segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Volver (parte 2)




Um daqueles acidentes espetaculares, aliás, espetáculo propriamente falando, porque filmado pelo telefone celular de alguém. O vídeo amador ganhou os sites sensacionalistas e a televisão repercutiu por uma semana inteira. As imagens arrepiantes começavam mostrando um ônibus já acidentado (acabara de bater na traseira de um caminhão) no acostamento da rodovia Régis Bittencourt; um carro pára atrás dele e o motorista, trajando um terno escuro, sai em auxílio dos passageiros ― a iluminação é extremamente precária ―; após um lapso de cenas borradas e confusas, vê-se o homem de volta dentro do carro, e então, a tragédia: uma segunda e enorme carreta vem trafegando pelo acostamento, atingindo em cheio o carro e os feridos, arrastando tudo e todos estrondosamente contra o ônibus que explode.
Dezessete mortos. Entre eles, o motorista do carro que havia parado para ajudar, o primeiro marido de Estelamaris, Aureliano. A família horrorizada reconheceu-o imediatamente no telejornal da noite, bem como ao carro, que virou uma sucata de ferro retorcido com a força da colisão. Os funcionários do necrotério abriram uma gaveta onde a viúva em choque se deparou com uma maçaroca carbonizada de carne, ossos e roupas ensangüentadas, nas quais se puderam recuperar incrivelmente intactos os documentos pessoais do falecido ― uma simples viagem de negócios a Curitiba, e mais uma vítima a alimentar as indecentes estatísticas da BR 116. Um velório emocionado, uma família destruída, um enterro de caixão lacrado.
Uma família paranaense, no entanto, teve aparentemente mais sorte: algumas imagens também mostravam um homem em mangas de camisa prestando socorro logo depois do primeiro acidente; era Adauto Schner, curitibano que fazia o caminho de volta para casa dentro do ônibus abalroado. Pelo que se reconstituiu mais tarde, ele teria descido para transportar os feridos para fora quando foi vitimado pelo segundo caminhão; resultado: concussão cerebral, oito meses em coma, além de extensas queimaduras pelo corpo. Adauto teve o rosto desfigurado, razão pela qual ganhou sua peculiar sobrevida.
Conforme se recuperava do coma, percebeu angustiado que não reconhecia os parentes, o que inicialmente se atribuiu à amnésia causada pelo trauma encefálico. Os médicos diziam que a memória lhe voltaria aos poucos, de par com a motricidade perdida no período em que ficara restrito ao leito; os primeiros meses seriam críticos para prever o grau de recuperação que atingiria. Mas o fato que médico algum conseguia lhe explicar era o estranhamento que notava da parte da sua própria família em relação a ele. Percebia claramente os efeitos benéficos que a sua presença, as suas palavras e orientações exerciam sobre a mulher e os filhos; mas não podia evitar o incômodo de uma nota falsa.
Tudo se esclareceu quando, já instalado em casa, viu pela primeira vez as filmagens do acidente. Estava ali claramente, era ele mesmo. Finalmente. Agora se reconhecia, mas não naquele que pensavam que ele era ― eu, sou um outro, pensou “Adauto”. Um tremor percorreu-lhe o ser de alto a baixo, de dentro a fora, parou, absorvido pela extraordinária sensação que acontecia sem controle. Um prazer delicioso lhe invadia os sentidos, algo isolado, diferente, sem nenhum indício sobre a sua origem. O difícil agora seria explicar tudo à nova “família”.
Um mês e meio depois, estava em São Paulo no escritório do seu advogado. O doutor Derville se preparava para dar início a uma das reuniões mais bizarras da sua longa carreira; presentes ao encontro, além dele mesmo, Estelamaris, José Ascânio e Aureliano, recém retornado do mundo dos mortos.

Um comentário:

angela disse...

a volta de quem não foi...