quarta-feira, 25 de setembro de 2013

os construtores de instantes (parte 4)



Saímos pela porta do quarto, mas, em vez de encontrar do outro lado o nosso lar em escombros, fomos sugados para dentro de um buraco de minhoca, um túnel escuro e gosmento em cujas paredes passavam cenas da minha vida, vibrando emoções soterradas por anos de esquecimento diversionista. Caímos, ou pelo menos assim parecia, por um tempo sem margens; às vezes a velocidade aumentava, e então me sentia invadir por uma euforia de vertigem, outras, a lentidão e o peso se instilavam, como se me aniquilasse o arrastar dos aeons. Perdi o Sérgio de vista.
Reencontrei-a numa escadaria insana, dédalo propagando-se em todas as direções e dimensões, bifurcando em excessivos atalhos, por caminhos múltiplos de estratos que se desviam, confluem, anulam, ramificam, num sem-fim de alternativas coexistentes. Pelos degraus subiam e desciam uns curiosos insetos, bichos-rolapé, louva-deus, tatus-bolinha rolando, esbarrando nas pernas, derrubando-nos de uma escada a outra, de um mundo a um mapa, de um mapa a si mesmo, passando por outro mundo, do desenho ao desenhista que retrata seu relicário de planetas e galáxias flexíveis numa gota esculpida na cabeça de um alfinete.
Tudo que sentiam agora era maciço, arcaico e dúctil, um labirinto cosmicômico de possibilidades impensáveis. Mas permaneciam juntos, lado a lado, afinando a arte de viver só. Doralice e Sérgio nunca mais haviam experimentado despertos a sensação de ser, imaginar, fazer, absolutamente qualquer coisa. Tamanha liberdade fazia com que eles deslizassem de um cenário a outro, de uma realidade ao seu inverso, sem o menor controle. Tanto podiam ser uma nuvem, como fundir-se aos pássaros, ou se tornar hectares de planícies, sobrepostas a incontáveis peixes nadando nos abismos sem fundo. Do mar, subiam através do hipertexto aos planisférios siderados, pairando, como as estrelas, os sólidos simples, metamórficos, irregulares e a n-dimensões, habitados por camaleões que caminham em bandas de Moëbius.
Os espíritos deles podiam finalmente abandonar a reclusão da casca de noz onde viviam julgando ser os reis do espaço infinito. Compreendiam, com a alegria e a clareza inaugural dos recém-despertos, que não pode haver o espaço senão no tempo, e que nem este sem aquele existe. O tempo, lápis rombudo, lascas a escavar feições, arestas e contrafações no devir; percebiam descortinar nos olhos da mente o ponto a partir do qual tudo é, as ondas do nada que embalam o sono do deus-colosso a sonhar pelo umbigo todas as geometrias possíveis e inverossímeis. A festa do tempo zero.
Deram as mãos, temeram perder-se naquele caleidoscópio irrefreável.
Até que chegaram ao reino do Dragão Tirano.
Ali vivia um dragão maior que a torre de cem catedrais. Enroscado no cume da montanha mais alta do reino, exercia o terror sobre a população; seus olhos vermelhos vertiam o ódio, da sua bocarra medonha e faminta exalava uma pestilência mortal ― tanto quanto o fogo que soltava das ventas ―, suas escamas negras brilhavam refletindo os últimos raios de um pôr do sol temido por todos. A cada final do dia o dragão devorava sua cota de vítimas: dez mil súditos lhe eram sorteados e entregues quando a estrela vespertina surgia.
Muitos partiram para o combate, se eram bravos ou tolos será difícil dizer; inúmeros os que, sozinhos ou em bando, atacaram o dragão: morreram carbonizados antes de sequer escalar a montanha; magos e alquimistas invocaram sortilégios e destilaram venenos poderosos, mas tudo isso só fazia aumentar o apetite do bicharoco. O rei, conformado, mandou construir uma linha de trem para levar diretamente ao topo da montanha a taxa diária em sacrifícios humanos que o monstro lhe cobrava.
Homens do espírito confortavam as pessoas prometendo-lhes uma vida além da morte, quando viveriam felizes e eternamente libertos do flagelo. Oradores sustentavam que o dragão fazia parte da natureza e tinha o direito moral de se alimentar como qualquer um, argumentavam, com boa lógica, que o sentido da vida é ir parar na barriga do predador: o ser humano seria um ser-para-o-dragão. Outros ainda, viam na tirania do bicho uma forma racional de manter o controle demográfico. O quanto estas doutrinas realmente confortavam o povo é incerto, cada um tentava viver da melhor forma possível e não pensar sobre o destino que pesava sobre as suas cabeças.


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