sábado, 15 de setembro de 2012

a casa das mil portas (parte final)



            Às vezes tenho a nítida sensação de que não chego realmente a conversar com a minha mãe, é curioso, não consigo lembrar sobre o que eu e ela falamos o dia todo, todos os dias ― e é certo que alguma coisa devemos falar, nem que seja sobre o que está faltando na despensa ―; bem, de qualquer maneira, não deixamos de ser uma família que cultiva uma grande arte: a arte de desconversar. Desconversamos sobre tudo e qualquer coisa, principalmente acerca do que não se pode calar. Não vou aqui negar que careça de argumentos (ela os tem, e como!), nem que lhe falte um certo humor farsante; aliás, para ser inteiramente justa neste relato, devo acrescentar uma anedota ilustrativa das pequenas diversões que a personalidade peculiar de mamãe proporciona à nossa rotina.
            Até porque, venho concluindo ultimamente, a minha família não é muito diferente das outras, só a coisa em casa é um tantico mais arreganhada. Há uma questão a respeito da qual parei de alimentar fantasias: aqui ou alhures, na casa ou na rua, é a mesma chanchada que rege homens e mulheres; o que chama a atenção é que ainda sejam tão poucos os que dão a bofetada no seio da massa que oferece a outra face. Os ‘maus’ agem, e os ‘bons’ não reagem ― a não ser quando se tornam maus. Talvez seja mais prático viver por procuração. E assim caminha a humanidade, Urbi et Orbi.
            Era uma daquelas tardes abafadas de um sábado caduco, estávamos na varanda de casa apreciando o movimento da rua ― que não é de grande interesse, porque os moradores deste bairro parecem se deslocar unicamente dentro de carros indevassáveis para quem está de fora, e suas vidas exalam asseio, sucesso e adequação. Entre uma cusparada e outra dos impropérios costumeiros que a minha genitora dedica aos exemplares da sociedade disponíveis, sem que nos déssemos conta, parou uma mulher no portão de casa. Usava roupas simples mas elegantes, tinha presença, a idade era indefinível a um exame sumário, digamos que estaria entre eu e a minha mãe. Nunca a tinha visto nem mais gorda, nem mais magra.
            ― Aqui é o número 115?
            ― Está aí do lado do portão, se recuar um pouco e souber ler, vai descobrir; e se aproveitar pra seguir seu caminho, melhor ainda ― a mãe sabe como poucos deixar alguém desconfortável no mais alto grau; sem ser uma faladora habitual, possui uma habilidade natural para a retórica de guerrilha. Além disso, tem seus momentos.
            ― É que... precisava falar com a senhora...
            ― Moça, religião já tenho, e compras eu mesma faço na loja.
            ― Não, não é isso... é que, hmm, a conversa tem de ser mesmo particular.
            ― Particular mesmo, aqui, só a propriedade. Se não puder explicar, daí, o que quer, já lhe disse: a calçada é excelente para a senhora continuar seu passeio.
            ― A senhora não me conhece, mas eu sou da sua família... quer dizer, distante... veja, o assunto é muito delicado para lhe falar assim, da rua...
            ― Ah bom, mas por que não falou isso antes? Se é da família, então a coisa muda de figura... mas é que, sabe o quê?, gente velha desconfia de tudo mesmo, veja só: estava ainda agorinha preocupada com uma desconhecida mesmo querendo entrar na minha casa... tu tá me achando com cara de panhonha, é menina?
― Nossa, a senhora está levando tudo pro outro lado... Pelo amor que tem a Deus, me escute, eu preciso muito da sua ajuda...
― Hum, agora você conseguiu, começou a me fazer acreditar em você, família é sempre essa água: quando aparece sem avisar, com certeza é pra pedir alguma coisa! Olhe em volta ― e apontava as paredes de reboco descascado, a nespereira xexelenta, a balaustrada e o jardinzinho da frente tomados por capim-gordura ―, não sobrou muito, né?
― Só espero que tenha sobrado um pouco de boa vontade...
― Que é que você quer dizer?
― ...(suspiro) a Maria Eduarda... minha filha, precisa de um transplante... de medula, virei mundos e fundos, paguei investigador, e vim lhe procurar, não pra amolar, nem para ter direito a nada...
― Pera, pera, pera aí, direito? Direito a quê, tenha a bondade de me explicar...
― A senhora não vai me deixar entrar? Por favor, falo aí onde está, assim, na calçada, não... Buf, acredito que... que uma de vocês duas tem grande chance de ser a doadora...
― Certo então, porque a sua tia torta foi casada com o contraparente da família da terceira sogra do meu avô, você acha que tenho que dar um pedaço de mim... para a sua filha?
― A sua neta! Minha filha é sua neta, por caridade, eu não queria lhe contar dessa maneira: você, a senhora, é a minha mãe de sangue... um rapaz, há muito tempo, Antônio Nunes se chamava; foi engravidar adolescente, e ainda naquela época... Nunca quis lhe conhecer, não tive essa curiosidade, não sei, estava em paz até minha filha adoecer. Estou sendo transparente: você não me abortou, e lhe agradeço; você me deu, não a culpo, fui bem criada; sei que para a senhora sou uma completa estranha vinda do nada, mas agora preciso tanto, lhe suplico... é a minha menina!
―...
― Desculpe... não era minha intenção...
― Você fique aqui ― disse para mim, e então, começou com a outra ― Você aí, isso, vá entrando no portãozinho... me espere bem aí.
Antes que eu piscasse, aconteceu: ela tirou toda a roupa e abalou-se na direção da mulher, que, a esta altura, se detivera estupidificada no meio do caminho. Uma máscara lasciva tomava-lhe o rosto, que mal podia ser reconhecido sob a cabeleira de loba e os requebrados selvagens ― uma senhora que usava andador para ir à missa! A cantilena gutural que lhe saía das entranhas, inarticulada e melódica como a das carpideiras mouras, nem era o mais impressionante, fiquei abismada foi com o tamanho que ela havia adquirido: minha mãe estava enorme, sacolejante como uma daquelas hipopótamas do Fantasia; e esfregava-se na outra, passava a língua, dizia-lhe coisas no ouvido, roçava nela as partes e as tetas pendentes, enquanto executava desajeitadamente os passos da sua dança canhestra.
A moça fugiu dali correndo e não voltou mais.
Pena, podia ter vindo me ajudar a cuidar da velha; este meu ramerrão é muito igual, dividindo com mais alguém, quem sabe, me sobraria algum tempo para o lazer. Dar uma saidinha é bom de vez em quando.

Um comentário:

angela disse...

Essas mães...as vezes fadas, as vezes bruxas e na maioria das vezes fadas e bruxas.