Saímos pela
porta do quarto, mas, em vez de encontrar do outro lado o nosso lar em
escombros, fomos sugados para dentro de um buraco de minhoca, um túnel escuro e
gosmento em cujas paredes passavam cenas da minha vida, vibrando emoções
soterradas por anos de esquecimento diversionista. Caímos, ou pelo menos assim
parecia, por um tempo sem margens; às vezes a velocidade aumentava, e então me
sentia invadir por uma euforia de vertigem, outras, a lentidão e o peso se
instilavam, como se me aniquilasse o arrastar dos aeons. Perdi o Sérgio de
vista.
Reencontrei-a
numa escadaria insana, dédalo propagando-se em todas as direções e dimensões, bifurcando
em excessivos atalhos, por caminhos múltiplos de estratos que se desviam,
confluem, anulam, ramificam, num sem-fim de alternativas coexistentes. Pelos
degraus subiam e desciam uns curiosos insetos, bichos-rolapé, louva-deus, tatus-bolinha
rolando, esbarrando nas pernas, derrubando-nos de uma escada a outra, de um
mundo a um mapa, de um mapa a si mesmo, passando por outro mundo, do desenho ao
desenhista que retrata seu relicário de planetas e galáxias flexíveis numa gota
esculpida na cabeça de um alfinete.
Tudo que
sentiam agora era maciço, arcaico e dúctil, um labirinto cosmicômico de
possibilidades impensáveis. Mas permaneciam juntos, lado a lado, afinando a
arte de viver só. Doralice e Sérgio nunca mais haviam experimentado despertos a
sensação de ser, imaginar, fazer, absolutamente qualquer coisa. Tamanha
liberdade fazia com que eles deslizassem de um cenário a outro, de uma realidade
ao seu inverso, sem o menor controle. Tanto podiam ser uma nuvem, como
fundir-se aos pássaros, ou se tornar hectares de planícies, sobrepostas a
incontáveis peixes nadando nos abismos sem fundo. Do mar, subiam através do
hipertexto aos planisférios siderados, pairando, como as estrelas, os sólidos
simples, metamórficos, irregulares e a n-dimensões, habitados por camaleões que
caminham em bandas de Moëbius.
Os espíritos
deles podiam finalmente abandonar a reclusão da casca de noz onde viviam julgando
ser os reis do espaço infinito. Compreendiam, com a alegria e a clareza
inaugural dos recém-despertos, que não pode haver o espaço senão no tempo, e que
nem este sem aquele existe. O tempo, lápis rombudo, lascas a escavar feições,
arestas e contrafações no devir; percebiam descortinar nos olhos da mente o
ponto a partir do qual tudo é, as ondas do nada que embalam o sono do
deus-colosso a sonhar pelo umbigo todas as geometrias possíveis e
inverossímeis. A festa do tempo zero.
Deram as mãos,
temeram perder-se naquele caleidoscópio irrefreável.
Até que
chegaram ao reino do Dragão Tirano.
Ali vivia um
dragão maior que a torre de cem catedrais. Enroscado no cume da montanha mais
alta do reino, exercia o terror sobre a população; seus olhos vermelhos vertiam
o ódio, da sua bocarra medonha e faminta exalava uma pestilência mortal ― tanto
quanto o fogo que soltava das ventas ―, suas escamas negras brilhavam
refletindo os últimos raios de um pôr do sol temido por todos. A cada final do dia
o dragão devorava sua cota de vítimas: dez mil súditos lhe eram sorteados e entregues
quando a estrela vespertina surgia.
Muitos partiram
para o combate, se eram bravos ou tolos será difícil dizer; inúmeros os que,
sozinhos ou em bando, atacaram o dragão: morreram carbonizados antes de sequer
escalar a montanha; magos e alquimistas invocaram sortilégios e destilaram
venenos poderosos, mas tudo isso só fazia aumentar o apetite do bicharoco. O
rei, conformado, mandou construir uma linha de trem para levar diretamente ao
topo da montanha a taxa diária em sacrifícios humanos que o monstro lhe
cobrava.
Homens do
espírito confortavam as pessoas prometendo-lhes uma vida além da morte, quando
viveriam felizes e eternamente libertos do flagelo. Oradores sustentavam que o
dragão fazia parte da natureza e tinha o direito moral de se alimentar como
qualquer um, argumentavam, com boa lógica, que o sentido da vida é ir parar na
barriga do predador: o ser humano seria um ser-para-o-dragão. Outros ainda,
viam na tirania do bicho uma forma racional de manter o controle demográfico. O
quanto estas doutrinas realmente confortavam o povo é incerto, cada um tentava
viver da melhor forma possível e não pensar sobre o destino que pesava sobre as
suas cabeças.
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