Eu
mesma não sei por que comecei mais este curso, mais uma oficina de escrita
criativa, mais uma vez no sentada num banco escolar com a cabeça em uma galáxia
distante. É sempre a mesma história: começo a milhão, faço todas as tarefas
pedidas, e no final sobra o mesmo retrogosto de missão cumprida e inútil. Desta
vez o álibi é nenhum, trata-se de um workshop sobre crônicas, um gênero que não
pratico, não gosto e não interessa para o projeto em que estou mergulhada:
escrever meu primeiro romance.
Um
estranho sortilégio me deixou incapaz de escrever uma linha além do título no
arquivo omonstro.doc que jaz intocado na área de trabalho do meu notebook. Pelo
menos o professor Asdrúbal é completamente passado das idéias e as aulas são um
primor de nonsense e bizarria, o que
no fundo ajuda a distrair da minha paralisia imaginativa.
―
Do que fala o cronista? De zero a tudo, mas, principalmente, sobre o “nada”, a
falta de assunto é o terror cotidiano desta igualmente cotidiana escritura. A
crônica diária não é para os fracos das teclas e da alma, reza a lenda que um
famoso autor só aceitou uma coluna semanal no falecido JB depois de ter escrito
cem crônicas. As quais, obviamente, nunca utilizou durante os trinta anos que
durou a sua colaboração naquele jornal... O cronista escreve rente à realidade,
falando, por assim dizer, ao pé do ouvido do seu público, como os radialistas. E
a resposta dos leitores, em tempos de internet, é escutada de imediato, seja na
forma de cliques, de comentários, ou de violentas cornetadas, quando não,
agressões verbais. Não há tema nobre ou plebeu na crônica: a grande tragédia do
momento, a mais desbotada das banalidades, servem tão bem quanto mal (depende
sempre do talento) para esta prosa em traje de passeio. Se o poeta é um
fingidor, o cronista é um filtrador: separa e junta, personaliza a crítica, radicaliza
contemporizando, discrimina e mistura; no seu liquidificador ficcional se
debulham a casca dos faits divers e a
polpa das grandes questões da humanidade...
Sei,
sei, essas coisas do tipo: onkotô, onkovô, kenkosô... hmm, tio Asdrúbal está atacado
hoje, esse “famoso autor” perigas de ser o Sabino. Ele escrevia no Jornal do
Brasil? Daqui a pouco vai falar do Rubem Braga. É infalível.
―
... um grande cronista é sempre um grande artesão da língua, já o grande autor
nem sempre produz o bom cronista. Vamos a um grande entre os grandes: Machadão.
Nos romances e contos machadianos sentimos o retinir do bronze da imortalidade,
a beleza do que é eterno e definitivo; ao passo que nas crônicas, comparece o
homem Machado de Assis, os ignóbeis preconceitos, miopias e limitações do
censor de costumes. Vocês sabiam que ele censurava peças de teatro? Vejamos
agora o último parágrafo desta crônica de Rubem Braga, do livro Recado de primavera:
“Assim pois, contemplando minha vida pregressa nesta bela tarde de verão quando
há evanescentes nuvens róseas lá longe sobre o mar de Ipanema, e me sentindo
mais ou menos conformado com a minha solidão, lembro-me de que o nome latino desse
nobre galináceo e caça fidalga, o macuco, é Tinamus
solitarius, e me recordo de ter visto ovos de macuco, e retorno à primeira
frase desta pequena composição jornalística chamada crônica, e digo: todos os
telefones eram pretos e todas as geladeiras eram brancas, mas os ovos do macuco
já eram e ainda são ― azuis. Esverdeados, porém azuis”. Percebam que o
conceito-chave desta “pequena composição jornalística”, e da crônica de uma
maneira geral, vem a ser justamente a “evanescência”: as nuvens evanescentes da
tarde de Ipanema, a transitoriedade da vida, a solidão do autor e do nome
latino do macuco, a evanescência dos ovos “esverdeados, porém azuis”. Graça,
liberdade e dignidade clássica, o homem é o estilo na escrita do nosso cronista
maior.
Tudo
isso é muito belo e muito bom, porém, não me rende uma mísera composição
jornalística, nem sequer algumas linhas de prosa satisfatória para o livro que
estou, ou deveria estar, escrevendo. Sempre ouvi com uma certa incredulidade os
relatos de escritores sobre o famigerado bloqueio criativo, mas nunca pensei
que aconteceria comigo. As idéias costumavam brotar como cogumelos depois da
chuva, vinham-me durante o banho, na plataforma de embarque do metrô, ou na
fila do caixa da padaria onde tomo o café da manhã. Algo tão natural como espirrar
ou marcar uma consulta no dentista.
Despeço-me
dos colegas de curso e vou para o estacionamento pegar o carro do Beni, meu
namorado. Uma verdadeira mão na roda agora que troquei a Pompéia por Cotia.
Depois de dois anos de namoro resolvemos morar juntos, isto é, mudei para a imensa
casa dele na Granja Viana. Beni é uma graça de rapaz: grotescamente rico,
limpinho, do bem, e... absolutamente incapaz de terminar qualquer uma das suas
muitas iniciativas pra tornar o mundo um lugar melhor. Seria o homem ideal se
eu não implicasse tanto com o nome dele: Bernardo Felizardo. Que tipo de
idiotas faz rima rica com
os sufixos do nome e do sobrenome do filho único?
Brega
no úrtimo. Pra sorte deles, os pais já tinham morrido quando o conheci, caso
contrário, não deixaria barato uma tosqueira dessas. Enfim, cada cabeça, sua
sentença. A bem dizer, não sei onde estava eu com a minha quando desisti da
carreira de autora de livros infantis. Tá certo, eram todos muito ruins, mas
vendiam e vendem que nem pão quente. Bela troca fui fazer: de escritora de livros
de merda, pra escritora de merda nenhuma. Agora estou aqui, empacada, sem
vender, nem escrever. As únicas atividades que preenchem meu tempo são esses
cursos e ficar zanzando pela cidade sem rumo no carro blindado do Beni.
Pra
não dizer que o meu cérebro não tem produzido nada, vêm ocorrendo dois tipos de
fenômenos que se repetem: um devaneio diurno e um pesadelo. O sonho não varia
muito: estou no quarto de dormir, na cama de casal que pertenceu aos pais do
Beni, suíte que ele insistiu que ocupássemos, embora, a princípio, eu tivesse
recusado por achar mórbido demais. Estou sozinha na cama. Ouço um barulho vindo
do banheiro, pergunto: “Quem está aí?”, nada, ninguém responde. Sento-me na
cama, nua, então vejo, recortada na contraluz, a silhueta do meu namorado
saindo do toalete. “Que susto, Beni, por que não me respondeu?”. Ele se
aproxima em silêncio, e me esbofeteia violentamente com as costas da mão.
Durante
o dia, a cena que me vem é rigorosamente a mesma, sempre. Estou em pé em meio a
uma tempestade, à beira de um precipício. O mar revolto lá em baixo, quebrando
violentamente, e eu de braços abertos, cabelos revoltos, pés no chão, coração
nas estrelas, a mente conectada a toda aquela selvageria em volta, firme,
enfrentando tudo, sem me perder nem me render às forças da natureza. Dizem que
o melhor caminho diante de um abismo é dar um passo atrás... Eu ouso permanecer
em pé.
Um comentário:
Quando o imprevisível e incontrolável da natureza do outro é visível, só pode ser pesadelo!
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