De há muito, o
advogado Derville Zago Sanchez Alvarinho deixara de se espantar com a exibição
crua dos temperamentos e pulsões da fauna humana que desfilava, ao vivo e a coices,
diariamente pelo seu escritório; longe da letra organizada dos pareceres e das
leis, das petições e contraditórios, as circunstâncias em que se chocam a vida
das pessoas sempre lhe pareceram ocorrer sob o signo da bandalha, do caos, da
quizumba. No entanto, mesmo a longa janela de puta-velha na profissão não o
impedia de sentir uma onda de hesitação sobre como conduzir aquela conversa;
precisava entrar com cautela extra no mérito de um caso tão extravagante quanto
inusitado. Qualquer deslize, e a maionese podia desandar feio, feio.
Avaliou em
silêncio as expressões dos seus interlocutores: Estelamaris, elegantéésima num
tailleur vermelho, por mais que se esforçasse, não conseguia parar de arreganhar
os olhos a cada par de segundos; Ascânio ostentava o maior derrotismo, parecia
empregado em dia de passaralho, amarrou a catadura botando uma tromba de metro
e meio; já Aureliano, não se lhe podia adivinhar coisa alguma pela mina, uma
vez que as queimaduras haviam transformado a superfície do seu crânio numa paisagem
marciana de pele verrumada e lustrosa repuxada para todos os lados, como um chapisco
de cimento sem reboco. Para não chocar tanto, o pobre inventara de se embiocar
sob um boné e óculos escuros enormes, disfarce tosco que tornava ainda mais
triste a sua escalavrada figura.
― Senhores e
senhora, gostaria de iniciar esta reunião, sob todos os aspectos inusitada,
mencionando que só os chamei para esta tentativa de conciliação após um exame
acurado das alegações e documentos do aqui presente, senhor Aureliano Rubião
Filho, até recentemente tido como Adauto Schner. Fique bem claro que não
haveria sentido em fazê-los passar por tamanho inconveniente... caso contrário
seria profundamente leviano da minha parte juntá-los... não houvesse já
realizado uma investigação preliminar... além do quê, hãm, o referido senhor
Aureliano me passou informações sobre a empresa em que é sócio da senhora
Estelamaris, e para a qual advogo, que só ele poderia saber...
― Desculpe
doutor... Aureliano, por que só agora, quer dizer, como é possível uma coisa
dessas, assim tremenda?... A gente viu, todo mundo viu na televisão; você
estava lá... os documentos, os pedaços, o que sobrou de você; eu tive que ir no
necrotério reconhecer... aquilo! ― de batom vermelho, tonalidade cherry bomb, a ex-viúva mulher de dois
maridos não se continha, escrutinando avidamente o estropício sentado
flacidamente na poltrona giratória em frente a ela.
― Pe, pe, pe,
peraí doutor, como podemos ter certeza? Não dá pra reconhecer ninguém numa
pessoa nestas condições... pode ser qualquer um atrás da máscara. E outra: como
é que fica isso, agora ele é sócio da minha mulher? ― Ascânio entrou na
conversa, e em breve todos falavam em cima dos outros, um pega-pra-capar danado.
O doutor
Derville custou a serenar os atabaques.
― Por favor,
por favor. Bem, vamos às explicações devidas, e em seguida ouviremos da boca do
putativo falecido sua versão dos fatos. Sobre os pontos que o senhor Ascânio
levantou, devo esclarecer os aspectos jurídicos da situação: um simples exame
de DNA com material genético dos filhos será suficiente para restabelecer cem
por cento a identidade dele; com isto, revoga-se o atestado de óbito, em
seguida, Aureliano retoma a posse plena de seus bens, incluindo a parte na
sociedade comercial com a... a esposa. Há aqui um detalhe, a segunda união
ainda não é legalmente uma união estável: há a coabitação, mas não se
completaram dois anos. Como não houve má-fé nem dolo na situação de concubinato,
constituindo, portanto, um ato jurídico perfeito, tudo dependerá da conveniência
da varoa, isto é, Estelamaris tanto pode dar seqüência ao antigo
relacionamento, como ficar com o atual; uma escolha sobre a qual a lei não
incide...
― Tetela ―
Aureliano se dirigia diretamente à mulher; o silêncio tomou a sala, enquanto
Ascânio, com cara de cheque devolvido, parecia ter derretido na cadeira ―, não
tive uma vida fácil nestes dois anos, como imagino que também deve ter sido
para você e os meninos, mas lutei muito só pensando neste momento. Além das
queimaduras, sofri um grave traumatismo craniano; fiquei em coma por meses, passei
um ano numa cama de hospital. Longos dias de tédio, confusão mental e fisioterapia
para voltar a andar, comer sozinho, falar. Ainda hoje, só me locomovo de muletas;
o doutor Derville deixou lá fora... eu pedi, não queria te dar gastura, queria
que tudo fosse o menos medonho possível pra você... Mas isto ― retirou os
óculos e o boné ―, é o que eu sou hoje: um homem sem rosto, mas com um passado,
e uma família. A nossa família... foi pra este Deus que eu rezei, só acreditava
nisso, precisava acreditar nisso pra continuar vivendo, pra não ficar louco de
vez... desculpa Estela, é difícil... mas preciso voltar naquele dia de horror. Faça
o favor doutor...
Com grande
senso dramático, o anfitrião abaixou as luzes do escritório e ligou um projetor
cuja tela ficava atrás de Aureliano, incorporando desta forma o narrador nas
cenas que se desenrolavam às suas costas.
― A imagem apresenta
e esconde no mesmo gesto. Tudo isto vocês já viram: ali, o ônibus após
chocar-se com uma árvore no acostamento; aqui, o meu carro parando, ligo o
pisca alerta, saio... vou ajudar as pessoas que começam a sair de dentro do
ônibus; há uma grande confusão em torno... agora o slow motion pra vermos melhor, daí vem este pedaço em que a câmera
chicoteia e perde a região iluminada; então, lá está um homem com o meu paletó
dentro do carro... e a seguir é que vem a carreta... É uma noção que só me veio
bem depois: eu saí do carro e comecei a ajudar os feridos, o primeiro foi um
homem, tremendo de medo ou frio, que agasalhei com o meu paletó e levei para
dentro do carro, mas isso acontece no
lapso em que a pessoa que filmava perde o foco; quando o enquadramento
retorna, há um homem no carro com a minha roupa, e é quando vem a porrada
final. Este homem, que ninguém duvidou que fosse eu, era Adauto Schner, cuja
família cuidou de mim por engano até há pouco tempo.
― Então...
você também, vamos dizer, você também tinha uma outra família?... ― os belos
olhos da bígama involuntária arregalaram mais alguns milímetros e a voz lhe
tremia.
― Esta é a
parte mais maluca da história. De uma certa forma, sinto que elas sempre
souberam de tudo, apenas precisavam
que tivesse acontecido como os jornais noticiaram. Era melhor que o Adauto
fosse aquela imagem que ajudava os feridos antes do atropelamento, não o
sujeito chorando dentro do carro e do paletó de outro homem: estaria vivo e
ainda seria um herói. Por motivos que me escapam, aquela mulher e aquelas duas
meninas, que durante dois anos brincaram comigo de sermos os Schner, queriam
muito acreditar que aquele homem semi-destruído numa UTI tivesse um dia sido capaz
de tomar uma atitude. Fui preparando “mulher” e “filhas” aos poucos; fatalmente
chegaria a minha vez e a minha hora de deixá-las, e elas tinham que começar o
luto adiado... na verdade, pensando agora, o Adauto passou a incluir um pouco
do Aureliano; mas também é verdade que preciso dele: pra que eu volte à vida,
ele tem de morrer... bem, de toda maneira, vai ser necessário abrir a minha
sepultura, devo a elas um corpo.
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