Um daqueles
acidentes espetaculares, aliás, espetáculo propriamente falando, porque filmado
pelo telefone celular de alguém. O vídeo amador ganhou os sites
sensacionalistas e a televisão repercutiu por uma semana inteira. As imagens
arrepiantes começavam mostrando um ônibus já acidentado (acabara de bater na
traseira de um caminhão) no acostamento da rodovia Régis Bittencourt; um carro
pára atrás dele e o motorista, trajando um terno escuro, sai em auxílio dos
passageiros ― a iluminação é extremamente precária ―; após um lapso de cenas
borradas e confusas, vê-se o homem de volta dentro do carro, e então, a
tragédia: uma segunda e enorme carreta vem trafegando pelo acostamento,
atingindo em cheio o carro e os feridos, arrastando tudo e todos estrondosamente
contra o ônibus que explode.
Dezessete
mortos. Entre eles, o motorista do carro que havia parado para ajudar, o
primeiro marido de Estelamaris, Aureliano. A família horrorizada reconheceu-o
imediatamente no telejornal da noite, bem como ao carro, que virou uma sucata
de ferro retorcido com a força da colisão. Os funcionários do necrotério
abriram uma gaveta onde a viúva em choque se deparou com uma maçaroca carbonizada
de carne, ossos e roupas ensangüentadas, nas quais se puderam recuperar
incrivelmente intactos os documentos pessoais do falecido ― uma simples viagem
de negócios a Curitiba, e mais uma vítima a alimentar as indecentes
estatísticas da BR 116. Um velório emocionado, uma família destruída, um enterro
de caixão lacrado.
Uma família
paranaense, no entanto, teve aparentemente mais sorte: algumas imagens também
mostravam um homem em mangas de camisa prestando socorro logo depois do
primeiro acidente; era Adauto Schner, curitibano que fazia o caminho de volta
para casa dentro do ônibus abalroado. Pelo que se reconstituiu mais tarde, ele
teria descido para transportar os feridos para fora quando foi vitimado pelo
segundo caminhão; resultado: concussão cerebral, oito meses em coma, além de
extensas queimaduras pelo corpo. Adauto teve o rosto desfigurado, razão pela
qual ganhou sua peculiar sobrevida.
Conforme se
recuperava do coma, percebeu angustiado que não reconhecia os parentes, o que
inicialmente se atribuiu à amnésia causada pelo trauma encefálico. Os médicos
diziam que a memória lhe voltaria aos poucos, de par com a motricidade perdida
no período em que ficara restrito ao leito; os primeiros meses seriam críticos
para prever o grau de recuperação que atingiria. Mas o fato que médico algum
conseguia lhe explicar era o estranhamento
que notava da parte da sua própria família em relação a ele. Percebia
claramente os efeitos benéficos que a sua presença, as suas palavras e
orientações exerciam sobre a mulher e os filhos; mas não podia evitar o
incômodo de uma nota falsa.
Tudo se
esclareceu quando, já instalado em casa, viu pela primeira vez as filmagens do
acidente. Estava ali claramente, era ele mesmo. Finalmente. Agora se
reconhecia, mas não naquele que pensavam que ele era ― eu, sou um outro, pensou
“Adauto”. Um tremor percorreu-lhe o ser de alto a baixo, de dentro a fora,
parou, absorvido pela extraordinária sensação que acontecia sem controle. Um
prazer delicioso lhe invadia os sentidos, algo isolado, diferente, sem nenhum
indício sobre a sua origem. O difícil agora seria explicar tudo à nova “família”.
Um mês e meio
depois, estava em São Paulo no escritório do seu advogado. O doutor Derville se
preparava para dar início a uma das reuniões mais bizarras da sua longa
carreira; presentes ao encontro, além dele mesmo, Estelamaris, José Ascânio e
Aureliano, recém retornado do mundo dos mortos.
Um comentário:
a volta de quem não foi...
Postar um comentário