O desânimo se
infiltrou, como é costume nestas ocasiões aziagas em nossa pequena sociedade, à
maneira dos súbitos nevoeiros que precedem as quedas na pressão atmosférica:
uma falta de assunto de uns para com os outros, a má vontade de fazer as
coisas, uma covardia pra saltar da rede e começar um novo dia. No entanto, por
maior e mais evidente que fosse o sofrimento, tudo se desenrolava dentro de uma
seqüência preestabelecida ― a esta altura, pouco me enganava acerca dos outros
e de mim mesmo ―; conforme esse comportamento esperado ia se confirmando passo
a passo, sentia a constrição do coletivo empurrando, apertando, mas também
percebia o quanto este abraço invisível do Leviatã não era muito mais do que a somatória
das contribuições (voluntárias!) de cada um para a normalização da
anormalidade.
O absurdo é
mais facilmente banalizável do que o ligeiramente desviante, basta apenas que ocorra
com certa freqüência e seja consensual a cegueira que o desvê. Assim como os
meus companheiros, sabia que aquilo ia se repetir: não era a primeira vez, não
seria a última; o drama todo é que nem sempre as bestas-feras conseguiam pegar
gente, em geral chupavam a mioleira de algum gato, ou cachorro, mais amiúde
pegavam os gambás das redondezas. Mas sempre os ouvimos à noite, rondando a
Casa dos Homens; à espera de um descuido fatal ― porque o manjar predileto
deles, bem o sabemos, somos nós. As crianças têm uma noção de risco menor;
infelizmente, é preciso sobreviver a vários perigos antes de acreditar neles
pra valer. Coitado do Suiriri, gostava dele.
Acontece que a
tristeza na Prainha é como mula velha: não toma andadura, e se toma, pouco lhe
dura. Já antecipava onde o clima borocoxô ia dar, numa festança de atravessar
noites e dias, com direito a comilança, pinga, diamba e suruba geral. O gatilho
foi dado pelo período de reprodução dos siris; era a época deles, quando saem
do mar e surgem aos milhares saindo das rochas e mangues para acasalar no
estuário do riacho que desce da montanha ― o mesmo onde, mais acima, haviam
trucidado o Suiriri.
Fogueiras
foram armadas, panelões e caldeiras enormes ferviam o leite de coco e o dendê
no molho de tomate, nas quais se despejava a cebola picada, o açafrão, o
colorau, os dentes de alho socados com sal e limão, as rodelas de pimentão
amarelo, verde e
vermelho, o coentro, a cebolinha, a pimenta malagueta e de cheiro e... claro,
siris vivos, às mancheias, trazidos em redes, puçás, sacos, corotes e picuás,
ainda batendo as patas e estalando as pinças. A farra comia solta, a gritaria
ecoava por toda a praia mantendo afastadas do pitéu gulosas gaivotas e
fragatas.
Subi o riacho
na direção do morro, não queria participar daquela alegria forçada; sentia-me
roubado de alguma coisa que não sabia dizer qual, um embrulho de tripas
esquisito, uma vontade de mijar sem mijo. Havia um desacordo completo no
espírito e no corpo. Fiquei ali á toa, sentado numa pedra a matutar em nada. Apareceu uma
mulher, minha companheira mais freqüente.
― Que é que
você tem? Por que não está lá em baixo junto com a gente?
― Sei lá... só
sei que não estou bem.
― È por causa
do Suiriri, não é?
― Não sei, é
um pouco de tudo... tô meio que assim, engazopado com a merda toda...
― Calma rapaz,
você não teve culpa nenhuma. Tenho certeza que se você o tivesse visto...
― Escuta, por
que é que a gente não acaba logo com isso, hem? A gente sabe onde eles estão,
quem são, é só ir lá e acabar com essa agonia de uma vez por todas.
― Como assim?
Você está dizendo, quer dizer, a gente matar... os velhos?
― Claro! A
gente sabe que de noite eles ficam violentos, fortes, sedentos de sangue... o
nosso sangue! Vamos lá e acabamos de vez com esse horror...
― Mas... se
eles são nossos pais e mães, quem nos trouxe pro mundo... E depois, em que tipo
de monstros nós nos transformaríamos
depois de, de...
― Só que, olha
pra eles, são cacos de gente, não lembram nada, não falam coisa com coisa, nem
sabem mais por que estão aqui; não vivem, vegetam. São como mortos, mortos que
se alimentam dos vivos!
― Vem comigo,
a caldeirada está ficando pronta. Vamos.
Descemos
juntos, meu coração estava pequenininho. Um frio estranho me encolhia os
movimentos. Paramos ao lado de uma das fogueiras sobre a qual se equilibrava
uma panela alta onde eram despejados continuamente os animais ainda vivos.
Reparei que, apesar da altura da panela, alguns siris logravam subir até a
beira, buscando escapar da morte certa. Inutilmente. Tão logo um deles
alcançava a borda, as pinças dos outros o prendiam e puxavam para baixo.
2 comentários:
cruel!
e muito bom
Oi amiga, tudo bem? Vim conhecer seu
blog e achei muito interessante, já
estou seguindo. Gostaria de convidá-la
a fazer uma visitinha ao meu blog,
onde posto minhas poesias, se você
gostar, ficarei muito honrado em tê-la
como seguidora. Desejo uma ótima
semana pra você, com muitas alegrias.
Abraços do amigo Bicho do Mato.
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