impele pra fora. O entorno cresce em esferas concêntricas como epiciclos, uma árvore-mundo cuja circunferência está em toda parte e o centro em lugar nenhum, exercendo pressão centrífuga de cidades que despontam umas de dentro das outras, mas é difícil distingui-las, as cidades originais e as vindouras, a crescer pra dentro e pra fora indefinidamente.
― Pra quê continuar, se todos os lugares são o mesmo e único?
― Sérgio, você pode partir quando quiser, mas você chegará a um outro povoado, igual ponto por ponto; o mundo é recoberto por uma única metrópole que não tem começo nem fim, só muda o nome no aeroporto.
Mas a região das cidades também acabou e atingimos setores desolados e frios, os confins longínquos. Apavorados, em silêncio, do fundo da nossa dimensão infinitesimal, experimentávamos a proximidade aniquiladora da história das galáxias e buracos negros. Bilhões de anos-luz aconteciam na duração de um piscar dos sentidos. Doralice apertava a minha mão enquanto rolavam aquelas imensidões de pesadelo.
Subitamente, uma paisagem perfeitamente normal.
Um pasto, grupos de árvores, colunas caídas e cobertas de hera, e... uma porta elegante: branca, maçaneta e dobradiças douradas. Uma porta sem sentido, que não dá acesso a parte alguma; pode-se-lhe dar a volta completa. Porém, quando aberta, vislumbra-se uma maravilhosa paisagem ensolarada, com flores estranhas, montanhas verdejantes e rios claros como diamantes.
― Bom, nós ficamos por aqui, dessa porta em diante é só você...
― Como assim?! Que história é essa de não vir comigo, Doralice?
― Vou cuidar da minha vida, e a minha vida não é com você. Toma esta flor, ela está murcha, mas não ligue: é uma orquídea, vai brotar de novo. Entre uma floração e outra, passa a vida, o tempo, o universo.
― Mas... e os nossos filhos, nossa... nossa casa, não quer nem tentar voltar?
― Sérgio, nada daquilo existia: nosso casamento, a casa, os filhos... Eu sou uma fantasia sua, achei que tinha percebido, meu nome é composto, como a minha personalidade é uma mistura das mulheres da sua vida. Vá atrás de uma mulher real, não de uma que você criou.
― Você... só existe na minha cabeça?
― Sim, e lhe agradeço muito ter me inventado. Ganhei existência, sou uma criatura sua, mas agora eu preciso me criar, me reinventar. É a minha chance de ser alguém, e a sua também.
― Vou sentir saudades, Dora...
― Eu também.
― Como sempre, você está certa. Melhor tomarmos cuidado: sentir saudades é puxar conversa com os mortos. E precisamos ficar bem vivos.
― Lembre-se disto: salvar os outros não vai salvar você, nem vice versa ao contrário. Encare de frente o que tiver de fazer, beije no coração, ame rolando no chão, não esqueça de manter objetivos, e não esqueça de os trocar de vez em quando. Cuide bem do seu amor.


quarta-feira, 25 de setembro de 2013

os construtores de instantes (parte 4)



Saímos pela porta do quarto, mas, em vez de encontrar do outro lado o nosso lar em escombros, fomos sugados para dentro de um buraco de minhoca, um túnel escuro e gosmento em cujas paredes passavam cenas da minha vida, vibrando emoções soterradas por anos de esquecimento diversionista. Caímos, ou pelo menos assim parecia, por um tempo sem margens; às vezes a velocidade aumentava, e então me sentia invadir por uma euforia de vertigem, outras, a lentidão e o peso se instilavam, como se me aniquilasse o arrastar dos aeons. Perdi o Sérgio de vista.
Reencontrei-a numa escadaria insana, dédalo propagando-se em todas as direções e dimensões, bifurcando em excessivos atalhos, por caminhos múltiplos de estratos que se desviam, confluem, anulam, ramificam, num sem-fim de alternativas coexistentes. Pelos degraus subiam e desciam uns curiosos insetos, bichos-rolapé, louva-deus, tatus-bolinha rolando, esbarrando nas pernas, derrubando-nos de uma escada a outra, de um mundo a um mapa, de um mapa a si mesmo, passando por outro mundo, do desenho ao desenhista que retrata seu relicário de planetas e galáxias flexíveis numa gota esculpida na cabeça de um alfinete.
Tudo que sentiam agora era maciço, arcaico e dúctil, um labirinto cosmicômico de possibilidades impensáveis. Mas permaneciam juntos, lado a lado, afinando a arte de viver só. Doralice e Sérgio nunca mais haviam experimentado despertos a sensação de ser, imaginar, fazer, absolutamente qualquer coisa. Tamanha liberdade fazia com que eles deslizassem de um cenário a outro, de uma realidade ao seu inverso, sem o menor controle. Tanto podiam ser uma nuvem, como fundir-se aos pássaros, ou se tornar hectares de planícies, sobrepostas a incontáveis peixes nadando nos abismos sem fundo. Do mar, subiam através do hipertexto aos planisférios siderados, pairando, como as estrelas, os sólidos simples, metamórficos, irregulares e a n-dimensões, habitados por camaleões que caminham em bandas de Moëbius.
Os espíritos deles podiam finalmente abandonar a reclusão da casca de noz onde viviam julgando ser os reis do espaço infinito. Compreendiam, com a alegria e a clareza inaugural dos recém-despertos, que não pode haver o espaço senão no tempo, e que nem este sem aquele existe. O tempo, lápis rombudo, lascas a escavar feições, arestas e contrafações no devir; percebiam descortinar nos olhos da mente o ponto a partir do qual tudo é, as ondas do nada que embalam o sono do deus-colosso a sonhar pelo umbigo todas as geometrias possíveis e inverossímeis. A festa do tempo zero.
Deram as mãos, temeram perder-se naquele caleidoscópio irrefreável.
Até que chegaram ao reino do Dragão Tirano.
Ali vivia um dragão maior que a torre de cem catedrais. Enroscado no cume da montanha mais alta do reino, exercia o terror sobre a população; seus olhos vermelhos vertiam o ódio, da sua bocarra medonha e faminta exalava uma pestilência mortal ― tanto quanto o fogo que soltava das ventas ―, suas escamas negras brilhavam refletindo os últimos raios de um pôr do sol temido por todos. A cada final do dia o dragão devorava sua cota de vítimas: dez mil súditos lhe eram sorteados e entregues quando a estrela vespertina surgia.
Muitos partiram para o combate, se eram bravos ou tolos será difícil dizer; inúmeros os que, sozinhos ou em bando, atacaram o dragão: morreram carbonizados antes de sequer escalar a montanha; magos e alquimistas invocaram sortilégios e destilaram venenos poderosos, mas tudo isso só fazia aumentar o apetite do bicharoco. O rei, conformado, mandou construir uma linha de trem para levar diretamente ao topo da montanha a taxa diária em sacrifícios humanos que o monstro lhe cobrava.
Homens do espírito confortavam as pessoas prometendo-lhes uma vida além da morte, quando viveriam felizes e eternamente libertos do flagelo. Oradores sustentavam que o dragão fazia parte da natureza e tinha o direito moral de se alimentar como qualquer um, argumentavam, com boa lógica, que o sentido da vida é ir parar na barriga do predador: o ser humano seria um ser-para-o-dragão. Outros ainda, viam na tirania do bicho uma forma racional de manter o controle demográfico. O quanto estas doutrinas realmente confortavam o povo é incerto, cada um tentava viver da melhor forma possível e não pensar sobre o destino que pesava sobre as suas cabeças.


sábado, 21 de setembro de 2013

os construtores de instantes (parte 3)


            — Senhor Sheldon...
            — Sholem, meu amigo, Sholem.
            — Que seja. Se o que diz é verdade, então basta a gente voltar a dormir, e amanhã vocês reconstroem tudo e o nosso dia recomeça normalmente, certo?
            — Hum, bem, não exatamente...
            — Tá vendo? Que nem serviço de atendimento ao cliente — Doralice falava em falsete —, não é bem assim que consta do nosso contrato, senhor... Lá vem enrolation!
            — Senhora, entenda, quando se levantou da cama inconsciente, nossos alertas falharam. A partir daí, criou-se uma dessincronia, inadvertidamente, vocês caíram num tempo/espaço alternativo. Não temos como levá-los de volta para a dimensão em que viviam antes de...
            — Mas, e os nossos filhos?, vão ficar sem nós? Daqui a pouco — Sérgio olhou para o relógio, parado à meia noite e um minuto — eles têm que ir pro colégio, quem vai levá-los, os seus bombeiros?
            — Quanto a isso não se preocupem, o nosso Departamento Capgras tem sósias de vocês que podem dar conta de tudo que...
            Nesse momento, surtei. Aquele filho da puta de fala mansa deu no meu saco, estourou minhas medidas. Pela primeira vez, comecei a achar que não estava tendo um pesadelo por ter exagerado na lasanha do jantar. A coisa era séria, e o piti da Doralice também.
            — Sósias!? Departamento de sósias?! Tá tirando uma com a nossa cara, é? Qual é a próxima novidade? Então será que também já não sou uma sósia de mim mesma? E o Sérgio também, por que não? Basta ter acordado uma noite pra mijar... e pronto, tá fora. Substitui por outro!
            — Moço, tá na hora de começar o papo reto — cheguei bem perto do cara pra lhe dar uma prensa — Vai explicando melhor essas histórias de dessincronizar, construir instantes, sósias, tempos paralelos, desembucha, vai!
            — Calma, gente, entendo que estejam inquietos. Nós temos como realocá-los, não se preocupem demais. Os descendentes de vocês daqui a milhares de anos, pensem neles como seus tatatatata...ranetos, se tornaram pós-humanos. Tentem imaginá-los como seres feitos de pura informação, memes, criaturas ideológico-espirituais, pura idéia platônica ou hegeliana, formas independentes da matéria.
            — Muita conversa fiada, cara. Que é que isso tem a ver conosco?
            — Já chego lá, se me deixarem. Tão logo a pós humanidade atingiu uma capacidade computacional que lhes permitiu a autonomia em relação ao substrato físico, ou seja, quando conseguiram reproduzir a consciência em processadores quânticos, decidiram criar uma Grande Simulação da sua própria história. Você Sérgio, você Doralice, são apenas possibilidades dentro de uma Matrix de dados.
            — Tava faltando só essa! Então, eu não sou eu, e ele não é ele? Não estamos casados há dez anos, não temos dois meninos, nada é o que parece ser, é isso?...
            — Claro que vocês são vocês, e até são quem pensam ser, a diferença é que a vida real de vocês já aconteceu. O que acreditam estar vivendo, pensando, sentindo, imaginando, hoje, é apenas parte de um grande simulador de hipóteses. Os humanos trans-biológicos querem conhecer em detalhe a seqüência de eventos que leva até o ponto em que "eles" se encontram, como as famílias fazem quando passam antigos vídeos ou folheiam álbuns de fotos de parentes que não chegaram a conhecer... Assim puderam observar diretamente os dinossauros, as interações sociais dos trogloditas, o surgimento da linguagem, etc., eles nunca teriam acesso à verdade factual da sua origem sem lançar mão de uma grande simulação computacional do passado.
            — Ah, que fofo, nem sei qual parte desse lero-lero gostei mais: se do álbum de família, ou daquele detalhezinho de nunca mais ver meus filhos! E nem temos que nos preocupar muito, o senhor Schwepps aí vai providenciar um cercadinho onde seremos "realocados" à espera da solução final. Que maravilha, não?
            Doralice contornou a cama de casal e dirigiu-se ao criado mudo. Para surpresa minha e do homem de preto, tirou de lá um revólver e o engatilhou. Apontou-o para o agente do sistema.
            — Dodó, como é possível? Nós não temos arma em casa!
            — Pois na minha versão desta comédia temos, sim. E você, paspalhão?, faça o serviço de homem: arranca o celular desse papagaio-de-pirata e amarra ele com a silver tape que está no armário!
            — Senhora, por favor, sem violência. Muita calma nessa hora...
            — Mas nós não temos sil...
            Desisti de argumentar com Doralice, aquele mundo louco haveria de possuir uma saída. Precisávamos tentar. Amarrei o cara com a fita que não deveria estar ali. Antes que eu vedasse completamente a boca dele, murmurou desesperado:
            — Não façam isso, vai gerar uma singularidade... por caridade, não olhem nunca diretamente para o Olho do Mundo...


quarta-feira, 18 de setembro de 2013

os construtores de instantes (parte 2)



Entrei por ali.
Depois de um tempo andando, a estrada se reduziu a uma viela invadida por capoeiras altas e cipós, na beira do caminho entreviam-se os mourões das cercas dos fundos de um casario de taipa. Eram barracos sem acabamento, escondidos pelas tramas do varal das roupas, colorida e disparatada caixa de lápis balançando na brisa. Um galpão de madeira apodrece calmamente infestado de tumbérgias e capim, o pau-jacaré crescido no meio das folhas despencadas do portão. Calor. Grilos. Mutuns cruzam o ar. Coado pela rama das árvores, o sol imprime na grama as manchas amarelo-escuras da pelagem do leopardo. As abelhas zunem nos cachos das mangueiras, ou aglomeradas nas florações da madressilva, da calêndula e do melzinho-de-celeiro.
Um tranco no lado direito do corpo.
Sérgio acorda de susto, irritado pela brusca transição. É só mais uma ataque de sonambulismo da mulher. Às vezes acontece. São os soníferos.
Está indo para o banheiro. Tranqüiliza-se, vira de lado. Quer voltar para o mesmo sonho.
Havia perto a presença fresca de água corrente, não vista nem ouvida, mas sentida, como um espírito da mata. Dou mais alguns passos...
Ela o sacode pelos ombros, não há jeito. Abre os olhos.
― Sérgio, acorda, por favor. Sérgio!
Doralice parece aterrorizada. Barulhos e pancadas ressoam no quarto, como se estivessem marretando as paredes e falando em rádios lá fora. Sérgio senta-se na cama.
― Mas que?...
― Vem ver... tem um monte de gente na nossa casa...
O apartamento deles estava no chão. Literalmente. Entulho, pedaços de piso e ferragem retorcida atravancavam a passagem onde antes havia cômodos; a poeira grossa do ambiente turbilhonava ao ser cortada por fachos de luz branca acoplados nos capacetes dos operários. Protegidos por macacões vedados e máscaras de gás, uma numerosa equipe trabalhava sem lhes prestar atenção. Falavam sem parar na tela de comunicadores portáteis.
Somente os quartos deles e das crianças tinham sido poupados da demolição. Todo o resto, destruído.
― Você não vai fazer nada, Sérgio?
― Ei, moço, senhor... por favor, alguém pode me explicar o que está acontecendo?
Finalmente, um dos sujeitos deu sinal de ter percebido a existência deles. Ainda assim, continuou a falar numa espécie de walkie-talkie amarrado ao pulso.
― Câmbio. Gerenciamento de operações domésticas, temos uma situação aqui no setor quatorze, grupo esmeralda, câmbio.
― Hã, situação? O que vem a ser isto? O que estão fazendo na nossa casa? ― abraça a mulher confuso, não só o apartamento está praticamente em ruínas, como o teto e as paredes derrubadas tornam visível uma noite estrelada que não deveria estar ali.
― Eu quero saber se os meus filhos estão bem!
― Senhor, senhora, vou lhes pedir que aguardem a chegada do nosso supervisor de ocorrências excepcionais. Ele vai explicar tudo pra vocês. Por enquanto, a instrução que recebi é para que aguardem aqui sem interferir com o nosso trabalho.
Um grupo se aproximou do casal, cercando-o, dando a entender que qualquer resistência seria inútil. Capitularam silenciosamente, Sérgio sentou-se num monte de destroços onde se viam os pedaços do home theater da sala de TV. Passado um tempo que não lhes pareceu muito nem pouco, apenas excessivo, chegou um homem vestindo terno e sem o ridículo uniforme laranja dos outros. Também falava no mesmo comunicador portátil, do qual recebia continuamente instruções.
― Queiram aceitar nossas desculpas, creio que houve uma falha no sistema. Mas não se preocupem...
― Falha no sistema!? ― Doralice explodiu ― Pois saiba que a sua “falha no sistema” detonou o que nós construímos com muita dificuldade! Além do mais, esses seus brutamontes encapuzados nos impediram de ver os nossos filhos!
― Não seja por isso, venham ― um corredor polonês se formou e os três se encaminharam ao quarto das crianças. ― Por favor, é extremamente importante que não acordem as crianças.
― Vamos deixar uma coisa clara aqui, senhor Men in Black: você não vai me dar ordens no que diz respeito aos meus filhos, copiou?
Entreabriram a porta. Os meninos dormiam profundamente.
― Poderíamos continuar a conversa em particular, no aposento de vocês?...
Sérgio tomou a dianteira. Temia as reações da mulher, a fúria nos olhos dela era por demais conhecida.
― Bom, será que você pode nos dar alguma razão plausível pra esta confusão no meio da noite, senhor?...
― Scholem, sou gerente de ocorrências extraordinárias. O que aconteceu aqui hoje não devia ter chegado ao conhecimento de vocês, na verdade, acho que foi causado por um efeito colateral do sonífero que a senhora tomou, dona Doralice...
― Como é que sabe o meu nome, o que eu tomo ou deixo de tomar? Que ocorrências paranormais são essas?! Como é que você sabe tanto das nossas vidas?
― Calma Dodó, calma, tenho certeza que há um tremendo engano nisto tudo. Senhor Scholem, continue...
― Pra não dar muitas voltas ao assunto, serei direto: somos da equipe de construção de instantes, trabalhamos com a realidade percebida e por isso estamos demolindo a casa de vocês. Enquanto dormem, não precisam dela, não necessitam que ela exista fisicamente, quero dizer. Quando acordarem, tudo estará nos seus devidos lugares, objeto por objeto, paredes, piso, quadros, bibelôs, louças, eletrodomésticos, enfim, tudo.
Caíram sentados em cima da cama, boquiabertos, bovinamente estupefatos. Doralice se recuperou primeiro.
― Você está dizendo que a nossa casa não existe enquanto estamos dormindo?
― Pra ser totalmente rigoroso, nada existe sem que alguém esteja consciente disso. Pensem no tamanho do universo, o gasto enorme que seria se tudo existisse o tempo todo. Absolutamente insustentável em termos energéticos. Por isso, mantemos as coisas aí somente enquanto os seres as percebem, vivem nelas. Claro que com os telescópios e sondas espaciais o nosso trabalho aumentou bastante...
― Que puta absurdo! Nunca ouvi uma lorota maior que essa... cê tá acreditando nisso?
― Dó, eu acho que nós ainda estamos sonhando...
― Só se estivermos sonhando o mesmo sonho. E te garanto que, neste momento, eu sou eu mesma!
― Quando vocês sonham, nosso trabalho é muito menor: apenas uma questão de estímulos neuroquímicos. Muito mais limpo e prático. Difícil mesmo é reconstruir galáxias, supernovas, quasares, buracos negros... Pensem naqueles objetos que vocês têm a certeza de ter deixado num lugar, e quando procuram não estão lá. São pequenos erros da nossa equipe, a gente repõe numa gaveta esquecida pra ninguém desconfiar.


domingo, 8 de setembro de 2013

os construtores de instantes (parte 1)



            Sérgio chegou em casa à noite bastante cansado. Tomou banho, mudou de roupa e só então se juntou a Doralice na sala de visitas. Tendo acabado de ligar a TV quando a empregada os chamou para jantar, não a desligou quando foram sentar-se à mesa.
― Não gosto desse tom, o foco excessivo em você!...
― Que tom? Que foco? Do que é que cê tá falando, Doralice?
― Aí em cima, no primeiro parágrafo: Sérgio isso, Sérgio aquilo, chegou, tomou banho, se trocou, ligou a TV... parece que só você trabalha, que eu passei o dia inteiro em casa coçando!
― Mas... eu não falei nada disso! Tá louca?
― Claro que não foi você, Pedro Bó. Quem falou, ou melhor, escreveu isso, foi o narrador neutro em terceira pessoa que nos observa.
― Como assim, que terceira pessoa? Cê tá me dizendo que tem um amante, ou que tem alguém espiando a nossa vida?
― Não, Sérgio, quem espia as nossas vidas é o Obama. Esse cara, ou essa cara, escreve a nossa história porque ela acontece, e a nossa história acontece porque alguém a escreve. Vai ver nem podemos decidir nada na trama...
― Da minha parte, declaro que, tirando o meu chefe, a minha mulher, os filhos, a mãe, o cachorro, a sogra, ah, e a empregada, mais ninguém manda em mim ― sacou o celular e pôs-se a checar mensagens.
― Viu só, viu só? Você não ia pegar o celular, “ele” precisou colocar a informação aí porque deve ter alguma função na história em que nos meteu!
― Sabe o quê, meu amor? Você anda tomando aperitivos a mais antes do jantar, não cai bem com os antidepressivos... estava pra dizer há algum tempo. Eu quis pegar o celular e ponto, ninguém decide por mim, lhe garanto.
A empregada já dera o jantar das crianças e supervisionava seus banhos quando Sérgio se levantou da mesa sem terminar de comer para lhes dar o beijo de boa noite. Doralice deixou-se ficar ali, o olhar perdido, sem escutar o noticiário mundo-cão que vinha da sala de TV.
― Tá mais calma agora, meu bem? ― ele adotava um tom conciliador, temia mais uma das freqüentes brigas que irrompiam depois das crianças serem postas para dormir.
Qual a diferença entre este homem e qualquer outro? Pertencemos àquele grupo com renda acima da média, filhos em colégio particular, duas viagens por ano, casa de campo em condomínio privado, um círculo de amigos amplo... Não falta nada, nossa vida é quase tão simples e protegida como parece ser. Estamos casados há dez anos, não se pode dizer que o Sérgio dê a impressão de ser mais jovem do que é, mas ao menos ele dá a impressão de se sentir mais jovem do que já foi. Mantém curtos os cabelos que começam a ficar grisalhos, veste as mesmas roupas e adota o comportamento dinâmico, expansivo e superficialmente cínico do seu grupo de amigos motoqueiros. Born to be wild.
― Ei, ei, ei, não precisa pegar pesado comigo assim! Temos sempre que brigar depois que as crianças vão pro quarto?
― Ah, então agora cê tá acompanhando a narração em “off”? Quando você ficava bonito na foto não te incomodava tanto, né?
― Doralice, por que você sempre tem que complicar tudo? Por que tudo entre nós acaba virando uma tragédia grega, um dramalhão mexicano?
― Porque estou tentando te abrir os olhos, Sé... Toda vez que proponho um assunto sério, você vem com essa de que tô pegando pesado. Fora do teu trabalho, cê desenvolveu uma alergia a qualquer coisa que te lembre da realidade!
― Pronto, lá vem a sua acusação de costume: o Sérgio não entra em contato com a parte difícil da vida, o Sérgio não liga, o Sérgio vive num mundo só dele... Talvez seja melhor me plugar como você, aí nos tornaremos a família faixa preta, depois de você e das crianças, só falta eu também tomar remédio controlado!
― Sérgio, a gente se parece com todo mundo. Não somos diferentes de ninguém à nossa volta, já reparou nisso?
― E isso é tão ruim assim?
― Amor, talvez nem sejamos gente de verdade, mas personagens de alguma história que não nos pertence! Isso é suficientemente grave pra você dar alguma atenção?
― Está tarde, vamos dormir Dodô. Paz...
Não adianta, nunca adianta. Sérgio deixa toda a energia de que dispõe na mesa de trabalho, todo o resto deve deslizar sobre trilhos e não dar trabalho. A vida íntima para ele é um playground, nunca um assunto sério demais, uma questão. Tomei o remédio pra dormir e deitamos. Ele adormeceu antes de mim.


domingo, 1 de setembro de 2013

die Präparatoren (final)



Gradualmente se deu conta da impossibilidade de convivência. O semi-anão corcunda ramelava o ambiente com sua cadência de lesma, desprendendo miasmas depressivos nas frestas da conversa mole, tateando, rodeando, farejando as suas reações em busca de alguma dobradura na alma onde assestar o aguilhão cujo ácido imobiliza os nervos da presa antes de devorá-la viva, pedaço por pedaço. A pestilência gelada e metódica embalava paradoxalmente uma tentadora proposta de novos e lucrativos empreendimentos.
― Fidencio Estigarribia, um belo nome de político. Nunca pensou nisso? Já temos um histórico comercial longo, laços firmes: sua carreira vem numa ascendente, começou prospectando... passou para o ramo dos minérios, máquinas, armas... enfim, achei que era chegada a hora de introduzi-lo no business que é a nossa verdadeira jóia da coroa: o gás.
― Gás?!
― Sim, gás xisto. Os americanos decidiram-se pela auto-suficiência e vão substituir a matriz energética dos hidrocarbonetos pelo shale gas. Eles têm a necessidade e a vontade, nós, a expertise adquirida em uma experiência secular vivendo do subterrâneo. De qualquer maneira, não será a primeira vez que os ianques recorrem à nossa tecnologia...
― Seria uma mudança bem grande, eu... só posso agradecer a confiança.
― Entenda, isto equivale a saltar para órbitas mais altas, você passa a freqüentar circuitos exclusivos, isto envolve viagens, contratos, conexões internacionais, uma posição de maior visibilidade... daí a necessidade de inseri-lo na política.
― Talvez não seja tão fácil, há aquele episódio com a garota de San Pedro... Como o senhor sempre faz questão de me lembrar, eu era um Preparador quando entrei na sua organização.
― Venha pro futuro, meu amigo. Você será rico e poderoso, influente, Fidencio, as pessoas importantes têm um passado diferente das outras, flexível, mutante, capaz de ser reescrito quantas vezes for preciso!
― Pessoas importantes têm a vida muito mais exposta que as outras, isso sim...
― ...além do mais, por ter vivido lá, você é o embaixador ideal para os nossos affaires americanos ― Silberblick abriu uma pasta preta e tirou dela os papéis onde as cifras do negócio estavam expostas em projeções, gráficos e tabelas.
― Sabe que aprendi um pouco da sua língua? Tanto tempo juntos... O senhor se importa de acender o lampião pra ler? ― levantou-se, caminhou até a parede. Percebeu a interrupção do movimento da cadeira de balanço, o gringo assumiu a posição de guarda enquanto trazia a pesada luminária para a mesa.
Gutte, ganz gutte. A língua alemã é uma das grandes realizações da humanidade.
― Veja como são as coisas, naquela época, imaginava que o meu papel era preparar as pessoas para um novo mundo, um mundo livre das amarras da tradição, no qual caminharia altivo um outro tipo de humanidade: o Novo Homem! E na verdade, o nome que nos davam, Präparatoren, não correspondia exatamente, vocês sabiam que aquelas meninas eram carne de caça... acompanhei o destino de algumas, todas acabavam ficando com a expressão estúpida e sinistra dos animais empalhados. Mortas-vivas.
― Certos predadores não conseguem se alimentar de comida industrializada, já devia ter entendido isso. Mas reconheço que as coisas andavam um pouco fora de controle naqueles tempos... O bilhete da menina foi parar na imprensa, houve uma indignação nacional, cerco da polícia... tivemos que devolvê-la, e como saiu cara a operação abafa! Ainda hoje nos causa problemas: mora na Argentina e trabalha numa ONG de combate ao tráfico humano ― acendeu o pavio, espalhando na cabana o cheiro de querosene.
― Não sabia disso.
― Uma amolação sem fim. Porém, noto que não ficou imune a ela... ignoro como está atualmente, mas era belíssima...
― Sim, muito bonita. Foi a única mulher que eu achei que poderia ficar junto pra sempre ― Fidencio reparou que o interlocutor não relaxava o estado de alerta. Decidiu baixar o tom: ― Mas não reclamo, talvez não fosse a hora certa. Deus pôs de tudo no meu caminho, menos o juízo pra dispor dessas graças.
― Fico feliz de não encontrar em você o ateísmo explícito, o niilismo metafísico que a cultura judaica inoculou no meu povo, fermento da degradação e dissolução das civilizações superiores...
― Como pode não perceber que o ódio é um combustível corrosivo para a alma? Passei estes anos todos me odiando pelo que fiz com aquela moça; como vê, isso não me fez nada bem, Herr Silberblick.
― Bah, bobagens românticas! A vida, em seu todo, é um campo de forças regido pela entropia, onde as quantidades de energia são desigualmente distribuídas. Não há descontinuidades: onde uma coisa avança, a outra recua, um acréscimo de força em um lugar, significa uma redução em outro, uma força domina a outra, assimila-a, desfaz-se, é engolida por outra força, e assim por diante, um jogo sem sentido, mas dinâmico, de crescimento, divergência, dominação, combate e morte.
― Destruir é simples, básico, elementar, a vontade de destruição é a energia fundamental da matéria de que somos feitos. Já o amor é luxo, invenção, um artifício supérfluo, e por isso mesmo, fundamental como o ar, a água, as estrelas.
― Fidencio, você pode ter qualquer mulher que quiser, esqueça a indiazinha idiota!
― ...durante anos constrói-se o castelo de cartas, derrubado pelo mais leve sopro...
― Mas, o quê...?
A última peça do quebra-cabeças finalmente se encaixara, e agora ele podia entender a figura por completo, de uma vez por todas. Só o ódio não falta nunca ao encontro. Amor é anomalia, exceção selvagem, artigo rarefeito no mundo e em nós.
O homem das cavernas também entendeu tudo num curto relance, mas não conseguiu impedir o movimento. Fidencio segurou a argola do lampião, girou-o rapidamente no ar e esmagou o crânio do avá yvýpe. Uma gororoba de miolos, cacos de vidro, ossos quebrados e querosene escorriam do corpo caído do líder da colônia Nueva Germânia. Ouviu os jagunços lá fora engatilhando as armas. Pegou a metralhadora do morto, agora o jogo estava equilibrado.