sábado, 26 de janeiro de 2013

Prainha (final)



O desânimo se infiltrou, como é costume nestas ocasiões aziagas em nossa pequena sociedade, à maneira dos súbitos nevoeiros que precedem as quedas na pressão atmosférica: uma falta de assunto de uns para com os outros, a má vontade de fazer as coisas, uma covardia pra saltar da rede e começar um novo dia. No entanto, por maior e mais evidente que fosse o sofrimento, tudo se desenrolava dentro de uma seqüência preestabelecida ― a esta altura, pouco me enganava acerca dos outros e de mim mesmo ―; conforme esse comportamento esperado ia se confirmando passo a passo, sentia a constrição do coletivo empurrando, apertando, mas também percebia o quanto este abraço invisível do Leviatã não era muito mais do que a somatória das contribuições (voluntárias!) de cada um para a normalização da anormalidade.
O absurdo é mais facilmente banalizável do que o ligeiramente desviante, basta apenas que ocorra com certa freqüência e seja consensual a cegueira que o desvê. Assim como os meus companheiros, sabia que aquilo ia se repetir: não era a primeira vez, não seria a última; o drama todo é que nem sempre as bestas-feras conseguiam pegar gente, em geral chupavam a mioleira de algum gato, ou cachorro, mais amiúde pegavam os gambás das redondezas. Mas sempre os ouvimos à noite, rondando a Casa dos Homens; à espera de um descuido fatal ― porque o manjar predileto deles, bem o sabemos, somos nós. As crianças têm uma noção de risco menor; infelizmente, é preciso sobreviver a vários perigos antes de acreditar neles pra valer. Coitado do Suiriri, gostava dele.
Acontece que a tristeza na Prainha é como mula velha: não toma andadura, e se toma, pouco lhe dura. Já antecipava onde o clima borocoxô ia dar, numa festança de atravessar noites e dias, com direito a comilança, pinga, diamba e suruba geral. O gatilho foi dado pelo período de reprodução dos siris; era a época deles, quando saem do mar e surgem aos milhares saindo das rochas e mangues para acasalar no estuário do riacho que desce da montanha ― o mesmo onde, mais acima, haviam trucidado o Suiriri.
Fogueiras foram armadas, panelões e caldeiras enormes ferviam o leite de coco e o dendê no molho de tomate, nas quais se despejava a cebola picada, o açafrão, o colorau, os dentes de alho socados com sal e limão, as rodelas de pimentão amarelo, verde e vermelho, o coentro, a cebolinha, a pimenta malagueta e de cheiro e... claro, siris vivos, às mancheias, trazidos em redes, puçás, sacos, corotes e picuás, ainda batendo as patas e estalando as pinças. A farra comia solta, a gritaria ecoava por toda a praia mantendo afastadas do pitéu gulosas gaivotas e fragatas.
Subi o riacho na direção do morro, não queria participar daquela alegria forçada; sentia-me roubado de alguma coisa que não sabia dizer qual, um embrulho de tripas esquisito, uma vontade de mijar sem mijo. Havia um desacordo completo no espírito e no corpo. Fiquei ali á toa, sentado numa pedra a matutar em nada. Apareceu uma mulher, minha companheira mais freqüente.
― Que é que você tem? Por que não está lá em baixo junto com a gente?
― Sei lá... só sei que não estou bem.
― È por causa do Suiriri, não é?
― Não sei, é um pouco de tudo... tô meio que assim, engazopado com a merda toda...
― Calma rapaz, você não teve culpa nenhuma. Tenho certeza que se você o tivesse visto...
― Escuta, por que é que a gente não acaba logo com isso, hem? A gente sabe onde eles estão, quem são, é só ir lá e acabar com essa agonia de uma vez por todas.
― Como assim? Você está dizendo, quer dizer, a gente matar... os velhos?
― Claro! A gente sabe que de noite eles ficam violentos, fortes, sedentos de sangue... o nosso sangue! Vamos lá e acabamos de vez com esse horror...
― Mas... se eles são nossos pais e mães, quem nos trouxe pro mundo... E depois, em que tipo de monstros nós nos transformaríamos depois de, de...
― Só que, olha pra eles, são cacos de gente, não lembram nada, não falam coisa com coisa, nem sabem mais por que estão aqui; não vivem, vegetam. São como mortos, mortos que se alimentam dos vivos!
― Vem comigo, a caldeirada está ficando pronta. Vamos.
Descemos juntos, meu coração estava pequenininho. Um frio estranho me encolhia os movimentos. Paramos ao lado de uma das fogueiras sobre a qual se equilibrava uma panela alta onde eram despejados continuamente os animais ainda vivos. Reparei que, apesar da altura da panela, alguns siris logravam subir até a beira, buscando escapar da morte certa. Inutilmente. Tão logo um deles alcançava a borda, as pinças dos outros o prendiam e puxavam para baixo.

2 comentários:

angela disse...

cruel!
e muito bom

Bicho do Mato disse...

Oi amiga, tudo bem? Vim conhecer seu
blog e achei muito interessante, já
estou seguindo. Gostaria de convidá-la
a fazer uma visitinha ao meu blog,
onde posto minhas poesias, se você
gostar, ficarei muito honrado em tê-la
como seguidora. Desejo uma ótima
semana pra você, com muitas alegrias.
Abraços do amigo Bicho do Mato.