Moreira,
o chefe dos investigadores, tinha um quindim pela garota; não chegava ainda a
ser “peixinha” dele, era um bocado xucra e não levava suficientemente a sério o
papel da afeição nas promoções dentro da carreira policial. E dizer que nem
calça-branca ela podia ser considerada, até porque já ralara um mau pedaço em
delegacias da perifa brava; o problema é que achava que tinha ido parar ali, um
dos distritos mais cobiçados da cidade, por merecimento. Mérito?, tá bom! O que
será que os caras da academia andam pondo na cabeça desses moleques? Ele mesmo
já ganhara a vida nos departamentos que contam: saíra do DHPP para esperar uma
aposentadoria sem sustos num DP tranqüilinho e sem a emoção constante do
sobe-e-desce de delegados seccionais e gerais, ou das frituras dos secretários
de segurança. Agora, só precisava esperar o dia de pegar o seu boné; estava
bonito na foto: vinte e quatro anos de firma, separado, dois lava-rápidos e um
estacionamento, os filhos formados. Só esperar.
Queria
explicar para Runa que o titular não a estava humilhando ao mandá-la investigar
um caso de totó desaparecido em condomínio de luxo ― tratava-se do exato
oposto: um servicinho mamão-com-açúcar para ela fazer o seu cartaz com os ricaços,
tornar-se credora de favores para um pica-grossa dos grandes; bons contatos são
tudo, nesta como em outras profissões. Mas ainda não era a hora, certas lições,
como os melhores vinhos, também requerem seu tempo de amadurecimento. Por ora,
guardaria a viola no tonel de carvalho.
Ao
chegar de manhã, ela deu logo de cara com a tipa que mais a odiava
gratuitamente no distrito: a Mega, abreviatura de Mega-Sena, por causa do
tamanho e porque só acumulava. O apelido era escroto, mas a dona dele, idem
ibidem; escrivã, tinha passado pela mão de todo o DEIC até ser transferida para
o 96º, já com a carcaça bem gasta e a silhueta maciça rivalizando com as barcas
da ROTA. Somada à amargura com a função, vinha a frustração de mais ninguém
querer comê-la, nem sequer o Tabaréu, guerreiro do DP, que catava qualquer
dragão e botava o pau em tudo que fosse buraco. Um caso clássico da primordial
rivalidade feminina e antipatia natural à primeira vista.
―
Investigador Franklin ― tinha essa mania irritante de masculinizar a forma de
tratamento dela ―, ainda está nos devendo dois relatórios da...
―
Vão estar à tarde na sua mesa escrivã,
estou saindo para uma diligência agora.
―
Ora, ora, se não são as flores do DP reunidas neste corredor sórdido... as
senhoritas vêm sempre por aqui? ― Sandoval sempre dava um jeito de aparecer do
nada para lhe dar um beijo meloso de bom dia, deixando a mão boba escorregar
pela cintura de Runa após o tranco.
―
Tô saindo... mas não se preocupe, o plantão promete; diversão não está faltando
lá do lado de fora... ― aproveitou para pegar as chaves da viatura no quadro, a
Mega ia lhe fazer um corta-luz providencial. Saída pela direita.
―
Faz tempo que nós não tomamos uma cervejinha depois do serviço, hem,
Sandoval?... ― dito e feito, Mega se atracou com o galinha-mor como previsto.
Pelo menos ninguém podia dizer que ela não tentava.
―
Pois é, minha linda, aquele negócio ainda está de pé, só depende de uma posição
sua... ― lançou o gracejo de gosto e sentido duvidosos em voz alta para que a
outra o ouvisse enquanto se afastava.
―
Humpf, você só fala, agir que é bom...
Ajustou
a freqüência do rádio para se comunicar com o CEPOL, informou os dados de
abertura do talão daquela diligência, passou a quilometragem inicial do carro,
parou, hesitou alguns segundos, por fim mandou o motivo da saída da viatura:
rixa de vizinhos. Deu partida e saiu do estacionamento sentindo-se a última
bolacha podre do pacote. Isto é vida? Uma merda de ocorrência, bastava botar
uma dessas faixas: “Perdeu-se cãozinho, criança doente”, uma foto, um telefone
embaixo para contato, e pronto. Pensando bem, ainda faltaria a frasezinha
mágica: “Gratifica-se bem”. Sem falar as frescuras que o delegado titular lhe
repetira como se fosse uma criança; devia parar a viatura fora do condomínio,
não poderia mostrar a funcional e, muito menos, exibir a ‘peça’. Gente fina é
muito sensível.
Condomínio
Mares do Sul. Moderníssimo conceito de moradia, na verdade, um precursor paulistano
da tendência das classes altas a se isolarem em ilhas de tranqüilidade e
privilégio em meio à desagregação social das grandes aglomerações urbanas; seis
torres com quatrocentos e noventa apartamentos, uma população residente
estimada em mil e quinhentos moradores (sem contar empregados domésticos),
ocupando tinta e cinco mil metros quadrados ― um clube cercado de prédios. Nos
anos setenta do século passado, o Brooklin era tido como um bairro afastado na
capital; visionários, como o famoso empreiteiro Yojiro Takaoka, perceberam antes
a direção do êxodo dos abonados: fugir era a idéia. Fugir do centro, fugir do trânsito,
do stress, das filas para tudo, e assim proliferaram estas pequenas cidades
dentro da cidade: bosques, parques, cabeleireiro, cinema, teatro, academia de
ginástica, restaurante, lavanderia, locadora, caixa eletrônico de banco e até
uma escola de educação infantil. Segurança, conforto, lazer e exclusividade.
Depois
de um chá sem cadeira na portaria, onde só faltou lhe tirarem as digitais e
pedirem o exame de fezes, Runa finalmente teve acesso à infeliz que perdera o
Tunico, um cãozinho fofo da raça Yorkshire, de personalidade forte e que
adorava um colo e um carinho. Aproximadamente cinco quilos, pêlo longo de cor
caramelo nas patas e rostinho, mais escuro no lombo, Tunico estava sumido há
quatro dias; mas, atenção!, não se perdera, fora seqüestrado dentro do
condomínio. Entre acessos de choro convulsivo a dona ia mostrando uma
infinidade de fotos do pobre resort de pulgas; soluçando, repetia que não podia nem imaginar
gente capaz dessa barbárie.
A
policial se endireitou no confortável sofá de couro náutico, passeou o olhar
pelas amplas janelas do apartamento dúplex da cobertura; a senhora Zélia vinha
a ser simplesmente a esposa do síndico, um fodão dono de construtora que, a
julgar pelos porta-retratos, podia ser avô dela. Considerou-a atentamente, mais
parecia uma personificação da Barbie: loira, alta, nariz arrebitado, carnes
firmes a preencher voluptuosamente as roupas de ginástica ― curtida na polaina
e na drenagem linfática, só assim pra ser gostosa daquele jeito! A moça
causava-lhe tamanha impressão que Runa quase duvidava da sua heterossexualidade;
demorou segundos constrangedores para entender que a outra insistia que
descessem.
―
Vou lhe mostrar o lugar onde o Tunico estava quando sumiu... é um cercadinho
onde os pets do condomínio brincam, tipo um playground deles...
“Playground
de pets, que porra de mundo é este?”, pensava a aturdida investigadora. Atravessaram
uma alameda sombreada por luxuriantes ipês-rosa, o chão era de pedrisco branco
misturado a flores caídas e cascas de pinus; contornaram à direita, próximo da
esquina de uma das torres. O cercadinho estava vazio naquele horário, exceto
por um ou dois cachorrinhos vigiados ao longe por empregadas de uniforme. Após
examinar o local, retornaram pelo mesmo caminho. Um estrondo forte bem atrás
delas. Viraram-se assustadas, um vaso grande se espatifara no lugar onde
estavam poucos segundos antes.
Um comentário:
ao que parece a situação não é tão simples...vai precisar mais do que 3 capítulos, e estou curiosa portanto não demore...rs
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