A cabana era
feita de grandes toras, sumariamente desbastadas e unidas nas extremidades por
encaixes entalhados, sem a utilização de pregos. Tinha dimensões pequenas,
resumindo-se a duas peças: o dormitório e a sala de jantar, que também fazia as
vezes de cozinha, sala de estar e lareira. Lá fora, via-se um cercadinho para
banhos, o abrigo da lenha e a fossa. O cômodo maior, onde conversavam,
assentava diretamente no chão; o teto ficava oculto por um forro de ripas de
madeira, e as frestas entre os troncos que formava as paredes estavam vedadas
com argila, de modo a proporcionar um isolamento total. Uma porta de madeira,
duas janelas com meias cortinas de renda, e a abertura no telhado para a
chaminé, tais eram os meios de aeração e iluminação natural. O mobiliário
escasso compunha-se de alguns bancos rústicos em frente à lareira, a mesa de
refeições com quatro cadeiras, um forno a lenha, panelas e talheres, além de
dois lampiões a querosene pendurados na parede.
Silberblick
estava sentado numa cadeira austríaca de palhinha. O silêncio não se deixava
quebrar. Fidencio, sentado de frente para o velho, se pegou pensando em como
seria fácil matar aquele homem raquítico apenas com a força das mãos. O
serzinho balançava suavemente como se perdido em divagações longínquas,
subitamente, esticou para diante o pescoço onde os músculos se destacavam na
pele apergaminhada, encarando-o. O gesto pareceu deformar todo o espaço ao
redor, criando um túnel diretamente ligado aos pensamentos do interlocutor.
― Como se
chamava ela mesmo?
― Ela, quem?
― A moça. A
que nos causou aquela encrenca toda em Ycuamandiyú...
― Nadi, Nadi
Kaiaguá.
― Uma pena o
que aconteceu, uma moça tão nova... Teria, o quê, uns dezesseis anos?...
― Quatorze.
Mas o senhor não me chamou aqui pra falarmos do passado, né?
― Entendo. O
assunto ainda lhe incomoda... pra nós também envolveu considerável risco, quase
arruína nossa atuação, hã, sigilosa. Não é boa política deixar os prazeres
prejudicarem os negócios, nem vice versa. Você, afinal, teve os maiores
constrangimentos, fugiu do país por uns bons anos, não foi? Cinco anos nos
Estados Unidos, uma fase difícil...
― Não posso
reclamar. Nossas relações têm sido bastante compensadoras, o senhor sabe,
desfruto de uma situação muito acima do que jamais imaginei ― Fidencio se
esforçava por desviar a conversa daquele episódio antigo de duas décadas.
― Muito bom,
meu caro, satisfação e comércio devem andar de mãos dadas. Assim como a guerra
e os negócios. Veja, há tantas maneiras de perder uma guerra quanto de
ganhá-la, e, no entanto, nós perdemos ganhando a última delas.
― Não sei se
estou seguindo o seu raciocínio...
― Muito
simples: o Terceiro Reich perdeu a guerra para os americanos e os russos. E o
que eles fizeram? Trataram de impor suas regras econômicas, seu poderio militar
e sua cultura ao mundo. Exatamente o que teríamos feito. Perceba a singela
grandeza do feito, as nossas doutrinas triunfaram sorrateiramente: a idéia de
raça dominante sobreviveu na de nação hegemônica, e as técnicas de propaganda
que garantem a dominação das elites e o controle das massas adquiriram uma importância
maior do que em qualquer outra época histórica. Estetizamos a vida, Fidencio, vencemos.
Só não se pode anunciar isto em alto e bom som.
― Herr
Silberblick está dizendo que ganharam a batalha ideológica?...
― Estou
dizendo mais: estou dizendo que essa é a única batalha que não se pode perder,
o privilégio de atribuir significados. Vivendo aglomerados em grandes números,
que outra coisa esperar dos humanos senão micro ou macro fascismos? Olhe à sua
volta: você vive semi-absorvido em redes virtuais repartidas em comunidade
altamente hierarquizadas. As idéias que defendo se espalharam como vírus, e os
vírus não podem ser derrotados porque se infiltram nos DNAs alheios, se
replicam, se transmitem adiante, se inscrevem no código, embaralhando as cartas
do devir. Nossa Kultur antecipou tudo
que temos hoje, ela é a grama no canteiro de flores do Ocidente, foi a primeira
a iluminar o lado escuro do humanismo ao aprimorar sua tecnologia social mais
primitiva: o controle pelo medo/desejo. Transformamos o mal numa commodity para
as multidões.
Desabotoou o
casaco, deixando à mostra uma submetralhadora presa ao ombro por uma correia,
tirou do bolso interno um objeto. Depositou-o na mesa, era um aparelho de som a
pilha. Ligou o aparelho, o chalé foi preenchido por música sinfônica. Saboreou
a música por um tempo antes de voltar a falar.
― Bernhard e
Elizabeth Förster se decidiram pelo Paraguai há mais de cento e vinte anos,
quando fundaram a colônia Nueva Germania. Que honra para o seu país, meu amigo,
servir de berço para o Novo Homem! O primeiro experimento eugênico, uma
comunidade de quatorze famílias puramente alemãs mudou-se para em San Pedro em fevereiro
de 1887. Após a falência do nosso amado patrono, simulamos o seu suicídio e
passamos para a clandestinidade, que, no nosso caso, implicou viver abaixo da
terra em galerias subterrâneas, longe de um mundo que ainda não estava
preparado. Depois de 1945, naturalmente, fomos o destino preferencial de muitos
oficiais e dirigentes nazistas... um motivo extra para nos mantermos atuantes,
mas fora do radar.
― Então é por
isso que o seu povo tem esse aspecto... diferente?
― É. A falta
de sol deformou-nos o corpo, porém, não alterou nosso espírito. Me diga, esta
música o agrada?
― Sim, é
bonita, e parece importante...
― A terceira
sinfonia de Mahler. Um judeuzinho impertinente, como ele mesmo disse, três
vezes apátrida: natural da Boêmia na Áustria, austríaco na Alemanha, judeu no
mundo inteiro. Em toda parte um intruso, em nenhum lugar desejado; não poderia
definir melhor esse povo infecto! E por que você acha que estou escutando essa
música degenerada que, em diversos momentos, não se prende a tom algum?
― Não faço idéia.
― Simples,
caro rapaz, aberrações como esta serviram de arauto para a decadência, o
afastamento da disciplina tradicional, o desencadear da besta nas artes e no
ser humano. Ouça agora isto... ― o alemão acionou os botões do aparelho de som,
mudando para uma música terrível, assustadora e irregular como um tiroteio.
― Hmm, dessa
eu não gosto! Parecem instrumentos tocados por macacos.
― Hahaha!
Excelente observação. Você está ouvindo o Quarteto para o Fim dos Tempos, uma
obra composta no campo de concentração de Görlitz por outro desses quasímodos
que tanto se esforçaram por destruir a beleza e a harmonia no mundo. No frio glacial
da Silésia, inverno de 1941, milhares de prisioneiros se juntaram aos oficiais
e soldados alemães para ouvir quatro virtuoses tocando um piano desafinado, um
violoncelo sem uma corda, um violino e uma clarineta. E sabe por que estavam lá
meus compatriotas? Porque se tratava de música, porque a música faz ressoar
fundo o dionisíaco instinto vital, o espírito trágico da vida!
Fidencio se
deu conta de que também ele era um preparador do Apocalipse, também ele ouvia as
palavras do anjo como um leão que ruge: “Não haverá mais tempo, mas no dia em
que soar a trombeta do sétimo anjo se cumprirá o mistério de Deus”. Também ele
era uma avá yvýpe, tinha se tornado
um deles.
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