A grande arte vale tanto pela vivência que envolve a sua fruição direta quanto pelas reflexões que suscita. Setecentas e cinqüenta mil pessoas tiveram o privilégio presencial, o documentário “Marina Abramovic, a artista está presente” de Matthew Akers (2012), registra uma performance histórica. O filme é centrado no evento realizado em 2010 no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), que fazia uma grande retrospectiva de sua carreira. Marina Abramovic ficou sentada diante de uma mesa e uma cadeira que os visitantes eram convidados a ocupar de frente para ela durante três meses no átrio do museu.
Muito embora uma série de regras estivessem cuidadosamente prefixadas (o tempo de que cada visitante dispunha, proibição de falar, jogar panfletos, tirar a roupa, etc.), não deixa de chamar a atenção as reações imprevisíveis que a arte performática sempre convoca no público. Generosa, a artista explicita o quanto há ali de produzido, de calculado, aliás, esta é a marca atual do seu trabalho, cálculo e programação rigorosos. Pouco espaço para o amadorismo e o espontaneísmo que marcaram sua carreira de performances radicais.
Nos anos 70 do século passado, a arte performática se apresentou na cena das artes plásticas como um questionamento radical de todo o sistema de produção, circulação e comercialização vigente até então. Especificamente, as performances problematizavam o próprio sistema da arte, atacando um pilar básico do mercado: o objetinho-fetiche produzido pelo artista-celebridade não podia ser vendido a um feliz milionário que o exporia na sala, deixando os demais doentes por não o possuírem. Como, por exemplo, levar para casa um happening em que um homem e uma mulher se estapeiam por horas?
É emocionante a aparição do seu companheiro, na vida e na arte, Ulay, encontro que ocorre depois de mais de vinte anos de separação. De certa forma, Ulay e Marina são exemplares dos destinos da contestação aos pressupostos mercadológicos do fazer artístico. Curto e grosso modo, houve 2 alternativas aos anarco-artistas de ontem: Ulay é o típico exemplar do underground, fiel às origens, manteve o status de artista "maldito" e/ou "alternativo", vivendo das migalhas do tão criticado sistema, oposto na aparência àqueles que se renderam incondicionalmente ao Capital.
O problema é que, se Ulay pode ser encaixado sem traumas no clichê udigrudi, sua ex partner não é um típico produto do establishment. Marina Abramovic realiza uma proeza de largo alcance: não finge que está contra um Sistema mais onipresente que o Deus-Pai, ela o atualiza, o questiona de dentro (já que não há fora), impondo sua trajetória muito peculiar na história da arte. Marina não é cínica como Damien Hirst, o fatiador de tubarões e bezerros, ou como o palhaço Jeff Koons, mais prostituto que Cicciolina, com quem se casou.
Não, nada disso. Marina vendeu sua arte feita de corpo, presença ― e explicita sem mumunhas a forma como tornou esta arte vendável ―, já que é disso que se trata na performance, mas salvou (para ela e para o seu público) alguma “verdade” da alma, essencialmente artística. A “verdade” da arte não é a verdade “verdadeira”, mas a mentira que nos esclarece sobre a natureza da realidade e do ser humano. Isto não é pouco, nem fácil de se fazer.
Arte depende do mercado. Sempre foi assim e sempre será, mas uma coisa é vender, bem outra é se vender. Prostituição sim, mas sem beijinho na boca!
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