Aquela
era uma jornada sem volta para o Velho Benja (como chamávamos o professor), a
senhora Gurland e o filho, José. Não pra mim: meu marido permanecera em
Marseilles tentando obter o visto de saída da zona de ocupação. Naquele outono
e no inverno seguinte ajudei centenas, talvez um milhar, de pessoas a
atravessar a fronteira por aquele caminho, em condições ainda mais adversas e
grupos maiores. Chegava a fazer quatro, cinco, travessias por semana, nenhuma
delas, no entanto, me marcaria da mesma forma.
A
França tinha virado uma nação em fuga, la
pagaille complète, ou o caos total, como diziam os nativos, um país inteiro
movendo-se em direção ao sul. Atrás de nós, inúmeras vilas e cidades mortas,
lugarejos sem vivalma onde cachorros e galinhas vagavam perdidos, e um único
ruído ao longe, trazido pelo vento, o matraquear sinistro das esteiras dos
tanques alemães. Nos portos da costa meridional, tornaram-se costumeiros relatos
de planos de fuga tão audaciosos como improváveis, multiplicavam-se notícias de
navios fantásticos, guiados por capitães de fábula, conduzindo fugitivos com
vistos para destinos ignorados por Atlas e passaportes de países que deixaram
de existir.
Não
estávamos com sorte. Muito antes da floresta de faias, castanheiros e abetos,
na qual caminharíamos mais abrigados, ouvimos comentários dos trabalhadores da
vindima indicando a presença de soldados nas cercanias; fomos obrigados a
contornar os campos abertos, abrindo passo custosamente por entre touceiras e
capinzais densos. Mantinha os movimentos do Velho Benja sob estrita observação:
marchava em ritmo lento e incrivelmente constante, sobraçando o calhamaço,
consultando o relógio constantemente.
―
Que tanto confere no relógio?
― Madame,
descobri que o máximo que agüento são dez minutos de marcha forçada, por isso é
que fico lhe pedindo um minuto de descanso entre estes períodos.
― Posso lhe
evitar essa canseira adicional, professor, eu o avisarei...
― Muito grato,
porém, só consigo suportar condições iníquas se estiver totalmente absorvido
por uma tarefa, enquanto controlo o tempo, ponho a minha mente a serviço de
salvar a minha vida.
― Bem pensado.
Escutem, vamos parar dez minutos, já estamos caminhando há quatro horas e meia.
Senhora, na sua musette temos pão do
posto de racionamento, tomates e um arremedo de marmelada do mercado negro.
Bebam pouco, por favor, não sei se encontraremos fontes de água na região.
― Com sua
licença, será que posso...?
Este era o
professor pedindo tomates, o mundo se desintegrando cultural, moral e
espiritualmente, mas nada seria capaz de fazê-lo abandonar seus modos de
cortesão de Castela. Em qualquer época que vivesse, seria um cavalheiro de
antigamente. No inverno anterior, antes mesmo da rendição, o governo francês
começou a prender os refugiados do leste em campos de concentração
co-administrados pelos nazistas. Meu marido, que o conheceu no campo de
Vernuche, perto de Nevers, descreveu assim seu companheiro de prisão numa
carta: “... mente aguda e clara como cristal, uma inquebrantável força
interior, e o mais despreparado dos seres humanos para os assuntos práticos da
vida”.
A cabana
escondida por urzes e giestas não passava de um celeiro semi-destruído pela
vegetação invasora, e o tal riacho a noroeste estava seco. Seguimos por encostas
e vales pedregosos durante mais ou menos duas horas em silêncio. O tempo todo
rememorava as instruções de M. Azéma: saia antes do amanhecer, misture-se aos
vindimadores na subida, carregue apenas uma musette
(pequeno saco a tiracolo), não fale. Guardas de fronteira facilmente identificariam
nosso sotaque. As condições físicas do Velho Benja, porém, deterioravam minuto
a minuto; sob a barba grisalha percebiam-se manchas vermelhas a tomar-lhe a
face. O sol ia alto no céu, todos ofegavam desgastados pelo calor e o cansaço.
―
Bom, bom, pelo nosso mapa, devemos estar bem perto de uma clareira e...
―
Lá está, lá está! A clareira, a clareira!
―
Shh, José, não grite!
―
Ok, não gastemos fôlego à toa, vamos nos acalmar e fazer uma parada um pouco
maior...
Achamos
a pequena trilha com uma ligeira inclinação à esquerda, então, o enorme rochedo
a noroeste, finalmente atingimos a clareira. Vi quando o pobre homem desabou na
grama exausto. O lugar não era propriamente seguro, e não tínhamos sequer
alcançado a metade do caminho. Mãe e filho já aguardavam para partir, mas ele
não se mexia.
―
Você está bem?
― Sim, vou
ficar bem. É melhor vocês três prosseguirem, eu fico.
― Como assim,
fica?! Não vou deixar ninguém pra trás, além do quê, esta é uma região de
touros selvagens, de contrabandistas e lobos... Tem idéia do que pode lhe
acontecer?
― Não poderão
me carregar montanha acima, nem ao menos até o abrigo. E a senhora, como me
protegeria de um touro? Voltem para a cabana, passem a noite lá. Amanhã cedo,
continuamos. Se algo me acontecer, a senhora Gurland saberá a quem entregar meu
manuscrito na Espanha.
Acabei
por concordar, o raciocínio era linear: o coração dele não agüentaria esforço
adicional, sua cota diária se esgotara. Quando partimos, estava sentado numa
pedra agarrado à pasta preta ― em nenhuma circunstância largava o cartapácio,
sua missão era arrastar aquele monstro e a si mesmo até o outro lado. A
garganta me apertava como se fosse chorar a qualquer momento, deixar um homem
daqueles numa situação daquelas me angustiava o peito com o peso de todas as
montanhas dos Pirineus. Era uma situação de pesadelo, sentia-me largando um
parente querido, abandonando uma criança sozinha no meio da floresta com a
promessa de retornar na manhã seguinte.
Um comentário:
muito bom!!!
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