sábado, 30 de abril de 2011

Marquei!


Perdi o bonde

todos voltavam

eu ainda ia

e nem percebia


Quando dei por mim...

já era!


Fiquei de fora

perdi a hora

o jeito

a graça

a farra


Que raiva!!!

quarta-feira, 27 de abril de 2011

a vida noturna das cobaias - epílogo


[Insatisfeita com os rumos desta história, Rivka Rappoport exigiu conversar com O Autor em particular, diálogo que rendemos a seguir verbatim. Os dois se dirigem a um recinto fechado, situado num metanível. As duas únicas cadeiras do ambiente estão posicionadas uma de frente para a outra. Sentam-se.]

A: ― Que rubrica ridícula é essa aí de cima? E que porra de lugar é este?

RR: ― Segura a língua boçal, só porque saímos da SUA narrativa não quer dizer que os leitores não possam NOS acompanhar aqui...

A: ― Aqui, aqui... isto aqui é lugar nenhum, é uma bosta de um não-lugar discursivo! Palhaçadas deste tipo é que fodem com o pacto ficcional leitor-autor, são o túmulo da verossimilhança e do foco narrativo... este nosso “diálogo” não passa de um excurso inútil e rebarbativo, subproduto da mania das digressões, a modinha das interferências e julgamentos de valor que nos legou o politicamente correto, essa fonte perene dos clichês pós-modernos!... pós-modernidade que, na literatura e na comunicação, aliás, só tem feito proliferar o ruído, o lugar-comum, a irrelevância e a euforia infantilóide ― O Autor tentou levantar-se, indignado, mas uma convenção tácita o prendia à cadeira.

RR: ― Humm, ficou putinho só porque agora não está mais no controle, é? Pois então, bonitão, seus dias de irresponsabilidade demiúrgica chegaram ao fim... você acha que é mole estar na pele dessa nerd sádica em que você me meteu?... Uma carreirista que vai para o Brasil, paga por uma das Big Pharmas, onde irá elaborar protocolos de testes de psicotrópicos em crianças africanas... É ruim, hem?

A: ― Estou farto. Pra mim chega, dar liberdade aos personagens tem que ter um limite... minha filha, acabei de introduzir você na trama, criei um clima, já, já, vai rolar uma tensão sexual entre você e o Oswaldo... serei generoso quando descrever seus atributos físicos mais adiante... ah, e ainda fui condescendente ao não revelar que você matou aquele rato a estiletadas...

RR: ― Sim, claro, Sua Alteza, O Grande Artista, cuidou para que se criasse logo de cara a empatia; primeiro você dá corda forçando a identificação com os meus sentimentos, depois, enforca no repuxo, quando aparecem as conseqüências dos meus atos... Foi isso que você aprendeu nesses cursos de escrita criativa? Eu era para ser só uma personificação da malvada economia de mercado e encarnar o casamento perverso do Saber com o Poder; mas acabei ganhando profundidade e relevo, uma certa ambigüidade de caráter que provoca a aderência do leitor, hipócrita e irmão.

A: ― Você não entende? Este desvio metalingüístico em que caimos, esta maldita dê-erre, faz os leitores fecharem o livro e pular na internet, na TV, no joguinho de celular, no caralho a quatro... a competição é cada vez mais feroz pela deficitária atenção da humanidade... procura outro trouxa, o papai aqui já desistiu de escrever sobre a filhinha rebelde!

RR: ― Filha sua sou sim, mas você não é pai, é mãe. Você me carregou dentro de você, é verdade, mas quem me cria é esse aí, que está nos lendo agora (ou não). Sator arepo tenet opera rotas, o semeador que tem nas mãos as rodas da charrua; será possível que o discurso indireto livre tenha lhe transtornado a esse ponto e você acredite mesmo nisso? Um Taumaturgo que assegura com sua força a rotação do universo...

A: ― ...se Deus pudesse contar a história do Universo, o Universo se tornaria fictício...

RR: ― ... Deus pode muito bem ser apenas mais um frustrado como você, que precisa expurgar nas personagens femininas a rivalidade com a irmã, essa ciumeira que nem vinte anos de divã psicanalisaram... Ela ainda te paga umas contas de vez em quando, não?

A: ― Puta que pariu! O que mais temo nos meus futuros biógrafos é essa psicologia de boteco, explicar minha obra pelas taras, os complexos e a inveja; um papo de cocô-xixi, o pipi do papai e a tetinha da mamãe... Saco!...

RR: ― “Futuros biógrafos”, hahaha, olha só o pedante, se achando o Chuck Palahniuk dos trópicos... acorda pra vida senhor Narrador Onisciente Intruso, você é um escriba obscuro de uma língua periférica... se ainda escrevesse em inglês ou mandarim, vá lá... falando nisso, por que não estou falando a minha língua mãe?

A: ― Bah, língua madrasta é o que é... Você não imagina o sofrimento que é ficcionar, colocar-se entre parênteses e dar vida ao que é familiar e estranho em você mesmo, se doar... olhe para dentro de si mesma: tudo que vai encontrar é um eu fascista e intoxicado de auto-referência...

RR: ― Pára, pára, que eu vou chorar... quanto altruísmo e doação, quase me faz esquecer a aliteração imbecil: “r” de Rivka, de Rappaport e... de rato! Um recadinho em código para os seus amiguinhos acadêmicos se masturbarem com a vibrante línguo-dental.

A: ― Bom, mas o que é que você quer de mim? Por que me chamou?

RR: ― Quero... hãam, ficar viva...

A: ― Kkkk, a doutora PhD, senior researcher da Clínica Mayo pede misericórdia implorando pela sua inexistente existência?

RR: ― Você poderia não me eliminar antes do final do livro? Assim eu continuo viva indefinidamente, ou até posso voltar em outra história...

A: ― Entendi... só que, em vez disso, vou te libertar de vez, como fez o Pirandello com aqueles seis... Por que você não poderia se tornar Hamlet?, afinal, Sócrates existiu mais ou menos que os heterônimos pessoanos?, quem era Whitman, me, I ou myself? Dizem até que Bioy Casares não passou de um personagem que Borges inventou para escrever o romance perfeito que nunca escreveu...

RR: ― Ei, já ouvi falar disso: Kafka dizia que o Quixote na verdade foi uma criação de Sancho para poder viver uma vida aventurosa; você acha que eu poderia...

A: ― Faça o mesmo que eu fiz, crie um universo, dê-lhe consistência e espere... em pouco tempo assistirá seus personagens ganharem vida... e as coisas sairão inevitavelmente do seu controle...

[Rivka Rappoport viu-se repentinamente sozinha no vácuo. Entendeu que havia somente uma coisa que podia fazer. Ela criou o Céu e a Terra em seis dias. Por uma questão de direitos autorais, nosso relato não poderá ir além deste ponto, Rivka Rappoport assinou com uma grande editora e será convidada especial da Flip.]

terça-feira, 26 de abril de 2011

Simples assim!



domingo, 24 de abril de 2011

Simples assim!


Tão pequenas vistas daqui

tantas e tão lindas

brilhando ao longe

vão caminhando impassíveis

ao nosso viver

nenhuma dor as comove

nenhum riso as encanta

nem a poesia as deleita


Nós as amamos

somos encantados

sonhadores

e até nos consolamos

com a beleza delas

e isto nos basta!

sexta-feira, 22 de abril de 2011

a vida noturna das cobaias - 1ª parte



“― Brad costuma seguir uma minuciosa rotina no chuveiro: bate sete vezes no lado direito da cabeça, passa xampu na franja, bate mais sete vezes, desta vez do lado esquerdo, passa creme rinse e bate outras sete vezes. Alterna o lado das batidas para que nenhuma série fique ‘desequilibrada’; repete isto na parte de cima da cabeça e na parte de trás, depois passa para o rosto e o pescoço, e só então, passa para o resto do corpo...” ― a aula da pesquisadora Rivka Rappaport acontecia no salão nobre da Biblioteca Nacional de Medicina do Instituto Nacional de Saúde em Bethesda, Maryland, a alguns metros da avenida Wisconsin e a uns bons quinze minutos de carro do distrito federal, Washington DC.

Havia no ar a expectativa do laboratório chefiado pela Dra. Rappoport ganhar um apoio financeiro substancioso com a campanha nacional de conscientização sobre o transtorno obsessivo-compulsivo. “―... seus rituais envolvem não só a ordem que acabei de lhes descrever, mas também a forma correta de jogar a água e, uma vez terminado o banho, finaliza com a maneira correta de pendurar a toalha. Se ele, no decorrer do circuito completo do banho, inverter alguma das fases ou estiver em dúvida quanto a ter seguido uma alternância estrita das batidas nos lados da cabeça, ele tem de recomeçar tudo do princípio”.

“― Soltos ou em cativeiro, normalmente, os ratos passam um terço da vida acordada se arrumando. Arrumar o pêlo lhes permite regular a temperatura, devido à evaporação da saliva, bem como influencia o comportamento sexual, pela ativação do estro nas fêmeas via os diferentes odores da saliva do macho. Mas o ato de se arrumar também ocorre durante a frustração e o conflito; nessas ocasiões, os ratos se arrumam mais ainda... de toda forma, eles exibem um padrão fixo de se arrumar, tão complicado quanto o de qualquer um dos nossos pacientes.”

A lavagem dos ratos é sempre da cabeça para a cauda: primeiro o focinho é higienizado pelas patas dianteiras umedecidas, em seguida é lambido o resto do corpo, coçar e farejar o rabo encerram o ritual. Inúmeros agentes químicos e lesões cerebrais despertam o programa de arrumação corporal; se retirarmos da pituitária o hormônio adrenocorticotrópico e o injetarmos no cérebro da cobaia, o bicho começará a se lavar exatamente como faz em estado natural. Há também uma série de drogas que fazem com que o rato pare de se lavar. E era uma destas promissoras moléculas que a equipe da Dra. Rivka tinha acabado de sintetizar; ela precisava convencer os decanos do poderoso N.I.H. a investir numa pesquisa com cheiro de Nobel.

“― A questão é saber se alguns animais se arrumam demais devido ao stress da vida em cativeiro...” ― ela já estava acostumada a ver a cena ao acender as luzes pela manhã no laboratório de genética animal: entre as milhares de gaiolas, verificava-se que em algumas todos os camundongos amanheciam com os pêlos e os bigodes completamente cortados.

Todos, menos um. “― O chamado ‘rato-barbeiro’ só age de noite, em geral é do sexo masculino e nunca há mais de um por gaiola...” ― nem ela nem ninguém podia jurar o que quer que fosse sobre a interpretação correta daquele tipo de comportamento, mas lhe fornecera um modelo animal para testar uma linha de medicações que iriam revolucionar o tratamento de pessoas sofrendo de tiques, obsessões, superstições e compulsões que iam desde verificações e lavagens estereotipadas até manias esquisitas como arrancar todos os pêlos do corpo.

Na platéia, o executivo de uma grande empresa farmacêutica européia ouve com atenção cada palavra da palestra; Oswaldo Canhenho Jr vai convidar a cientista americana para uma aula magna no Colégio Latinoamericano de Neurociências, a ser realizada no seu país de origem dali a seis meses. Ele já sabe que o pleito da Dra. Rappoport não receberá verbas federais. Só espera que a fala dela termine para se apresentar pessoalmente, encontro que mudará dramaticamente a vida de ambos.

“― ...em toda a hierarquia zoológica existem exemplos de padrões inatos de limpeza do ninho ou toca, como a retirada de fezes, o enterro de dejetos, defecar longe de casa... hábitos tão básicos para a sobrevivência que fazem parte do repertório de quase todos os mamíferos” ― o que a pesquisadora não consegue explicar a ninguém, nem à sua terapeuta, é o desalento que o seu trabalho vem lhe provocando ultimamente. Rivka Rappoport começou a suspeitar que nunca vai ter um trabalho laureado com o prêmio máximo da ciência; no momento, porém, tudo que pode acessar conscientemente dos seus próprios sentimentos é que começou a sentir algo pelos ratos do laboratório.

É difícil achar um lado positivo nos ratos. Eles são sujos. Eles transmitem doenças, eles guincham, eles se multiplicam sem parar, têm costas peludas e barrigas oleosas. Eles fogem e se esgueiram o tempo todo, mas reagem quando acuados e partem para o tudo ou nada. Na semana passada ela surpreendera uma reação num roedor prestes a receber uma dose letal de medicação. Ele a olhou dentro dos olhos. Primeiro sentiu pena, depois desprezo, então, viu-se tomada por uma raiva cega que a fez fugir imediatamente antes que o matasse.

O que a levou a suspeitar que talvez existisse alguma coisa naquelas criaturas ― a mesquinharia desenfreada? O egoísmo congênito? O apetite voraz, que lhe cai com tamanha naturalidade e que tão cruelmente a lembrou dela mesma?


[Insatisfeita com os rumos desta história, Rivka Rappoport exigiu conversar com O Autor em particular, diálogo que rendemos a seguir verbatim. Os dois se dirigem a um recinto fechado, situado num metanível. As duas únicas cadeiras do ambiente estão posicionadas uma de frente para a outra. Sentam-se.]

terça-feira, 19 de abril de 2011

Pequeno ensaio sobre a mentira.



A indignação e o espanto tomou conta de seu rosto e o amigo sem jeito tratou de encerrar o assunto.

O outro até tentou continuar, mas ele não quis. Estava totalmente sem graça. Foi embora ruminando o acontecido. Caso olhasse para trás, surpreenderia o olhar triunfante do amigo.

Este se deixou ficar por lá mesmo, entrou num café e satisfeito pensava como mentia cada vez melhor.

Lembrou o longo caminho que percorrera até ali desde menino. A mãe perguntando se ele tinha feito aquilo e ele na sua inocência dizendo que sim e logo a surra, o castigo, o espanto. Magoado não compreendia por que era para o bem dele. Ficou com medo de responder as perguntas, mas, ela percebia pelo seu medo que fora ele. Aprendeu a disfarçar o medo, mas ela desvendava por outras evidencias e ele foi aprendendo a disfarçar cada vez melhor. A grande "sacada" foi quando descobriu que não precisava esconder as emoções e sim usa-las. Foi assim que ele procedeu há pouco; a energia do medo, da apreensão fora usada para mostrar indignação, espanto e aí à mentira era quase uma verdade. As pessoas, quase sempre, preferem acreditar no que é mais fácil para elas e o engano é quase um acordo mudo feito entre as partes .

O amigo foi embora triste sabia que ele tinha mentido que tudo era encenação, conhecia os truques todos dos mentirosos poderia ser um deles se quisesse, e de certa maneira o era fazendo de conta que acreditava. Não queria entrar em uma discussão inútil, não tinha provas e tudo ficaria no campo subjetivo das impressões.Ele tinha aprendido também outra lição na vida que era calar o que a inteligência percebia e não podia provar e passar por tonto como acontecera há pouco.

A amizade terminaria ali, naquela conversa. A mascara da hipocrisia estaria no rosto dos dois impedindo qualquer contato verdadeiro e isso o entristeceu demais.


domingo, 17 de abril de 2011

Os Fukushima - epílogo


― Olha pra mim vagabundo, vê quem vai te mandar pro inferno ― Iuri estava numa clareira com a arma engatilhada a poucos metros de um bandido que caíra na fuga e tentava desesperadamente recarregar a garrucha. ― Minha Nossa senhora, não pode ser... você?!

― ... ― Yuriko não conseguia falar, contra a vontade dela os olhos se encheram de lágrimas. Estava vestida como se fosse um homem.

― Por que você tá assim? O que é que você tá fazendo no meio desses caras?... ― tentou ser durão por alguns segundos, mas correu para abraçá-la chorando como a criança que estava deixando de ser.

― De que outro jeito eu ia te procurar? Meus pais não queriam me deixar sair de casa, os celulares mudos... as estradas todas zoadas... escuta, os outros não podem saber que... você sabe...


Iuri voltou para junto da queda d’água e chamou o tio para uma conversa a sós. Queria se despedir e também pedir-lhe a bênção. Contou que estava partindo com a matula, pediu para ficar com a arma que portava e para levar uma das montarias. Hideo ouvia os argumentos do adolescente calado, a cara trombuda. Pensava, pesava os prós e contras da história toda.

― Moleque, como é que vou dizer pro seu pai e sua mãe que deixei você ir embora com um bando de marginais?

― Tio, ser feliz não é só se agarrar a um lugar a vida toda, diz pra eles que torçam por mim. Quando chegar a hora, que vai ser a hora de todos, vou estar do lado dela e vou estar feliz. É o que importa.

Mário Hideo Fukushima tomou o rumo de casa com a noite caindo e o ânimo surpreendentemente leve; não perdera nenhum homem em batalha, recuperara uma parte do milho roubado e sabia que estava fazendo exatamente o que queria fazer, vivendo exatamente a vida que desejou para si. Lembrou de uma passagem quando tinha mais ou menos a idade do sobrinho, época em que a sua família estava longe de ser a potência econômica de hoje. Fazia a ronda nos puteiros da região, mas não tinha um tusto nem pra puxar um gato pelo rabo; pedia uma cerveja que tinha de durar a noite toda e ficava lá, fazendo-se de amigo das “tias”. Até que uma marafona lhe abriu os olhos e disse: “Marinho, não se engane, você aqui só faz papel de tonto, a gente chama caras como você de ‘chimbador’: o sujeito vem, sente o perfume do amor, passa a mão, admira a mobília e... não faz nada! Guarde, espere, e só apareça quando puder ter uma dama de verdade”.

Ela estava certa. E agora, com o prazo encurtando feito um pavio, mais ainda perda de tempo seria viver no faz-de-conta, na mágoa disfarçada de saudade, ou mesmo praticar a violência desenfreada. O problema está justamente no tempo que se leva para perceber: sabemos imediatamente quando (quanto e como) sofremos, antecipamos milhões de dores imaginárias, o que muitas vezes só descobrimos depois é o tempo em que éramos felizes e não sabíamos. A velha história do farol que só ilumina para trás. Levantou a vista para o céu estrelado e os seus olhos procuraram imediatamente Buluc Chabtam, que lá estava, cada vez maior, o seu brilho mortífero engolindo progressivamente as Três Marias. Pensou nos dois adolescentes fujões, depois pensou nele mesmo, na mulher e nos filhos. Ainda lhes restava mais alguns meses.

sábado, 16 de abril de 2011

Os Fukushima - parte 2


― Iuri, seu tio não gosta de ver você desse jeito. Você faz um bom trabalho no computador, como quando recebeu o aviso de que a represa da Ponte Nova tinha estourado, mas não pode ficar o dia inteiro ligado nisso. Não há mais tempo pra ficar banzando, descubra o que é a coisa mais importante de todas na sua vida e faça o que tiver que fazer.

― Hideo-san, não tenho feito outra coisa... estou atrás dia e noite da única pessoa que me interessa. A Yuri, tio... a merda é que a internet agora passa a maior parte do tempo fora do ar...

― Yuri? Ah, sim, Yuriko! Ela é da família Tomome, não?... hmm, aquele pessoal lá como é que ficou? Lá também se arruinou uma barragem, não foi?, a Ribeirão do Carmo...

― Agora tenho uma informação, ela foi vista aqui perto, a leste de Ribeirão do Pote...

― Hmm, aquilo lá tá tudo alagado, a rodovia submergiu e o mato virou várzea... peraí, acho que é lá que estão muquiados aqueles vagabundos que cataram nossa colheita de milho, a gente podia chegar lá e tomar deles de volta ― Hideo calculava unir o arriscado ao útil, quer dizer, arriscado para o sobrinho, porque não havia garantias de encontrar a menina, mas útil para o seu grupo, onde vários homens estavam precisando descarregar sua testosterona contra um inimigo externo antes que se voltassem contra a própria comunidade.

Partiram cedo na manhã seguinte. O grupo reunia doze homens armados, três mulas e botes infláveis.

Por volta das duas da tarde, após descerem a estrada do Paraitinguinha, avistaram o talude derruído de uma pedreira que ficava contígua à rodovia Rolim de Moura. Um capiau passou com uma rede de pesca e um saco de juta. Cuidando para não serem vistos, os Fukushima resolveram cortar o caminho do pasto subindo por uma picada até o topo do morro, onde seguiram por três quilômetros de encosta até uma espécie de anfiteatro de erosão natural no meio das colinas. Um córrego descia morro abaixo partindo de uma garganta, parando ali como que para respirar numa lagoa escura e ampla rodeada por pedras. Cada um parou também para se refrescar, os homens se embrenharam na vegetação atrás de uns preás, o chefe da expedição sentou-se numa pedra à beira da lagoa e acendeu o cachimbo enquanto observava o sobrinho.

Um barulho na folhagem atraiu a atenção de ambos por um segundo; quando se viraram, na margem oposta havia um sujeito com uma cano serrado, à esquerda de onde Iuri se encontrava e bem de frente para Hideo. O cano da espingarda era um túnel escuro e indecifrável mirado diretamente neste, que permanecia cachimbando com toda a calma do mundo. Ninguém dizia nem fazia nada; os três apenas ficaram ali, sem se mexer do lugar, fixados no silêncio opressivo. Um gavião-carijó saiu do arvoredo batendo rapidamente as asas, até que ganhou altura ao pegar uma corrente de ar quente; lá do alto, soltou um guincho agudo que cortou os ares como um arrepio. Iuri entendeu que deveria entrar em ação para o tio escapar da cilada; jogou-se para trás do tronco de uma árvore disparando o revólver calibre 32 na direção do cara no outro lado do lago.

Hideo mergulhou para se esconder na mesma pedra em que estava sentado; ele ouviu o estampido dos tiros do sobrinho serem engolidos pelo da espingarda, que soou como um canhão ribombando nos morros da vizinhança. Sobre a sua cabeça, ramos de árvores e arbustos se rompiam como papel rasgado, lascas das pedras alvejadas se soltavam ao seu redor com um som metálico, a superfície da água verrumada por balas perdidas. O tiroteio generalizou-se num alvoroço fumacento e furioso; seus homens disparavam apavorados, fogos vindos do meio da capoeira respondiam, os projéteis passavam assobiando, perdendo-se no meio do mato ou escavando o lenho dos troncos com estalidos secos. Após um tempo, que pareceu durar horas, mas não passara de vinte minutos, a balaceira cedeu completamente. Pouco a pouco, os Fukushima se reagruparam em torno do chefe. Iuri tinha desaparecido.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Os Fukushima - parte 1


Supunhetemos
que de repentelho
o mundo se escabaçasse,
o que siririca de nós?
Nádegas, nádegas, nádegas...


Nos últimos tempos, essa cantilena, vinda de um ponto longínquo da infância de Hideo, irrompia-lhe no pensamento a qualquer hora do dia ou da noite; às vezes trauteava-a distraidamente em momentos vagos, até que se desse conta de que o fazia e parasse encabulado. Não tinha muitos ultimamente, os tais momentos ociosos, que lá isso não podia se dar a muitos desfrutes reflexivos; era uma situação muito delicada no mundo inteiro, e ele, na condição de homem de ação, tinha sido chamado a assumir uma liderança que lhe fora negada nos tempos da bonança. Se no plano coletivo a conjuntura era catastrófica, pessoalmente, Hideo experimentava, aos cinqüenta e seis anos de idade, uma inédita sensação de realização e plenitude: estava tão ciente como os outros de que ia morrer no cataclismo que se avizinhava, mas o reconhecimento tardio lavava-lhe a alma.

Tudo começara há quase um ano, quando a notícia começou a escapar dos meios científicos; a princípio, houve discórdias na confirmação independente dos dados, até que finalmente a comunidade dos astrônomos entrou em acordo que um calhau de cem quilômetros de diâmetro estava em rota de colisão com a Terra. Logo ficou óbvio que a espécie humana não sobreviveria ao impacto: o trambolho era dez vezes maior do que aquele que havia exterminado os dinossauros. O SKA, Square Kilometer Array, maior radiotelescópio do mundo, situado na África do Sul e o LINEAR, Lincoln Near-Earth Asteroid Research, consórcio da Força Aérea Americana, da Nasa e do Laboratório Lincoln do MIT, confirmavam que duas pedras gigantescas haviam se chocado no cinturão de asteróides que fica entre Marte e Júpiter, desprendendo um bólido batizado sarcasticamente com o nome do deus Maia dos sacrifícios humanos: 2012 Buluc Chabtam.

Hideo Fukushima meditava sobre a balbúrdia que era finar-se o mundo de maneira tão sem sentido, uma desorientação em escala planetária se instalara: as instituições, os freios éticos, as religiões, tudo despencara num fenômeno global e simultâneo em que se assistiu ao derretimento dos laços sociais no decorrer de poucas semanas. O Apocalipse com hora marcada da ciência suplantava os pânicos milenaristas das profecias, mandando o esmalte civilizatório para a casa do chapéu; as pessoas abandonavam suas casas, suas famílias, as cidades ficaram desertas, bandos erráticos em busca de alimento tornaram-se a principal ameaça. A paralisação da infraestrutura energética levou à suspensão geral do transporte e das comunicações, o mundo voltava a ser local. Toda a cultura, tecnologia e desenvolvimento se mostraram impotentes para deter o emissário cego da morte e do caos; seria castigo divino por conta da pílula e do casamento gay, os séculos de queima de hereges e combustíveis fósseis, ou apenas a indiferença moral da natureza?

Em tempos tão confusos, o clã dos Fukushima ocupava um território privilegiado no cinturão verde da Grande São Paulo e dispunha da tecnologia adequada para subsistir, já que havia se estabelecido entre os principais fornecedores da região horti-fruti-fungi-flori-granjeira de Salesópolis. A extensa rede fluvial, as matas de proteção a mananciais, a experiência com agricultura orgânica e a disponibilidade de enxofre, carvão e salitre ― ingredientes da pólvora ―, fazia daquela uma região auto-suficiente, desde que ali houvesse uma comunidade disposta a defendê-la. Hideo foi o primeiro a perceber isto e a convencer todos de que se se espalhassem, nada mais os juntaria; morrer por morrer, quanto mais tarde, melhor, e, permanecendo juntos, não estariam à mercê dos roubos, assassinatos e estupros das gangues nômades.

A mãe e os cinco tios, que o haviam preterido na sucessão da empresa familiar que fundaram, aplaudiam-no agora que, por um golpe do destino, ele tomava as rédeas e mantinha a todos unidos em torno de um objetivo comum: sobreviver enquanto desse. Como líder, sabia intuitivamente que a saúde de um grupo depende do bem estar de todos e cada um e por isso é que andava tão preocupado com as atitudes de Iuri; o sobrinho era o geninho da informática, passava o dia conectando-se aos fiapos de conexão que alguns abnegados ainda conseguiam manter na internet, mas o emburramento sorumbático do garoto ficava cada vez mais evidente. Era o tio querido do garoto, que o escolhera como padrinho da perda da virgindade; Hideo levou-o à zona e o apresentou a cada uma das putas pelo nome, como cavalheiro que era.

Já era


Cansei de tanta civilidade

de tanta privacidade

desse silêncio

esse resguardo

esse mundo palatável

agradável


Mistérios enfurnados no porão

falsos pudores

uma ambiguidade

estonteante


Dispensa soldado

e chibata

para exercer seu poder

tudo é sutil e velado


Tranquei o coração

aprendi o jogo e

sinceramente...

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Pietá (Poema de Eunice Arruda e Angela).



Num bloco de mármore
frio branco

Os olhos jovens viram
uma mulher
uma dor
daquele longínquo instante

Quem olha aquela pedra
sabe e sente
o que um cinzel de Michelangelo
transporta

A energia da dor
de Maria
entregando o filho à morte

Tudo ficou naquele mármore
liso suave jamais frio


sexta-feira, 8 de abril de 2011

Poemas de João Melo

The show must go on


Chuck Berry, o inventor do rock and roll,

espetou um aguilhão de ouro

nos tomates putrefactos do racismo

Chuck Berry, com seu cabelo desfrisado,

seus pulinhos de gato

e seus acordes luminosos,

misturou no mesmo palco

e na mesma febre improvável

o que não se devia misturar

Chuck Berry, com seu orgulho negro

sem ressentimento nem arrogância,

gostava de comer

garotinhas branquinhas

curiosas e safadas

Chuck Berry, por conseguinte,

tinha de ser detido

para não continuar a espalhar

a loucura que havia inventado

Chuck Berry foi trocado

por um branquinho de patilhas espessas

e uma crista pedante na cabeça

chamado Elvis Presley



Post Oak Boulevard

Cruzamento de aço brilhante.

A abóbada azul do dia

desce vagarosa sobre os meus olhos,

como uma toalha desdobrando-se lentamente

sobre o tempo. Vagam os meus pensamentos,

como flocos de ar, entre

a alegria e a tristeza.

São complexos os humanos sentimentos:

por que razão insistimos

em reduzi-los a equações simples e miseráveis?

Por que exigimos, a todo o instante,

a comparência dos culpados,

para atirar-lhes à cara

tudo aquilo que temos medo de fazer?

Os pássaros alinhados em cima dos fios eléctricos

nada me dizem. Metáforas impossíveis,

parecem condenados, enrugados e cinzentos,

à espera do pelotão de fuzilamento,

sem saber que o mesmo não existe.

A minha mão está suspensa sobre

a alavanca perplexa,

sem saber o que fazer.

Oiço um coro de buzinas terríveis à minha volta,

mas na verdade ignoro

de onde provêem.



João Melo escritor angolano com um livro de contos "Filhos da Patria" publicado no Brasil pela Record (Rio)


quinta-feira, 7 de abril de 2011

despertar

mesmo que as idéias e as imagens faleçam

em descrever

assim é a imersão no instante-distância que

sempre esteve ali

como se nos tirassem um capuz

da cabeça

que amplitude infinita que alívio

ver o que não foi visto antes como

se a calota da cabeça explodisse e

um bando de pássaros revoasse para fora do

ninho escuro

de repente não há mais causa nem efeito

e tudo apenas se reflete no espelho

nada

pode amarrar ou desamarrar não há fogo

nem fogueira

as coisas como elas são transparentes

bruxuleios ilusórios do

desejo que não mais te fustiga/escraviza

você

apenas está no irremediável fluxo até

mesmo as metáforas que te dei estão

fundidas num

todo sem margens abrangendo o

estado de compaixão a sabedoria as bênçãos a claridade a

ausência

do pensamento este é o despertar do sonho que sonhava

a si próprio

um profundo senso de humor brota de dentro e você

sorri

divertido com a inutilidade do que até então te

preenchia e

só agora te dás conta que inexiste algo além

a procurar nada mais a ser

esperado


Saude não é Higiene


Freud decifrou o enigma da mulher. Depois o trancou na instituição psicanalítica. Até hoje, a professora diante do piano sentencia: penisneid!


Efeitos d´isso: se a assertiva provocar indignação, o homo sapiens (demens) se dedica a escrever o Livro Negro da Psicanálise. Se o assombro produzir identificação secundária com o agressor, então se dedica a defender a mínima diferença. Se for uma pessoa encantada, pode criar uma Terapia, como fez a artista plástica Lygia Clark. Em 1911, Sabina Spielrein escreveu: a “Destruição com Causa do Devir”. Boa coisa pra lembrar neste dia mundial.


Saúde!

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Métrica de Lorentz


Seus dedos distraídos

tocaram minha pele


Tremi


Absorto

você nem notou


Recolhi


Solitária

meu desejo

terça-feira, 5 de abril de 2011

olhares e enganos


12 de outubro de 1979 nascem os filhos de Ana e Fred. Gêmeos idênticos com apenas uma diferença física, o sexo. Frida regida pelo signo de libra, com ascendente em virgem e lua em câncer, sentiu os ares mundanos a partir das 4:13 da manhã daquela primavera pré-oitentista, Fernando veio exatos 12 minutos depois com o mesmo mapa cósmico da irmã. O parto por pouco não se realizou no próprio carro da família. Ana chegou ao hospital praticamente parindo. Tinham pressa a chegar aqueles dois. Frida e Fernando cresceram na mais perfeita sincronia. Era espantoso como os dois se completavam. Mesmos gostos, mesmas sensações, até na fala às vezes se confundiam. Amavam-se infinitamente. Seus pais tinham certa dificuldade em mostrar-se contrários a alguma opinião dos dois, pois eles rebatiam juntos, um na defesa do outro e se os pais não cedessem a discussão acabaria em briga. Sempre tiveram quartos separados, porém, aos dez anos, Frida, que tinha o hábito de dormir despida, foi ao quarto de Fernando e deitou-se vagarosamente ao seu lado. O irmão percebeu alguns minutos depois e a partir deste dia, ambos passaram a dormir juntos todas as noites possíveis. Frida acordava um pouco mais cedo e voltava para a sua cama, para os pais não perceberem. Não sabia por que, mas não queria que eles descobrissem essa parte da sua intimidade com Fernando. Os gêmeos tiveram praticamente todas as suas descobertas compartilhadas, inclusive o sexo. Gostavam de brincar sempre atuando como se estivessem encenando uma peça para um grande público. Os personagens eram irmãos, amigos, amantes... dependia apenas da criatividade deles no momento. Até o dia em que resolveram se entregar realmente um ao outro. Primeiro fizeram um pequeno corte no dedo e misturaram gotas de sangue ao vinho que bebiam, ali selariam sua unidade untando o sumo biológico de cada um. E depois fizeram amor, de um jeito que seus corpos se confundiam, viraram uma só verdade. Fernando penetrava Frida e ao mesmo tempo em que sentia o seu órgão dentro dela, sentia como se também estivesse sendo penetrado, a partir dali sabiam que nunca mais poderiam ser de mais ninguém, seria um afronte a natureza. Seus pais nada sabiam até o dia em que Ana, passando por um período estressante no trabalho, teve insônia e resolveu vagar pela casa. Ao passar pelo quarto de Frida, ouviu gemidos e murmúrios de prazer. Foi então que ela abriu a porta e deparou-se com o que os irmãos mais temiam que um dia visse. Ana ficou desesperada, mas não teve a reação esperada. Não gritou, não agrediu, estava aparentemente controlada. Apenas deu as costas, foi calmamente à sacada e atirou-se do 21º andar. Fred só acordou quando bateram na porta avisando que sua mulher havia praticado o suicídio. Frida e Fernando estavam em seus respectivos quartos fingindo dormir, como se nada tivesse acontecido. Cinco dolorosos anos para Fred se passaram. Teve de responder inquérito policial, cuidar de todos os bens da família e principalmente indagar-se todas as noites o por que do suicídio do amor de sua vida. Frida e Fernando, ao mesmo tempo em que sentiam a dor da perda da mãe, sentiam-se aliviados por sua morte, assim seu segredo estaria guardado a sete palmos. Continuaram suas vidas, suas atuações, discussões e relações sexuais. Certa vez, numa de suas divagações, Frida dizia sentir-se em um mundo prémoldado. “Você não tem espaço para criar o novo... o novo já existe, já tem nome, definição e todos os rótulos possíveis. Isso nas artes, na escrita, nas relações... Tudo tem um rótulo e um julgamento e eu não agüento ficar presa a essas amarras.” Fernando concordava e dizia que também se sentia assim, mas que pelo menos eles tinham um ao outro e isso já era uma forma de se desprender. “Pois ninguém tem o nosso privilégio de ter nascido, crescido e vivido todo o tempo com a sua metade. Somos a mesma pessoa em corpos diferentes e por isso ficaremos unidos para sempre”. Os irmãos nesse mesmo dia resolveram ir a uma festa da faculdade. Frida e Fernando tinham que cuidar para não serem percebidos, pois seus olhares eram tão explícitos que pareciam denunciá-los a cada segundo. Frida, por um instante, foi pegar uma bebida, enquanto o irmão conversava com um grupo de ex-colegas. Fernando então foi beijado por uma das garotas embriagadas no momento em que Frida retornava. Ela ficou atônita, nunca haviam se relacionado com outras pessoas sexualmente, e até nas amizades eram superficiais, pois pensavam não precisar de outros seres humanos para serem felizes e completos, bastavam os dois. Frida saiu correndo antes que Fernando percebesse que ela havia visto o beijo indesejado. Ele, em seguida, empurrou a beberrona e saiu à procura de Frida que, no momento em que ele a encontrou, já estava morta no meio do asfalto, atropelada por um ônibus. O motorista desesperado dizia que ela se atirou na frente do veículo. Fernando, ao ver o seu corpo estirado no chão ensangüentado e sem vida, roubou a arma de um dos policiais que estava em volta do tumulto e sem pensar em mais nada deu um tiro na boca. A última palavra que veio a mente dos dois antes de morrer foi “traição”.


Rafaela Uchoa

domingo, 3 de abril de 2011

mp3 na Somália

R nasceu em Berbera, no norte que se separou do resto do país e se rebatizou de Somalilandia, nome da antiga zona de colonização britânica. Filha de um dos raros médicos da região completou o ensino médio, fez um curso de socorrista e conseguiu só ser entregue em casamento com 18 anos, ou seja, três mais tarde que as duas melhores amigas. O pretendente frequentava sua casa e ela achou graça na proposta, até se sentiu lisonjeada com a possibilidade de ter vida completa de mulher, sem necessidade de ficar se tocando e amargar o complexo de culpa em seguida. Aceitou os conselhos dos pais, apenas com a condição de não ter filhos antes dos 21 anos.

O marido concordou. Era um comerciante rico que negociava a partir do porto de Berbera com Aden e Djibuti e que além dela só tinha mais uma esposa, pelo menos por enquanto.

Os negócios dele começaram quando nem tinha 20 anos, com venda de qat no mercado local e pequenas exportações. Dois anos depois tinha acumulado o suficiente para virar honesto, quer dizer, trabalhar com produtos legais, subir os preços em caso de escassez e pagar uma miséria aos empregados.

Relativamente liberal autorizou R a viajar para Hargeysa fazer um curso de 30 dias sobre profilaxia anti-infecciosa. Nesse mês os estudantes da cidade fizeram manifestações de protesto e R entrou numa delas rudemente reprimida.

Conversas com colegas como nunca tinha tido, discursos dos manifestantes e a conduta da policia, tiraram o véu que escondia seu lado aguerrido. O marido soube do envolvimento e acabou o liberalismo.

Quando os interesses de classe podem ser atingidos, qualquer pessoa como ele em qualquer canto do mundo mostra o lado primata. Se no governo soubessem que uma de suas esposas tinha participado em atos hostis, perdia mais de dois terços dos negócios e ela levou uma surra monumental, a primeira em dois anos de casada, portanto abaixo da média na região.

Ela ouviu muito vagamente os gritos dele “e agora acabou, você vai me dar um filho ainda este ano” porque desmaiou e quando acordou o ouvido direito zumbia.

Depois teve convulsões e caiu de novo.

Chamaram o pai que quando viu o estado da filha sentiu um empurrão no peito, falta de ar e raiva. Tratou as feridas abertas, os hematomas e levou-a ao hospital para raios-X em algumas partes do corpo com suspeita de fraturas. Trouxe a filha de volta sempre em silêncio com surtos de lagrimas nos olhos, e foi embora sem nem se despedir do genro, curvando-se ao respeito devido ao marido que, nas semanas seguintes não deixou a mulher sair para lugar nenhum enquanto estivesse com marcas no rosto, principalmente perto dos olhos. Nunca se sabe, pensava o comerciante, se ela queixa na policia ou no tribunal e está lá um policial ou juiz com ideias bizarras...

Mas não se incomodou com a repercussão da surra. Oxalá a noticia chegasse ao conhecimento de algum ministro para não terem duvidas sobre a lealdade dele.

Mais de um mês após a queda do liberalismo em casa, R sentiu falhas na vigilância e em minutos juntou numa sacola roupas e dois sapatos rasos, alguma comida, a escova de dentes, um pente, dois cadernos, uma bic, o mp3, uma bola de tênis dos tempos escolares e os joias presentes de casamento e aniversários.

Saiu de casa pulando o muro dos fundos, andou rápido nas ruas próximas e numa loja de joalheiro vendeu duas joias. Conseguiu lugar num superlotado caminhão para Hargeysa e se sentiu tão livre que até achou legal o desconforto da viagem. Os passageiros eram quase todos homens e das dez mulheres só duas desacompanhadas...

Em Hargeysa procurou uma das colegas dos dias da agitação e esta disse ao marido que R tinha vindo tratar de assuntos familiares e ficaria lá em casa uns dias. Só ficou dois, ela sabia que o marido ia procurá-la. Mesmo assim arriscou ligar para os pais. Quando acabou de falar sentiu um longo silêncio e de repente ouviu a voz da mãe um pouco longe do celular “Allah é grande e vai te ajudar”. O pai só disse com voz áspera “espero que tua mãe tenha razão”.

A colega despistou o marido que queria fazer gentileza arrumando “transporte decente para o regresso a Berbera” – como todos os grupos vigiados, mulher muçulmana é craque em despiste – e iria despistar o marido da outra, se ele aparecesse, dizendo-se escandalizada e enganada pela amiga.

R seguiu para o lado oposto de Berbera, fronteira com a Etiópia, pertinho de Hargeysa.

O destino dela era Mogadiscio e a volta pelo Ogaden nem aumentava a distancia e era mais seguro. Desde a separação com o resto da Somália, as forças da Somalilandia mantinham sua fronteira sul muito patrulhada, infestada de minas e do outro lado as milícias dos clãs eram numerosas.

Entrou em território etíope sem problema, mas nesse dia começou a ansiedade quase constante que lhe acompanha a vida até hoje. Á noite em Jijiga teve muito medo. Numa barraca do mercado, iluminada com candeeiro a petróleo, vendeu mais uma joia. Deu cem birr a uns meninos de rua e perguntou-lhes onde podia comprar uma pistola.

Os garotos apontaram para um homem que fumava cigarro estrangeiro e andava com uma pasta de couro. Comprou uma 9 mm e o homem disse-lhe para tomar muito cuidado porque o exército etíope controla tudo o que é arma, mesmo de pequeno calibre e aqui não é a bagunça da Somália.

Quem vive num ambiente nômade ouvindo historias de nômade e noticias de nômade, tem técnicas de viagem para derrubar imprevistos, mas no meio daquela miséria ficava difícil uma mulher encontrar local para dormir.

A beleza dela era uma dificuldade a mais. Num meio desses, beleza só ajuda quem quer marido rico ou emigrar para os países ricos. Todos se perguntariam como uma mulher daquelas estava ali sem família nem teto ou então pensavam que era prostituta.

O medo ás vezes ajuda. Sem muitas alternativas falou com uma senhora que amarrava duas cabras e expôs a primeira de grandes histórias inventadas para não levantar suspeitas e concluiu dizendo que pagava pela hospitalidade.

- Se tem dinheiro isso ajuda minha família, mas se não tem pode ficar igual...

Outra característica de grande parte das mulheres muçulmanas é a solidariedade entre elas, como em geral acontece entre membros de grupos oprimidos... Pelo menos enquanto estão oprimidos.

Dormiu numa esteira enrolada no lençol que trouxe de casa e foi acordada por enxames de moscas. Vendeu outro colar e pegou um velho ônibus que ia pelas montanhas até El Fud. A história que inventou desta vez dizia que procurava o marido ferido num ataque.

Pouco antes do destino, o ônibus pifou e foram chamar um mecânico que morava a mais de duas horas dali. Só continuariam na manhã seguinte se tudo corresse bem, quer dizer, se não fosse preciso substituir peças importantes e ela aproveitou para rezar perto da mesquita.

Á entrada do vilarejo viu uma pequena capela, sinal da existência de moradores cristãos numa zona de larga maioria islâmica. No planalto amarico ocorre o inverso. Desde que saiu do ônibus pifado ela viu pessoas que a olhavam como grande novidade e que, á primeira vista, tanto podiam ser de etnia amarica, oromo ou somali.

O minarete da mesquita dominava a paisagem, não havia como errar. Atravessou a rua e dois tipos com ar de grandes mascadores de qat, vieram atrás dela com piadas cada vez mais porcas, chamavam como se chama cão vadio e finalmente colaram nela dizendo que mulher decente não pode andar por ali sem proteção de um homem e que a partir desse momento estava sob proteção de dois homens.

Com as risadas e os dentes dos grandes mascadores, disseram que era melhor ela ser obediente e o mais alto dos dois apalpou-lhe os seios e ia apalpar a bunda.

R deu um empurrão tão forte que o cara caiu soltando palavrão e o mais baixinho gritou

“Cadela dos infernos! Quem é você?”

Com o rosto descoberto ela não teve duvida em olhar nos olhos dele, ao contrario do que uma boa muçulmana deve fazer quando fala com um homem.

“Eu sou uma daquelas que vocês chamam puta! Puta ouviu? Acontece que para mim vocês são montes de merda porque foram paridos pelo cú”.

O baixinho tirou uma faca de mato e avançou para ela.

R meteu a mão na sacola puxou a 9 mm e aproximou o cano da testa do baixinho. O mais alto fugiu e abandonou o colega que deixou cair a faca, paralisado. Ela sabia que não se aponta uma arma sem ter intenção de atirar e pensou “se ele se mover para trás deixo ir, se dá um passo em frente ou para o lado, queimo este verme, nunca mais me vão bater sem troco”.

Uns homens que seguiam a cena impassíveis resolveram intervir e olharam para ela com respeito. Devem ter pensado que um mulher daquelas por ali com uma arma, ou tem as costas muito quentes ou, pelo contrario, tem de abrir caminho nem que seja a tiro.

“Senhora, não atire, ele é drogado, deixe que o levamos daqui.”

R prosseguiu até a mesquita, lavou as mãos, os braços e o rosto, estendeu um pano azul do lado de fora e virou o corpo para a Meca. Nesse momento chegava o muerzin, um velhinho de olhar bondoso e disse que esta mesquita tem lugar para mulheres, ela pode rezar lá dentro.

Quando acabou, o muerzin ofereceu-lhe a casa até que consertem o ônibus.

“Minhas mulheres vão ficar contentes de te receber”, acrescentando que o melhor é colocar a arma por dentro do vestido junto ao corpo. “Na bolsa pode não dar tempo se você precisar de novo. Sua sorte com aqueles malvados é que não tinham arma de fogo...”.

Na madrugada seguinte pelas cinco da manhã, depois da oração matinal o muerzin levou-a até ao ônibus. É difícil dizer quem estava com mais medo: se ela em relação aos passageiros, se estes em relação a ela.

Soltando uma fumaça desgraçada o ônibus arrancou de novo ás sete e meia.

Mudou de transporte em El Fud e, desse jeito foi indo até chegar a Mustahil, nas margens do rio Shabelle que nasce nas montanhas etíopes e deságua na costa somali. Repetindo quarent afro-rock e afro-reggae pirateados no mp3 seguiu o rio até á fronteira e entrou na Somália.

conto extraido de livro "Relato de Guerra Extrema e Fragmentos de outros extremos" - romance e quatro contos

Autor ainda do romance "Café Gelado"

e da tese de doutorado"Valoração da água em Economia do desenvolvimento"

BLOG DO JONUEL - UOL Blog

(José Manuel Gonçalves) Jonuel

dia 2 de abril a pça da Sé ficou azul




sábado, 2 de abril de 2011

de ontem para hoje

Não é de pulso ou de parede
Não é d'ouro, prata nem
Não de doze as vinte e quatro
Horas que ora os deuses trazem:
Guarda!
poema de Peggy Carvalho do livro: "A Hora Violácea"
(em homenagem a José Paulo Paes)

Ventura


Em dobras vermelhas

escuras e claras

a flor

aberta

plena

oferece-se

ao pássaro

sem pejo

ou preguiça