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Não há síntese que faça ponte entre os contrários. A história do mundo acontece
aos trancos e barrancos, tropeçando em contradições não resolvidas, mas
disputadas até que haja vencedor e vencido. O todo pode ser pensado, não
vivido. Só se pode viver aumentando ou suportando os dilemas, cada um
experimenta desde sempre o dilaceramento de contrastes hostis. Nascemos de um
determinado lado dessa contradição, isso faz parte da contingência do existir,
assim como não escolhemos o próprio corpo, a comunidade da língua, nem aquelas
comunidades de corpos chamadas família, povo, etc. Não escolhemos nosso lugar,
apenas o podemos aceitar. E, no entanto, é preciso permanecer fiel à terra...
Fez
uma pausa.
Respirou fundo.
Virou o rosto, semi-encoberto pelo chapéu de abas largas e os óculos escuros,
desviando o olhar do verde da paisagem coado pela renda branca das cortinas.
Afastou-se da janela, descobriu os olhos faiscantes.
Era a primeira
vez que Fidencio Estigarribia se encontrava com um deles. Sentia os pêlos do
braço se eriçando contra a sua vontade. Diante dele estava um homem pequeno e encurvado,
de voz débil, vestindo roupas antiquadas alguns números acima da sua
envergadura franzina.
Um macaquinho
usando um grosso casaco escuro naquele calor. Sim, parecia um monito de jaleo, movendo-se
ridiculamente pela cabana de madeira em despropositado estilo bávaro. Sem embargo,
pressentia nele o aço de uma determinação desconhecida. Lembrou do que sempre
lhe haviam dito sobre aquela gente: nunca andavam desarmados.
Aguardava,
sabia que ainda não era a sua vez de falar. Não deveria se iludir com a
aparente fragilidade física.
― E exatamente
por ter permanecido fiel a nós em todos estes anos de colaboração, é que vim
conhecê-lo pessoalmente. É, desde cedo percebemos que havia um talento incomum
em você... desde que era um Präparator...
O desgraçado
golpeava no ponto mais dolorido. Sem pressa: consciência, autocontrole e
cálculo. Aquilo era uma referência direta ao passado que não queria lembrar, ou
seja, precisamente o que não podia esquecer.
― De fato,
Herr Silberblick, trabalho com vocês desde os tempos do meu saudoso pai. São bons
negócios: quando o senhor ri, eu rio também. E são business variados, sempre trazem
proveito e aprendizado, devo dizer.
― Desculpe se
o corrijo, mas você não trabalha com-nosco,
e sim para nós. Não somos o seu único
negócio, Fidencio, somos o seu cliente indispensável, o cliente que é seu dono.
Sem nós você está falido, perde a proteção policial e o apoio político. Uma
vida difícil, não? Agora me diga: como é que você imaginava a minha aparência?
Um gigante de três metros, ou uma criatura de orelhas longas, olhos vermelhos e
presas salientes?
― É verdade,
são essas as lendas que correm por aí... Mas não sou de acreditar em
chupa-cabra, senhor. Aceito o que vejo.
― Ah, muito
bom, muito sensato de sua parte. Há nisso uma grande ironia do destino, veja,
nós, que pertencemos a uma raça superior, nos tornamos seres diminutos, de
ossos frágeis e quebradiços, intolerantes à luz, encurvados e frágeis como
símios. São os azares da história... Foi necessário que nos escondêssemos,
passamos a viver ocultos; os índios nos chamam de avá yvýpe: os homens do fundo da terra!
― Sim, mas aí
já não existe fantasia: onde e como vocês vivem é um segredo completo. Nem
mesmo eu, que trabalho há tantos anos pra...
― Perdão,
Fidencio, mas... em que você acredita?
― Como assim?
O senhor quer dizer, se a sua gente vive mesmo embaixo da terra? Ou se são...?
― Monstros?
Mas claro que vivemos sob a terra, como acha que sobrevivemos mais de cem anos
em perfeito anonimato? Negociar conosco é seguro porque não aparecemos, não
fazemos barulho, nem incomodamos ninguém... Não lhe parece? Só que a minha
pergunta é sobre as suas crenças mais, digamos, espirituais...
― Bem, sou
devoto da Virgem de Caacupé...
― Que
interessante, muito importante ter uma crença... Presta-se um grande desserviço
ao espírito quando o separamos dualisticamente da vida material. Assim não o
podemos defender. Bem ao contrário, o espírito deve ser reintroduzido na vida
cotidiana, antes, a vida espiritual era o objetivo natural, o supremo valor.
Isso acabou nos tempos modernos. O complicado e imprevisível mecanismo da
sociedade tornou-se um universo de meios, que não se relaciona mais com um
centro de significados. A consciência moderna fica perdida nesse emaranhado de
meios, porém, a atividade humana pede que haja fins, valor em suas ações. Se
queremos liderar um grupo qualquer, seja ele uma cidade, uma empresa, ou um
povo, devemos criar um mito adequado a unir tal coletivo em uma visão comum. A
religião tradicional simplesmente empalideceu, não se crê mais, apenas há a
vontade de acreditar. A existência do mais valioso para o humano, a eterna
eficácia daquelas forças que transformam o homem em homem, depende de que em
algum lugar do mundo exista um mistério, isto é, uma força espiritualmente
geradora que ligue as almas, que seja exercida e transmitida adiante. Que em
algum recinto sagrado do mundo, e repetidamente, uma matriz formadora de
mistério reúna dois ou três em nome do deus vivo. Só isso preserva o mundo.
As palavras ressoavam
na cabana de decoração sóbria, mas Fidencio perdera o fio da conversa e havia
retornado a uma época remota. Mesmo que tivesse vivido mil anos não teria
conseguido esquecer aquela garota.
*
Do alemão, die Präparatoren, os taxidermistas.
Um comentário:
não importa se moram no céu ou no inferno patrão é patrão.
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