sábado, 16 de novembro de 2013

os apátridas (2)


            Aquela era uma jornada sem volta para o Velho Benja (como chamávamos o professor), a senhora Gurland e o filho, José. Não pra mim: meu marido permanecera em Marseilles tentando obter o visto de saída da zona de ocupação. Naquele outono e no inverno seguinte ajudei centenas, talvez um milhar, de pessoas a atravessar a fronteira por aquele caminho, em condições ainda mais adversas e grupos maiores. Chegava a fazer quatro, cinco, travessias por semana, nenhuma delas, no entanto, me marcaria da mesma forma.
            A França tinha virado uma nação em fuga, la pagaille complète, ou o caos total, como diziam os nativos, um país inteiro movendo-se em direção ao sul. Atrás de nós, inúmeras vilas e cidades mortas, lugarejos sem vivalma onde cachorros e galinhas vagavam perdidos, e um único ruído ao longe, trazido pelo vento, o matraquear sinistro das esteiras dos tanques alemães. Nos portos da costa meridional, tornaram-se costumeiros relatos de planos de fuga tão audaciosos como improváveis, multiplicavam-se notícias de navios fantásticos, guiados por capitães de fábula, conduzindo fugitivos com vistos para destinos ignorados por Atlas e passaportes de países que deixaram de existir.
            Não estávamos com sorte. Muito antes da floresta de faias, castanheiros e abetos, na qual caminharíamos mais abrigados, ouvimos comentários dos trabalhadores da vindima indicando a presença de soldados nas cercanias; fomos obrigados a contornar os campos abertos, abrindo passo custosamente por entre touceiras e capinzais densos. Mantinha os movimentos do Velho Benja sob estrita observação: marchava em ritmo lento e incrivelmente constante, sobraçando o calhamaço, consultando o relógio constantemente.
            ― Que tanto confere no relógio?
― Madame, descobri que o máximo que agüento são dez minutos de marcha forçada, por isso é que fico lhe pedindo um minuto de descanso entre estes períodos.
― Posso lhe evitar essa canseira adicional, professor, eu o avisarei...
― Muito grato, porém, só consigo suportar condições iníquas se estiver totalmente absorvido por uma tarefa, enquanto controlo o tempo, ponho a minha mente a serviço de salvar a minha vida.
― Bem pensado. Escutem, vamos parar dez minutos, já estamos caminhando há quatro horas e meia. Senhora, na sua musette temos pão do posto de racionamento, tomates e um arremedo de marmelada do mercado negro. Bebam pouco, por favor, não sei se encontraremos fontes de água na região.
― Com sua licença, será que posso...?
Este era o professor pedindo tomates, o mundo se desintegrando cultural, moral e espiritualmente, mas nada seria capaz de fazê-lo abandonar seus modos de cortesão de Castela. Em qualquer época que vivesse, seria um cavalheiro de antigamente. No inverno anterior, antes mesmo da rendição, o governo francês começou a prender os refugiados do leste em campos de concentração co-administrados pelos nazistas. Meu marido, que o conheceu no campo de Vernuche, perto de Nevers, descreveu assim seu companheiro de prisão numa carta: “... mente aguda e clara como cristal, uma inquebrantável força interior, e o mais despreparado dos seres humanos para os assuntos práticos da vida”.
A cabana escondida por urzes e giestas não passava de um celeiro semi-destruído pela vegetação invasora, e o tal riacho a noroeste estava seco. Seguimos por encostas e vales pedregosos durante mais ou menos duas horas em silêncio. O tempo todo rememorava as instruções de M. Azéma: saia antes do amanhecer, misture-se aos vindimadores na subida, carregue apenas uma musette (pequeno saco a tiracolo), não fale. Guardas de fronteira facilmente identificariam nosso sotaque. As condições físicas do Velho Benja, porém, deterioravam minuto a minuto; sob a barba grisalha percebiam-se manchas vermelhas a tomar-lhe a face. O sol ia alto no céu, todos ofegavam desgastados pelo calor e o cansaço.
            ― Bom, bom, pelo nosso mapa, devemos estar bem perto de uma clareira e...
            ― Lá está, lá está! A clareira, a clareira!
            ― Shh, José, não grite!
            ― Ok, não gastemos fôlego à toa, vamos nos acalmar e fazer uma parada um pouco maior...
            Achamos a pequena trilha com uma ligeira inclinação à esquerda, então, o enorme rochedo a noroeste, finalmente atingimos a clareira. Vi quando o pobre homem desabou na grama exausto. O lugar não era propriamente seguro, e não tínhamos sequer alcançado a metade do caminho. Mãe e filho já aguardavam para partir, mas ele não se mexia.
            ― Você está bem?
― Sim, vou ficar bem. É melhor vocês três prosseguirem, eu fico.
― Como assim, fica?! Não vou deixar ninguém pra trás, além do quê, esta é uma região de touros selvagens, de contrabandistas e lobos... Tem idéia do que pode lhe acontecer?
― Não poderão me carregar montanha acima, nem ao menos até o abrigo. E a senhora, como me protegeria de um touro? Voltem para a cabana, passem a noite lá. Amanhã cedo, continuamos. Se algo me acontecer, a senhora Gurland saberá a quem entregar meu manuscrito na Espanha.
            Acabei por concordar, o raciocínio era linear: o coração dele não agüentaria esforço adicional, sua cota diária se esgotara. Quando partimos, estava sentado numa pedra agarrado à pasta preta ― em nenhuma circunstância largava o cartapácio, sua missão era arrastar aquele monstro e a si mesmo até o outro lado. A garganta me apertava como se fosse chorar a qualquer momento, deixar um homem daqueles numa situação daquelas me angustiava o peito com o peso de todas as montanhas dos Pirineus. Era uma situação de pesadelo, sentia-me largando um parente querido, abandonando uma criança sozinha no meio da floresta com a promessa de retornar na manhã seguinte.


Um comentário:

Anônimo disse...

muito bom!!!