― Amor, você
se importaria de baixar o som da tevê? Pelo menos na hora do jantar...
― Ai, bem,
deixa só eu ouvir isso: descobriram mais uma vítima do “Maníaco da Machadinha”.
― Eu sei que é
o seu trabalho, o seu projeto... mas, é que me arrepia a maneira como falam desses
crimes: os especialistas analisando os ferimentos, criminologistas que
distinguem os imitadores do “verdadeiro” psicopata... É muito triste viver numa
cidade em que coisas assim viram uma novela macabra que todos acompanham, e
ainda tem a polícia, que não consegue, ou não quer, fazer nada. Um horror completo!
― É justamente
o que me interessa neste caso, Beni, a nossa cegueira e anestesia quanto aos
verdadeiros problemas, a agenda real. O psicopata solitário é o oposto
complementar, o inimigo necessário, de uma sociedade-manada que se move por
espasmos de medo, indignação, ou paranóia coletiva. Caímos como patinhos na
órbita de fascínio do macabro, seqüestrando o debate público para o irrisório, a
banalidade do mal.
Beni mantém
uma atitude de educada ojeriza a respeito da minha obsessão: escrever sobre o
maníaco que há um ano e caqueirada vem matando mulheres na cidade, soa para ele
tão razoável quanto revogar a lei da gravidade. A minha dificuldade em pôr o
preto da letra no branco da tela parece confirmar o absurdo da empreitada. Mas
não desisto. Guardo uma pasta com recortes de jornal, páginas impressas de sites
e blogs, cópias clandestinas de exames do IML, fotos, etc., relacionados aos
assassinatos em série. No
computador, porém, o arquivo O Monstro, nome de batismo do meu romance virtual,
continua vazio.
Faço o
trabalho de campo. Não fico flanando sem rumo dentro da caminhonete à prova de
balas de fuzil do meu namorado seqüestrável ― visito os locais onde as vítimas
foram executadas. Um instrumento cortante e contundente, que a mídia
apressadamente associou a uma machadinha. Pontos de ônibus, saídas de estações
de trem, praças ermas, ruas mal iluminadas, passagens e matagais, lugares em
que uma dezena de mulheres encontrou seu fim voltando do trabalho ou da escola.
Com o que sonhariam? Será que alguma delas estava tentando escrever um livro?
No curso do
professor Asdrúbal, distraio-me observando sua cabeça bronzeada. Sei que vai
completar cinqüenta e dois anos daqui a pouco, mas não lhe daria mais de
setenta e nove. Tenho um prazer guloso em ver pessoalmente esta grande cabeça
de homem, à qual todas as marcas da passagem do tempo só fizeram ajuntar ressentimento
e desleixo. Sigo o trajeto de cada uma das suas rugas pela calvície que lhe
aumenta a escalavradura do vulto.
― Vejo que
vocês são todos muito jovens, ah, não se preocupem, a juventude é uma doença
que tem cura: envelhecer. É o que dizia o Nelson Rodrigues. Já a velhice é um
problema que não tem cura nenhuma, meus caros. O outro problema que detecto em
vocês é bem mais grave: a maioria aqui não está interessada em crônicas. Que
pena... Não é um bom momento para a ficção, nunca é, vivemos em tempos de
“baseado em fatos reais”, de jornalismo literário, misturas mais ou menos bem
sucedidas de relatos biográficos, com personagens históricos e inventados, e
por aí vai. Mas, já que pediram, comecemos elencando os principais aspectos do
romance: em primeiro lugar, o menos importante, a trama. Tanto faz, escolham
qualquer uma ao acaso, bem feitas as contas, deve haver uns cinco ou seis
enredos básicos de onde todos os outros derivam. Kurt Vonnegut aconselhava a
gastar a cera boa com o melhor defunto: concentrar-se em forjar uma maneira de contar
o que vemos, em dar forma à nossa interpretação do mundo. Isto se chama estilo.
― Mestre,
dizem que o senhor é o inimigo número um da ficção histórica, procede? ― este é
o aluninho pão-com-ovo, leu tudo que o palestrante escreveu, sempre pronto a
fazer “escada” para palpitantes polêmicas.
― Não é bem
assim, mas passe. O que eu não gosto é de literatura com adjetivos: literatura
engajada, de gênero, de minorias, de denúncia, de resistência, et caterva.
Costumo dizer que os bons livros, como os bons escritores, têm amigos, mas não
têm família, clube, nem partido. São viajantes perdidos, uma comunidade de
solitários como os homens-livro de Farenheit 451. O romance, dizia Faulkner, é
a vida secreta do escritor, e o escritor, por sua vez, é o dublê de alma do
homem... Tenho muita dificuldade em aceitar os pólos sociologizantes ou
psicologizantes, para mim, a dialética do fenômeno estético é do tipo onda/partícula:
quando se consegue definir uma coisa, perde-se necessariamente a outra. A obra
nasce da biografia tanto quanto da história com maiúscula, como construção em
curso no dasein, o ser-aí, o que está acontecendo bem diante do nariz. O
universo da ficção aumenta o mundo, mas não o explica, porque a ficção precisa
fazer algum sentido, o mundo não. A vida é puro jorro de som e fúria, a mais
delirante das realidades imagináveis, e por isso mesmo o realismo em literatura
terá sempre algo de mágico. É o poste que mija no cachorro, nós fazemos o
cachorro erguer a pata pra salvar as aparências...
Minha mente viajava
traçando um paralelo entre o professor Asdrúbal e o Beni: o zero à esquerda, e
o zero à direita. Asdrúbal, dedica-se a uma atividade inútil, a literatura,
zero à esquerda; Beni, abraça causas politicamente corretas, zero à direita; A,
feio, pobre e bafo de onça; B, lindo, abonado e cheiroso feito miss; A, melancólico,
discurso escalafobético que associa alhos com caralhos; B, de bem com a vida, coerente,
o senhor sensato; A, despreza a polpa dos fatos, a linearidade, mira o invisível;
B, conversa sempre ao rés do chão, argumenta com dados e moderação. A última
invenção do B: uma fábrica de cerdas para vassouras que recicla plástico pet,
antes disso, eram as hortas orgânicas. Os restos dessas empreitadas vão se
acumulando no galpão dos fundos da casa. Zero à direita quando vem depois da
vírgula...
― Você viu que
apareceram as primeiras imagens do psicopata da machadinha? Como cê tava
pesquisando achei... o que vazou era uma filmagem de longe, escura, o rosto
coberto por um capuz. Andando do lado da coitada, mochila nas costas, conversando...
A informação
da colega na saída da oficina de escrita me deixou estranhamente comovida, eufórica,
mas com uma ponta de inveja ― iam descobrir antes de mim! Comecei a me
perguntar se o que eu fazia não era um inquérito paralelo, acumulando pistas
como numa investigação de verdade, em vez de simplesmente escrever um relato
fantasioso sobre fatos reais. Será que tinha pirado na batatinha achando que
realmente fazia o trabalho da polícia? A hipótese mais doida que me ocorria é
que tinha me tornado personagem de uma história que não estava escrevendo.
Depois de um
chá, dois conhaques e um tarja-preta, já instalada na cozinha de casa, entrei
novamente em estado onírico. Pela primeira vez, o devaneio se modificou. O mar
tinha a mesma cor de lama, opaco e violento a refletir o céu tumultuado, a
natureza travava a batalha definitiva de uma guerra particular, a terra jazia
exausta sob uma tormenta inclemente. Agora estou deitada na grama à beira do
penhasco, agarrando ferozmente a vegetação ao redor para não ser arrastada
pelos ventos fortes. Lá em baixo, ouço as ondas rebentando nas pedras. Deitada
ali, percebo o ponto de cisão de quem não consegue se levantar ou se segurar.
Preciso me colocar de pé outra vez.
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