Gradualmente
se deu conta da impossibilidade de convivência. O semi-anão corcunda ramelava o
ambiente com sua cadência de lesma, desprendendo miasmas depressivos nas
frestas da conversa mole, tateando, rodeando, farejando as suas reações em
busca de alguma dobradura na alma onde assestar o aguilhão cujo ácido imobiliza
os nervos da presa antes de devorá-la viva, pedaço por pedaço. A pestilência
gelada e metódica embalava paradoxalmente uma tentadora proposta de novos e
lucrativos empreendimentos.
― Fidencio
Estigarribia, um belo nome de político. Nunca pensou nisso? Já temos um
histórico comercial longo, laços firmes: sua carreira vem numa ascendente, começou
prospectando... passou para o ramo dos minérios, máquinas, armas... enfim, achei
que era chegada a hora de introduzi-lo no business que é a nossa verdadeira jóia
da coroa: o gás.
― Gás?!
― Sim, gás
xisto. Os americanos decidiram-se pela auto-suficiência e vão substituir a
matriz energética dos hidrocarbonetos pelo shale
gas. Eles têm a necessidade e a vontade, nós, a expertise adquirida em uma
experiência secular vivendo do subterrâneo. De qualquer maneira, não será a
primeira vez que os ianques recorrem à nossa tecnologia...
― Seria uma
mudança bem grande, eu... só posso agradecer a confiança.
― Entenda,
isto equivale a saltar para órbitas mais altas, você passa a freqüentar circuitos
exclusivos, isto envolve viagens, contratos, conexões internacionais, uma
posição de maior visibilidade... daí a necessidade de inseri-lo na política.
― Talvez não
seja tão fácil, há aquele episódio com a garota de San Pedro... Como o senhor
sempre faz questão de me lembrar, eu era um Preparador quando entrei na sua
organização.
― Venha pro
futuro, meu amigo. Você será rico e poderoso, influente, Fidencio, as pessoas
importantes têm um passado diferente das outras, flexível, mutante, capaz de
ser reescrito quantas vezes for preciso!
― Pessoas
importantes têm a vida muito mais exposta que as outras, isso sim...
― ...além do
mais, por ter vivido lá, você é o embaixador ideal para os nossos affaires
americanos ― Silberblick abriu uma pasta preta e tirou dela os papéis onde as
cifras do negócio estavam expostas em projeções, gráficos e tabelas.
― Sabe que
aprendi um pouco da sua língua? Tanto tempo juntos... O senhor se importa de
acender o lampião pra ler? ― levantou-se, caminhou até a parede. Percebeu a
interrupção do movimento da cadeira de balanço, o gringo assumiu a posição de
guarda enquanto trazia a pesada luminária para a mesa.
― Gutte, ganz gutte. A língua alemã é uma
das grandes realizações da humanidade.
― Veja como
são as coisas, naquela época, imaginava que o meu papel era preparar as pessoas
para um novo mundo, um mundo livre das amarras da tradição, no qual caminharia
altivo um outro tipo de humanidade: o Novo Homem! E na verdade, o nome que nos
davam, Präparatoren, não correspondia
exatamente, vocês sabiam que aquelas meninas eram carne de caça... acompanhei o
destino de algumas, todas acabavam ficando com a expressão estúpida e sinistra
dos animais empalhados. Mortas-vivas.
― Certos
predadores não conseguem se alimentar de comida industrializada, já devia
ter entendido isso. Mas reconheço que as coisas andavam um pouco fora de
controle naqueles tempos... O bilhete da menina foi parar na imprensa, houve
uma indignação nacional, cerco da polícia... tivemos que devolvê-la, e como
saiu cara a operação abafa! Ainda hoje nos causa problemas: mora na Argentina e
trabalha numa ONG de combate ao tráfico humano ― acendeu o pavio, espalhando na
cabana o cheiro de querosene.
― Não sabia
disso.
― Uma amolação
sem fim. Porém, noto que não ficou imune a ela... ignoro como está atualmente,
mas era belíssima...
― Sim, muito
bonita. Foi a única mulher que eu achei que poderia ficar junto pra sempre ―
Fidencio reparou que o interlocutor não relaxava o estado de alerta. Decidiu
baixar o tom: ― Mas não reclamo, talvez não fosse a hora certa. Deus pôs de
tudo no meu caminho, menos o juízo pra dispor dessas graças.
― Fico feliz
de não encontrar em você o ateísmo explícito, o niilismo metafísico que a
cultura judaica inoculou no meu povo, fermento da degradação e dissolução das
civilizações superiores...
― Como pode
não perceber que o ódio é um combustível corrosivo para a alma? Passei estes
anos todos me odiando pelo que fiz com aquela moça; como vê, isso não me fez nada
bem, Herr Silberblick.
― Bah,
bobagens românticas! A vida, em seu todo, é um campo de forças regido pela
entropia, onde as quantidades de energia são desigualmente distribuídas. Não há
descontinuidades: onde uma coisa avança, a outra recua, um acréscimo de força
em um lugar, significa uma redução em outro, uma força domina a outra,
assimila-a, desfaz-se, é engolida por outra força, e assim por diante, um jogo
sem sentido, mas dinâmico, de crescimento, divergência, dominação, combate e
morte.
― Destruir é
simples, básico, elementar, a vontade de destruição é a energia fundamental da
matéria de que somos feitos. Já o amor é luxo, invenção, um artifício
supérfluo, e por isso mesmo, fundamental como o ar, a água, as estrelas.
― Fidencio,
você pode ter qualquer mulher que quiser, esqueça a indiazinha idiota!
― ...durante
anos constrói-se o castelo de cartas, derrubado pelo mais leve sopro...
― Mas, o
quê...?
A última peça
do quebra-cabeças finalmente se encaixara, e agora ele podia entender a figura
por completo, de uma vez por todas. Só o ódio não falta nunca ao encontro. Amor
é anomalia, exceção selvagem, artigo rarefeito no mundo e em nós.
O homem das
cavernas também entendeu tudo num curto relance, mas não conseguiu impedir o
movimento. Fidencio segurou a argola do lampião, girou-o rapidamente no ar e
esmagou o crânio do avá yvýpe. Uma
gororoba de miolos, cacos de vidro, ossos quebrados e querosene escorriam do corpo
caído do líder da colônia Nueva Germânia. Ouviu os jagunços lá fora engatilhando
as armas. Pegou a metralhadora do morto, agora o jogo estava equilibrado.
Um comentário:
Butch Cassidy
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