― Se contasse toda a verdade
acerca da minha vida, ninguém iria acreditar ― disse certa vez, e ela realmente
se calou; não fosse pela coincidência de ter “vivido” em sua casa, de a ter
servido na pele da coitada da Jeannette, também eu não acreditaria em madame.
Este
é um ponto relevante. Há quem comece a vida em berço de ouro e termine em maus
lençóis, Françoise D’Aubigné, ao contrário, nasceu plebeiamente numa prisão e
morreu no fausto de um castelo, alçada à nobreza e casada com um dos reis mais
poderosos da história. Dentre os vários profissionais que consultei durante meu
período de crise, os psicanalistas discordaram em tudo sobre as minhas
dificuldades, mas foram unânimes em apontar os efeitos deletérios de ter sido
criada por um pai extremamente severo e uma mãe apagada ao extremo.
Evidentemente, esta é uma constatação que explica tudo e não resolve nada;
acontece que, para mim, mulher de um outro tempo, vivendo numa era líquida e
espetaculosa, havia a necessidade imperiosa de ver.
E
ver não foi em vão. Acompanhar
a cena representada em sua inteira crueza, teve a virtude de me revelar um
segredo de alcova da condição feminina: mulheres
trocam prazer por poder, pagam da sua biologia o tributo civilizatório. Os
homens conjugam os verbos correspondentes de forma mais “natural” e
substantiva; ambos, porém, ao fim e ao cabo, se entortam para dar passagem à senhora
“cultura”; como vi se contorcerem as personalidades sob as rendas, os tecidos,
pós e perucas; assim como presenciei corpos e almas arfando sob anáguas,
sufocando em corpetes munidos de assustadoras barbatanas. Impossível esquecer
aquelas vidas esgarçadas rolando das camas para os sofás, deformando-se sobre
marquesas e bergères, sorvendo aos
bebericos suas tisanas enquanto maquinavam tramas de glória tão efêmera quanto indigna.
É
sempre arriscado aquilatar pessoas e situações distantes no tempo; não sou
nenhuma especialista capaz de recriar outros universos morais, ou “mentalidades”,
opino a partir do meu pedestre entendimento acerca do que acredito ter vivido.
Por exemplo, Jeannette, a criada, deu-se por feliz casada com um bruto que lhe ia
ao pêlo; Françoise, a mulher mais influente da França, sentia-se acossada por
um rei que gostava de comê-la. Vá entender. Esta é mais uma inestimável lição
da TVP (terapia de vidas passadas) a respeito da natureza humana: julgamos ser
felizes ou desgraçados por comparação, tudo
depende do que os outros acham.
―
O melhor favor que lhe posso prestar ― respondeu o cardeal Richelieu a um
pedido de clemência da mãe de Françoise ― é manter esse homem preso.
Dura
verdade. O pai da futura Madame de Maintenon era uma enciclopédia universal de
vícios: nobre-de-espada arruinado, foi grileiro de terras alheias, assassino,
jogador, mulherengo, conspirador, moedeiro falso, apóstata e, como se tudo isso
não bastasse, poeta. Neste seu último mister, chegou a cometer umas trovas bem
tosquinhas, mas suficientes para seduzir a filha do carcereiro que o seguiria
de prisão em prisão, a cumprir sua sentença de amor. Nascida na prisão de Niort,
a terceira filha do escalafobético casal foi recolhida pela tia paterna, Madame
de Villette, que lhe proporcionou alguns anos de estabilidade no Château de
Mursay. No último degrau da impressionante escadaria de entrada do palácio
havia uma inscrição que ela jamais esqueceria: “É difícil subir”.
No
resto da infância ela correu ceca e meca; sempre jogada de um lado para o outro,
acompanhou a família quando se mudaram para as Índias Ocidentais (na verdade a
Ilha Martinica, no Caribe), onde o pai abandonaria mulher e filhos, de volta à
França, com a mãe aparentando ter desatarraxado, não um, mas vários parafusos, foi
enviada a um convento para ser educada na fé católica e receber a primeira
comunhão. A loucura coletiva não a marcaria menos que a materna: naquela época
os europeus se trucidavam regularmente por causa da Virgem e dos santos;
reformistas protestantes contra católicos, aliados contra inimigos do Papa,
etc. Desde o século dezesseis, com a horrenda matança da Noite de São
Bartolomeu, eclodiam perseguições aos huguenotes
(protestantes franceses) patrocinadas pela casa real francesa e a Igreja.
E
aqui, novamente, reaparece a minha dificuldade “moderna” de compreender os
valores desta mulher que aprendi a admirar ― por que ela se encarniçou
posteriormente contra a religião da própria família? A melhor explicação que
obtive passa por duas outras figuras de relevo em sua formação: a madrinha,
condessa de Neuillant, que manobrou para afastá-la dos parentes, e irmã
Celeste, que, no convento, ensinou-a a domar os abismos da carne e lhe impingiu
uma firme direção espiritual por meio de confessores. É a condessa que a
introduz nos grandes salões artísticos e intelectuais de Paris, onde conheceria
seu primeiro marido, o poeta e dramaturgo burlesco Scarron.
―
Prefiro me casar com um homem paralisado do pescoço para baixo a voltar para o
convento ― disse a jovem de dezessete anos ao casar com aquele precursor da stand up comedy preso a uma cadeira de
rodas.
Quando o
notário redigia o contrato nupcial, perguntou a Paul Scarron qual dote
concederia à belle indienne, apelido
de sua futura esposa.
― A
imortalidade ― respondeu folgazão. Na verdade, o devasso poeta conseguia, a
preço de saldo, uma enfermeira bela e fiel que cuidaria dele por seis anos até
o seu último suspiro. Sem sexo ou paixão, mas sem riscos de parte a parte.
Françoise,
agora viúva Scarron, passa a fazer parte do grand
monde, e nele, planeja sua ascensão rumo ao topo. Sempre aconselhada por um
grilo falante de batina. Viúva, porém honesta, aproxima-se de Athénaïs,
marquesa de Montespan, a ardilosa e pérfida primeira-amante de Luís XIV ―
jararaca terrível que tinha o hábito de envenenar outras candidatas ao leito do
rei-Sol. Sempre vestida de preto, com o terço na mão e o Cristo na boca,
Françoise ganhou a confiança de Athénaïs e tornou-se ama dos filhos ilegítimos
desta com o rei. Detalhe: obrigou o rei a pedir-lhe pessoalmente para ser a
preceptora da sua prole “paralela”; quando o monarca espichou os olhos para cima
dela, repudiou o homem que afirmou ser
o Estado; até então, ele pensara que só as mulheres feias viravam beatas.
Quando a rainha Maria Tereza morreu, Madame de Montespan ficou de queixo caído
quando o rei deixou uma marquesa para se casar com a governanta.
Reminiscências
assim costumam ser enganosas, mas Françoise foi uma marionete nas mãos da
Igreja, uma Mata-Hari de corte mais religioso, estrategicamente colada ao
ouvido e à cama do rei. Conselheira desastrosa: Luís XIV revogou o Édito de
Nantes, acabando com a liberdade religiosa na França e reativando as
perseguições aos huguenotes,
desprezou nobres, ignorou o povo, e se envolveu em guerras demais.
― Sire, não
entendo, por que tamanha contradição? Com uma mão me enobreceis, dais-me até um
castelo, com a outra, me rebaixais com um casamento morganático... ― Françoise
via consternada escapar a grande oportunidade da sua vida.
― Senhora, são
as precauções que a minha posição acarreta; que importa que o vosso título não
seja de rainha, acaso é pouco ser minha legítima esposa? É só uma precaução
para que um fruto eventual da nossa união não se torne candidato ao trono.
Minha sucessão já vai ser complicada o bastante ― o que o vaidoso rei escondia
era o quanto pesava nesta decisão a origem humilde dela e o medo do ridículo
pelo seu casamento pregresso com um poeta burlesco.
― Frutos, que
frutos, senhor meu? Acaso desconheceis que sou uma mulher de quarenta e cinco
anos?...
Viveram juntos
por trinta anos. Aos setenta anos, Luís XIV ainda a procurava sexualmente duas
vezes por dia, o que a aborrecia. Ela consultou o seu padre que lhe disse para
não negligenciar suas obrigações. Aos setenta e seis, quando faleceu, o rei ainda
visitava seu leito; ela sobreviveu quatro anos ao pôr do rei-Sol.
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