Entrei por ali.
Depois de um tempo andando, a estrada se
reduziu a uma viela invadida por capoeiras altas e cipós, na beira do caminho entreviam-se
os mourões das cercas dos fundos de um casario de taipa. Eram barracos sem
acabamento, escondidos pelas tramas do varal das roupas, colorida e disparatada
caixa de lápis balançando na brisa. Um galpão de madeira apodrece calmamente
infestado de tumbérgias e capim, o pau-jacaré crescido no meio das folhas
despencadas do portão. Calor. Grilos. Mutuns cruzam o ar. Coado pela rama das
árvores, o sol imprime na grama as manchas amarelo-escuras da pelagem do
leopardo. As abelhas zunem nos cachos das mangueiras, ou aglomeradas nas florações
da madressilva, da calêndula e do melzinho-de-celeiro.
Um tranco no
lado direito do corpo.
Sérgio acorda
de susto, irritado pela brusca transição. É só mais uma ataque de sonambulismo
da mulher. Às vezes acontece. São os soníferos.
Está indo para
o banheiro. Tranqüiliza-se, vira de lado. Quer voltar para o mesmo sonho.
Havia perto a presença fresca de água
corrente, não vista nem ouvida, mas sentida, como um espírito da mata. Dou mais
alguns passos...
Ela o sacode
pelos ombros, não há jeito. Abre os olhos.
― Sérgio,
acorda, por favor. Sérgio!
Doralice parece
aterrorizada. Barulhos e pancadas ressoam no quarto, como se estivessem
marretando as paredes e falando em rádios lá fora. Sérgio senta-se na cama.
― Mas que?...
― Vem ver...
tem um monte de gente na nossa casa...
O apartamento
deles estava no chão. Literalmente. Entulho, pedaços de piso e ferragem
retorcida atravancavam a passagem onde antes havia cômodos; a poeira grossa do
ambiente turbilhonava ao ser cortada por fachos de luz branca acoplados nos
capacetes dos operários. Protegidos por macacões vedados e máscaras de gás, uma
numerosa equipe trabalhava sem lhes prestar atenção. Falavam sem parar na tela
de comunicadores portáteis.
Somente os
quartos deles e das crianças tinham sido poupados da demolição. Todo o resto,
destruído.
― Você não vai
fazer nada, Sérgio?
― Ei, moço,
senhor... por favor, alguém pode me explicar o que está acontecendo?
Finalmente, um
dos sujeitos deu sinal de ter percebido a existência deles. Ainda assim,
continuou a falar numa espécie de walkie-talkie amarrado ao pulso.
― Câmbio.
Gerenciamento de operações domésticas, temos uma situação aqui no setor
quatorze, grupo esmeralda, câmbio.
― Hã,
situação? O que vem a ser isto? O que estão fazendo na nossa casa? ― abraça a
mulher confuso, não só o apartamento está praticamente em ruínas, como o teto e
as paredes derrubadas tornam visível uma noite estrelada que não deveria estar
ali.
― Eu quero
saber se os meus filhos estão bem!
― Senhor,
senhora, vou lhes pedir que aguardem a chegada do nosso supervisor de
ocorrências excepcionais. Ele vai explicar tudo pra vocês. Por enquanto, a
instrução que recebi é para que aguardem aqui sem interferir com o nosso
trabalho.
Um grupo se
aproximou do casal, cercando-o, dando a entender que qualquer resistência seria
inútil. Capitularam silenciosamente, Sérgio sentou-se num monte de destroços
onde se viam os pedaços do home theater da sala de TV. Passado um tempo que não
lhes pareceu muito nem pouco, apenas excessivo, chegou um homem vestindo terno
e sem o ridículo uniforme laranja dos outros. Também falava no mesmo
comunicador portátil, do qual recebia continuamente instruções.
― Queiram
aceitar nossas desculpas, creio que houve uma falha no sistema. Mas não se
preocupem...
― Falha no
sistema!? ― Doralice explodiu ― Pois saiba que a sua “falha no sistema” detonou
o que nós construímos com muita dificuldade! Além do mais, esses seus
brutamontes encapuzados nos impediram de ver os nossos filhos!
― Não seja por
isso, venham ― um corredor polonês se formou e os três se encaminharam ao
quarto das crianças. ― Por favor, é extremamente importante que não acordem as
crianças.
― Vamos deixar
uma coisa clara aqui, senhor Men in Black: você
não vai me dar ordens no que diz respeito aos meus filhos, copiou?
Entreabriram a
porta. Os meninos dormiam profundamente.
― Poderíamos
continuar a conversa em particular, no aposento de vocês?...
Sérgio tomou a
dianteira. Temia as reações da mulher, a fúria nos olhos dela era por demais
conhecida.
― Bom, será
que você pode nos dar alguma razão plausível pra esta confusão no meio da
noite, senhor?...
― Scholem, sou
gerente de ocorrências extraordinárias. O que aconteceu aqui hoje não devia ter
chegado ao conhecimento de vocês, na verdade, acho que foi causado por um
efeito colateral do sonífero que a senhora tomou, dona Doralice...
― Como é que
sabe o meu nome, o que eu tomo ou deixo de tomar? Que ocorrências paranormais
são essas?! Como é que você sabe tanto das nossas vidas?
― Calma Dodó,
calma, tenho certeza que há um tremendo engano nisto tudo. Senhor Scholem,
continue...
― Pra não dar
muitas voltas ao assunto, serei direto: somos da equipe de construção de
instantes, trabalhamos com a realidade percebida e por isso estamos demolindo a
casa de vocês. Enquanto dormem, não precisam dela, não necessitam que ela
exista fisicamente, quero dizer. Quando acordarem, tudo estará nos seus devidos
lugares, objeto por objeto, paredes, piso, quadros, bibelôs, louças,
eletrodomésticos, enfim, tudo.
Caíram
sentados em cima da cama, boquiabertos, bovinamente estupefatos. Doralice se
recuperou primeiro.
― Você está
dizendo que a nossa casa não existe enquanto estamos dormindo?
― Pra ser
totalmente rigoroso, nada existe sem que alguém esteja consciente disso. Pensem
no tamanho do universo, o gasto enorme que seria se tudo existisse o tempo
todo. Absolutamente insustentável em termos energéticos. Por isso, mantemos as
coisas aí somente enquanto os seres as percebem, vivem nelas. Claro que com os
telescópios e sondas espaciais o nosso trabalho aumentou bastante...
― Que puta
absurdo! Nunca ouvi uma lorota maior que essa... cê tá acreditando nisso?
― Dó, eu acho
que nós ainda estamos sonhando...
― Só se
estivermos sonhando o mesmo sonho. E te garanto que, neste momento, eu sou eu
mesma!
― Quando vocês
sonham, nosso trabalho é muito menor: apenas uma questão de estímulos
neuroquímicos. Muito mais limpo e prático. Difícil mesmo é reconstruir
galáxias, supernovas, quasares, buracos negros... Pensem naqueles objetos que
vocês têm a certeza de ter deixado num lugar, e quando procuram não estão lá. São
pequenos erros da nossa equipe, a gente repõe numa gaveta esquecida pra ninguém
desconfiar.
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