Um
padrão de reconhecimento. Ou um reconhecimento de padrões, tanto faz. Acontece
que tenho essa habilidade, ou desenvolvi, sei lá; na verdade talvez não seja
grande coisa, apenas o bruto instinto reprodutivo em ação. Sejamos bem
diretos: sexo, e da modalidade aleatória, quase um encontro animal. Uma coisa
antiga como o mundo, mas que não parece tão deslocada assim na grande cidade ― toda
a cidade verdadeiramente grande sempre carrega a história do mundo nas suas
veias, nas suas vias, nos cruzamentos em que esbarram os átomos da sua
geografia humana. Às vezes, nestas colisões produz-se a faísca primitiva, e então
a natureza, como diziam os antigos, segue o seu curso.
Os
reaças, fundamentalistas de todos os credos e patrulheiros da moral alheia em
geral, podem até parecer toscos nas suas concepções, mas não se enganam quanto
ao fato de que, quando dois humanos se encontram em território livre, o couro
pode comer sem muita mumunha e negaceio. O que é do bicho, o homem também come (e
como). E não há necessidade alguma daquelas situações clássicas do encontro de
desconhecidos: a viagem de trem, o cruzeiro nas ilhas gregas, a micareta em Parintins,
ou a mulher do esquimó, hospitaleiramente ofertada. Qualquer preposição pode
servir à cópula, é preciso apenas estar vigilante e reconhecer esse não sei quê
do andar, que tanto está num jogar dos cabelos, como num olhar que demora um
segundo a mais; ou, quem sabe, circula nos infraperfumes que só o sentido feral
capta.
―
Os caixas recebem pagamento em cheque? ― ela perguntou para um dos funcionários
de coletinho que orientam os clientes do autoatendimento. Pensando em retrospectiva,
acho que também pode estar na voz: aquele acento rouco, praticamente
imperceptível na nossa espécie, mas que denuncia a disponibilidade com a mesma
precisão do miado das gatas no cio.
OK. Estou
fazendo um pouco de literatura, está certo; voltando: depois de me desmarcarem
a reunião em cima da hora, aquela tarde de quinta feira já estava perdida.
Desisti de voltar ao escritório por causa do trânsito; fui ao banco resolver
umas pendengas. Enquanto o gerente consultava o sistema numa das mesas na parte
da frente da agência, ela dirigiu-se para o fundo, para a fila dos caixas
não-automáticos, aqueles atendidos por bancários de verdade; entediados como os
clientes amontoados em fila serpiginosa. A cada minuto, balançava a cabeça dando
uma panorâmica lenta que incluía uma espiada rápida na minha direção; da minha
cadeira, mantinha-a sob vigilância na periferia do campo visual, e, assim que começava
a rotação do rosto, posicionava-me para interceptar os olhos dela com uma
mirada firme, frontal e radiográfica.
Enrolei o
máximo que pude de modo a sairmos juntos pela porta giratória. Na rua, caminhei
alguns passos ao lado dela até lhe dirigir a palavra.
― Posso
conversar um pouco com você?...
― Não. Não
costumo conversar com estranhos ― ela respondeu de bate-pronto, na chincha; mas
uma cova discreta surgiu-lhe na altura do encontro dos lábios, descerrando a
partir da direita da boca uma bela fiada de dentes alvos. Segui por ali.
― É, você está
certa, talvez seja melhor te convidar para tomar um café. Assim deixamos de ser
dois estranhos...
Paramos numa
cafeteria das redondezas; pediu um café carioca e uma água com gás, tomei um
expresso com meio saquinho de adoçante. Conversamos de boa, contou que era de
Jacareí, bem casada, fez questão de frisar; vinha duas vezes por semana fazer
um curso de home care para idosos no
Sírio. Naquele dia tinham cancelado repentinamente a aula e resolveu ir pagar
uma conta.
― Que
coincidência, o universo conspirou para que eu te conhecesse ― contei-lhe da
minha reunião desmarcada, mas ela não pareceu se impressionar muito com a
sincronia cósmica dos nossos destinos.
― Deixa de
bobagem, foi só um acaso. Esse teu xaveco tá com a maior cara de autoajuda, precisa
de um bom upgrade.
― Hmm, tá, mas
bem que a gente podia bebemorar este caso do acaso, não?
― Você quer
dizer: tomar uma cerveja no meio da tarde?
― Cerveja não,
champanhe.
Saímos dali
direto para um motel. Tão logo subiu na garupa da moto, senti o corpão dela
colando firme em mim. Tinha
pegada, a mina.
Um comentário:
e aí...?
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