—
O Abelha quer falar com você, e tá uma vara; melhor não embaçar, vai direto lá
na sala dele.
Ouviu
a mesma frase várias vezes, com ligeiras variantes, da boca de variadas pessoas
assim que pisou no distrito na manhã seguinte. Tinha passado o dia anterior
todo no condomínio dos playbas e não podia imaginar o que cacique podia querer
com índio tão cedo — menos ainda com o que poderia estar tão puto. O Abelha, no
caso, era ninguém menos que o delegado titular do DP; com efeito, o doutor
Osnir merecia triplamente o apelido porque: a) ou estava voando; b) ou fazendo
cêra; c) ou ferrando alguém. Do assunto ninguém sabia, mas da entubada ninguém
tinha dúvidas.
No
segundo andar encontrou o Moreira que lhe hipotecou solidariedade por meio de
gestos e olhares significativos; a mensagem tácita implicava que ele arranjaria
algum motivo para interromper a 'mijada' do superior hierárquico. Sentia aquele
peso quente e característico um palmo acima do umbigo; uma dor espalhada,
enjoativa, tão sua velha conhecida quanto a musiquinha do Fantástico — desde
que se entendia por gente, e isto remontava à primeira vez que menstruou, se
acostumara com algum grau de gastrite. Na sua escala de mal-estar a dor atingia
o embrulho, sem chegar ao grau do agulheiro interno, muito distante das
punhaladas no baixo ventre. Bateu na porta de leve, mas não esperou a resposta
para entrar.
—
O senhor me chamou...
—
Ah, apareceu a margarida! A senhorita é capaz de me explicar o monte de merda
que andou fazendo, hem?
—
Não estou entendendo, doutor, o que foi que...?
—
Não entendeu? Então tá, quem sabe eu fazendo um desenho, você entende... começa
me explicando pra que bosta foi chamar a Científica, que tal?
—
Bem, é que houve um atentado durante a diligência...
—
Um atentado?! Uma porra de um vaso caído, a policial está dizendo que é
atentado? Escuta, e quando for recebida a bala, vai chamar como? Guerra civil?
Puta que pariu, quanto mais rezo, mais me aparece assombração; você tá querendo
me foder?
—
Mas doutor...
—
Mas doutor é o caralho! Porra Franklin, te ponho numa fita molezinha e tu me
apronta?! Tu me trava o condomínio inteiro com a merda da perícia, é o cu da
cobra! E olha que avisei pra ir devagar com a louça... meu, tudo que não pode
fazer com rico é escândalo... Tá assistindo seriado americano demais, é?
—
Com todo respeito doutor Abe... Osnir, doutor Osnir... quando recebi a
incumbência achei que era frescura de bacano, mas agora acho que tem umas
coisas estranhas ocorrendo lá...
—
Mas que porra Franklin, quanto mais eu falo, menos você escuta! De onde você
acha que vieram os porcelanatos desta delega, o acabamento de grafiato, os
mármores dos toaletes, hem?, do bolso dos munícipes? Quem paga os luxos desta merda
de distrito são nababos como esses do Mares do Sul, captou? O que tu vai fazer
é arredondar essa ocorrência; vê se pesca essa, que eu vou te dar o bizu: rico
a gente investiga quando a imprensa tá em cima, e mesmo assim, só até um certo
ponto. Já pobre, só vira inquérito quando morre a granel!
—
Há indícios de chantagem... não posso fazer de conta que não vi...
—
Ah, vá pra puta que te pariu! — o Abelha agora gritava a plenos pulmões,
esmurrando a mesa feito um possesso. — Quero mais é que se foda, já não me
importo quem te pôs aqui dentro, nega, se tu remexer mais nessa bosta, vou te
pôr na patrulha da Paraisópolis, copiou? A gente dá uma boiada pros outro e dá
nisso... Olha aqui: você vai acreditar no que tá vendo, ou no que eu tô te
dizendo?
Naquele
momento irrompeu na sala a bendita figura do Moreira, trazendo providenciais
boas novas para acalmar o fígado do mandachuva.
—
Doutor, pegamos um dos malas que agiam no Brooklin, os do assalto a
residência... Tá lá na sala de "massagem", os rapazes tão dando uma
primeira amaciada, acho que ainda hoje canta...
—
Moreira, bom que você apareceu... faz o seguinte: me tira essa monga daqui
rapidinho, senão esqueço o QI dela e mando de volta pro buraco de onde veio...
De
todas as ofensas do Abelha esta foi a que calou mais fundo na investigadora,
embora nenhum dos dois homens presentes tivesse como saber. Moreira arrancou a
novata da sala antes que soltasse uma nova asneira e arrastou-a para o
cafezinho dar uma espairecida; inutilmente, Runa não aceitava nem café, nem
ombro amigo; pediu licença para dar uma volta. A gastrite pegando fogo, queria
chorar sozinha dentro do carro.
Voltou
uma hora depois, mais calma e disposta a conversar com o Moreira. Tinha uma ou
duas perguntas para lhe fazer agora que raciocinara um pouco melhor; como sempre
acontece nessas horas, deu de cara com quem menos queria encontrar.
—
Investigador Franklin e os...
—
Mega, hoje não é um bom dia, me gasta a paciência não, tá? Amanhã te passo a
porra da papelada! — saiu pisando duro na direção da sala de interrogatórios
"enérgicos", ou, como diriam os americanos, onde se praticavam
técnicas "heterodoxas" de entrevista policial.
O
malaquias estava pendurado no pau-de-arara com um cassetete enfiado no cu. Ela
conhecia aquele cheiro de outros carnavais: o odor almiscarado de bicho acuado;
vagabundo quando caía ali sabia que não tinha mais pra onde escapar, acabava
dando o serviço. Só tentavam não entregar a fita de cara pra não perder o
respeito dos canas — e também, se fosse o caso, dar tempo para os parceiros
acharem um mocó ou cair no mundão.
—
E então, esse zé-ruela tava ramelando na área? — dirigiu-se ao Moreira,
cumprimentando o outro policial presente com um aceno.
—
Dá pra acreditar? Tava de rolê num cabrito filmando a próxima casa que ia
fazer, o cabação! Agora precisa cantar pra nós o nome dos comparsas... tá me ouvindo
mané? Porque aqui nós tamo pegando levinho, só laceando tua rodilha, seu
escroto, tu vai ver o que vão te fazer lá na carceragem... tamo batendo sem
deixar marca, porque ainda vamos te apresentar pros jornalistas com a cara
inteira, mas lá no DEIC, já viu o que vai te acontecer...
—
Foi ele que estuprou?
—
Esperando o DNA. Mas, se liga no naipe... isso não é gente, é bicho solto...
Runa
se aproximou do suspeito e vomitou bem na cara do safado; uma 'borfada' com
gosto, classuda, daquelas sem medo de molhar a sandalinha. O carcará
sanguinolento gemeu uma latomia de queixas enquanto o líquido fedorento, bilioso,
de quem não tinha comido quase nada até o momento lhe escorria pelo rosto
abaixo — não se deu por satisfeita: catou um spray de pimenta e jateou-lhe a
fuça. A sala, convenientemente guarnecida de revestimento acústico, se encheu com
os gritos do prisioneiro. O ar ficou irrespirável, os policiais saíram.
2 comentários:
Que dureza!!!!
Por enquanto só está sobrando o Tunico.
Belo texto!
Adorei o sequestro do Tunico.
Voltarei mas vezes, para ler os teus textos.
Abraços literários.
Carlúcio Bicudo
http://didimogusmao.blogspot.com.br/
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