O pior engano
é a certeza, as viravoltas do imprevisível espreitam nas cercanias da vida. E,
se parece patética a preocupação constante de isolar e prevenir cada pequena
minúcia, é porque estas são infindáveis, como a água de um mar que
transbordasse, em pequenas quantias mas por toda parte e ao mesmo tempo.
Chegaram ao
abrigo fortificado na madrugada de terça feira.
Dormiram nove
horas seguidas de pura exaustão. Luz e internet ainda não haviam voltado quando
acordaram. Os cinco sentaram nas cadeiras de campanha, dobráveis como a mesa
onde foi servida a primeira refeição. Ele distribuiu à mulher e aos filhos os
pacotes da ração de exército estocada que poderia sustentá-los pelos próximos
dois ou três meses.
“De qualquer
maneira, não podemos nos alimentar só com isso.”
“Como assim?
Essas gororobas não são balanceadas, e tudo mais?” Bob sofria para abrir a embalagem
marrom da MRE, a mítica ração de combate dos marines americanos. A namorada o
ajudava derramando cuidadosamente a água pra reação química no aquecedor
exotérmico.
“Acontece que
esses kits são pensados pra situação de stress, daí os caras atocham sal e
tempero flavorizante. É uma carga pesada nos rins de quem vai ficar
relativamente inativo como nós. Mesmo em combate, eles não recomendam
alimentação exclusiva com a MRE por mais de vinte e um dias.”
“O senhor acha
que precisamos ficar aqui enfurnados muito tempo?”
“Bob, imagino o
quanto é difícil pra você ficar longe da sua família, mas aqui nós temos que
seguir uma estratégia...”
“Pai, ele tá
mais perdido que cachorro em tiroteio, nunca fez os nossos acantonamentos, não
tem nenhuma habilidade sobrevivencial, zero bush
craft.” A menina tocava o dedo na ferida: os próprios filhos, e até a
mulher no começo, reclamavam dos constantes períodos de treinamento. Ficou
feliz com a ponta de orgulho que transparecia nas palavras da filha.
“Puá!! Esse
suco tem gosto de maçã podre, eca!”
“Hmm, meu bem,
põe um mel. Tem ali, naquele pote.” A mãe se desdobrava em cuidados com o caçula
depois do ataque que sofrera. Ajudou-o com a tampa.
“Prova o
frango com feijão. Sugestão do chefe: chicken
fajita.”
“Pai, porque
tem esse gosto de mofo em tudo?”
“É do processo
da conserva, pelo menos não é liofilizada e o aquecedor químico funciona bem.
Por um tempo é melhor a gente não cozinhar: a fumaça denunciaria a nossa
posição. Precisa ficar claro que segurança total, só temos aqui dentro, será
necessário esperar, monitorar, e só fazer saídas planejadas. Pelos próximos
dias ainda pode haver gente por aí atrás de comida, depois vai diminuir, esta é
uma zona rural.”
No dia
seguinte começaram as ações externas, primeiro, foram pequenas excursões
exploratórias nas imediações ― só iam os adultos. Não havia ainda uma situação
clara na opinião do chefe do grupo, ou seja, o pai. Bob ficou indignado com a
rígida hierarquia da família: o pai era o comandante; a mãe, a capitã; a
namorada, sargenta; o irmãozinho, soldado... e ele, a mosca do cocô do cavalo
do bandido. Sequer havia um cachorro que pudesse chutar.
Mas aí vieram
as “missões” mais importantes.
Dividiram-se
em duas equipes de dois integrantes cada, a mãe ficaria na base, controlando as
operações a partir do bunker,
acionando-os de cinco em cinco minutos pelo talk
about. Palavra-chave: João de barro, só João, sinal de problemas. O pai e a
filha desceriam até à chácara para verificar o estado da roça, colher o que
pudessem no pomar e recolher o que ainda houvesse de útil na casa. Pelo lado
oposto da encosta, Bob e o caçula iriam à nascente próxima com a missão de
desobstruir a bomba d’água.
Por decisão do
alto comando e estado maior, os dois namorados não iriam juntos em missões
externas. Mais um sapo que o rapaz teve de engolir: na hora da saída,
entregaram-lhe um facão de mato, mas a balestra Panzer ficou com o menino. Coronha
de polímero, quatro flechas de dezoito polegadas (com ponta) e aljava acoplada.
Do alto dos seus dezoito anos, não se conformava que não o deixassem nem chegar
perto das facas de aço carbono, e ainda lhe pespegassem como superior um
pirralho de onze!
“Cara, não
conhecia direito teus pais... cheios de regras, né? Achei que a sua irmã
exagerava um pouquinho nas histórias, mas é tudo verdade.”
“O que é que é
verdade, Bob?”
“Bem, essa
coisa de... sei lá, ordens, senhas, cronometrar tudo que faz...”
“Olha bem
isso”, o menino levantou a blusa expondo o ferimento no abdome, “Você acha que
eles tão exagerando? Véio, tá todo mundo muito pirado.”
“Certo. Ói lá,
chegamos.”
“Deixa que eu
sei o que é, são algas que entopem o comando de válvulas do carneiro
hidráulico. Enquanto eu limpo, dá uma vigiada em volta.”
“Ok, parece
que aqui todo mundo é fã do Bear Grylls...”
“Aí mano, você
tem aí pendurado no pescoço um apito e duas pederneiras, você sabe a diferença,
né?”
E assim, tendo
que chupar mais essa manga sem tirar os fiapos, lá se foi o Bob dar um rolê nas
adjacências só pra fingir que fazia alguma coisa. Não que esperasse encontrar uma
loja de conveniências aberta. Se pelo menos pudesse levar a balestra, ainda
dava pra caçar um que outro preá.
O garoto
rapidamente desincumbiu sua tarefa, preparava-se para ir procurar o companheiro,
quando soou o rádio.
“Alô, base,
câmbio.”
“Câmbio, grupo
dois, João de barro, câmbio.”
“Ok, câmbio,
desligo.”
Deu de cara
com uma cena apavorante: o Bob abria a mochila, tirava alguma coisa lá de
dentro e entregava pra uma mulher molambenta e curvada como um tronco seco. A
mendiga sumiu como um espectro na mata densa da montanha. Puxou o cunhado
paspalho dali e também deram o fora quase correndo.
“Tá louco,
bro?! Que é que cê tava fazendo, maluco?”
“Calma, meu,
não precisa gritar comigo. Só dei umas barras de cereal pra coitada. Nós temos
bastante...”
“Cala a boca,
não, não acredito que você fez uma merda dessas...”
“Pô, mano, não
é porque a situação tá pastosa, que a gente não vai ajudar quem tá passando
fome!”
“Pois agora
ela não passa fome, mas nós estamos passando peri...”
Antes que
conseguissem acionar o rádio, ou mesmo engatilhar a besta, viram-se cercados
por um bando de maltrapilhos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário