O ferimento foi
superficial, mas não a cicatriz.
Pelo menos,
dali em diante ficou claro que desconfiar de tudo e todos era a receita
vencedora a fim de conservar a pele. As pessoas não estavam se guiando pelos
seus programas habituais de conduta e reação, amigos e conhecidos da vida
inteira tornavam-se imprevisíveis como qualquer estranho da rua.
Os paranóicos,
os eremitas, os fóbicos sociais, estavam um passo à frente, mas nada garantia a
ninguém o cobiçado prêmio de sobrar pra contar a história.
Enquanto
pedalava na estradinha de terra iluminada pelo farol do seu capacete, pensou no
poder devastador das palavras: paranóico. Durante anos lutou com a etiqueta fácil
colada no lombo pelos seus detratores, em vão repetiu mil vezes nas redes
sociais que um sobrevivencialista não é um maluco das teorias conspiratórias,
dos apocalipses espetaculares.
Pelo simples
fato de que não há uma narrativa unificadora, o mundo não precisa acabar em apoteoses
hi-tech de efeitos especiais, nosso cotidiano apenas deteriora imperceptivelmente
na sua cantilena brutal e diária de tragédias. Grandes e pequenas.
Nada acontece
porque estamos anestesiados por sonhos de consumo. E aconteceu de ele, e sua
família por extensão, estarem preparados. O passado já saiu das nossas mãos, é
lenha queimada. O futuro será o que fizermos dele, é promessa de fogo. Todas as
escolhas da vida prática se dão entre pensamentos, pois será sempre tarde
demais pra escolher sobre os acontecimentos.
Este é o
motivo primeiro e último da preparação.
Sinalizou para
os retardatários passarem à sua frente. Parou. Consultou o seu relógio Suunto
Ambit. Estavam no local exato.
“Vai mesmo
fazer...?”
“Óbvio que
vou. É a única via de acesso pra carros.”
“Quer ajuda?”
“Não precisa.
Leva as crianças pro morro, vou ajeitar os explosivos.”
Fixou as
cargas com fita adesiva nas pilastras da ponte rústica, ativou o timer e se
afastou rapidamente. Dispunha de três minutos.
“Desçam das bikes,
abriguem-se atrás do tronco de uma árvore grande. Estilhaços podem vir da
direção a oito horas deste ponto.”
“Mãe, posso ir
na curva com o Bob ver a explosão?”
“Seu pai já
não falou dos estilhaços? Agora tapa os ouvidos, menina, que o deslocamento de
ar é bruto.”
Com efeito, dali
a pouco foram sacudidos por um tremor que ecoou nos vales ao redor. Os pássaros
saíram em revoada assustados na mata, depois, novamente o silêncio e a noite
fria.
Chegaram
extenuados ao sítio Recanto da Encosta, que, contrariando o nome, ficava no
alto de uma montanha nas fraldas da Mantiqueira. A porteira escancarada,
cachorros sumidos, a criação de gansos, cabras, coelhos e galinhas roubada.
Previsível.
Tomaram o rumo
norte pela trilha que saía por trás da horta, também ela rapinada. Doía pensar
que tamanho estrago havia sido provavelmente obra dos vizinhos. Assustava
pensar que a casa, assestada no pequeno platô antes do topo do morro, estivesse
ocupada por invasores hostis. Mas não era pra lá que se dirigiam.
“Porque o senhor
está jogando esses bagulho?”
“Bob, isto
aqui são ‘bombas de sementes’, combinados de germinação dos frutos, folhas e
legumes necessários nos próximos meses: espinafre, agrião, abóbora, quiabo,
jiló, nabos, beterrabas e os sempre ligeiros rabanetes.”
“Acha que vai
durar tanto... meses?”
“Acho só que
não sei. Mas não quero ser pego de calça curta. Quem rapelou nossa chácara não
vai voltar pra cultivar. Na próxima chuva isso já começa a brotar, e a nossa
reserva dá justo em cima.”
“A gente
consegue viver do que a terra dá?”
“Sustentabilidade,
garoto, temos uma mina d’água no terreno. Podemos complementar com caça, quem
sabe, achar algumas cabras e galinhas perdidas no mato e recomeçar uma criação.
O importante é resistir aos primeiros dias de balbúrdia.”
Como antevira,
a queda generalizada da energia elétrica paralisou também a governança local e
mundial. As agências públicas veiculavam pouquíssimas informações confiáveis,
e, quando o faziam, competiam entre si na inépcia e falta de coordenação. Por
exemplo, a clássica recomendação “fiquem calmos, evitem deixar as suas casas”,
resultou no extremo oposto.
Uma sucessão
de erros macabros: como a maioria das pessoas não estoca alimentos em casa, a
população correu a saquear os mercados; colocar exército e polícia nas ruas só
serviu pra expor imagens de saqueadores armados e fardados sem uma linha
coerente de comando.
Sua grande
obra, o Recanto da Encosta. Horta orgânica, pomar, oficina, placas de captação
fotoelétrica, cantinho da compostagem, de tudo isso abriria mão naquele momento
pela verdadeira jóia da coroa: o bunker enterrado no topo da montanha. Lá
estariam seguros, protegidos sob grossas paredes de concreto, além das duas
portas blindadas com chapas de aço balístico reforçadas por barras
anti-arrombamento feitas de mola de caminhão.
Abaixo um
esboço do Ninho do João de Barro:
Nenhum comentário:
Postar um comentário