―
Hum, acho que o senhor gostaria de falar comigo... ― o homem nem esperou a resposta,
levantou-se da mesa carregando uma incrível quantidade de embrulhos, pacotes, papeluchos,
envelopes e sacolas, e sentou-se ao lado de Cyonil no balcão.
― Como?! Mas
rapaz, se eu nem conheço você... ― só lhe faltava essa; fim de um dia
cansativo, tinha parado pra tomar um rabo-de-galo antes de recolher a casa. E nem
era o boteco onde fazia sua paradinha habitual.
― Desculpe.
Você não me conhece, claro, mas insisto: precisamos conversar... ― o
desconhecido esticou o braço, largando um cartão encardido ao lado do copo dele.
― Escuta, tive
um dia cheio, fudido, você não vai me levar a mal, mas tô querendo ficar aqui
no meu canto, sem incomodar nem ser incomodado ― Cyonil sequer dignou-se a
conferir o cartão, voltou o rosto pra a frente contemplando as prateleiras
repletas de garrafas.
― Bem, na
verdade é coisa do seu interesse... humm, entenda, não posso ficar com o que
não é meu...
― Ah, sei,
então você tem aí algo para mim; deixa eu adivinhar: é um negócio imperdível
que só aparece uma vez na vida... acertei? ― deu uma boa golada, girou o corpo
sobre o banco para fitar o desconhecido com uma careta de mofa.
― Acertou. É
um negócio; você recebeu o que pediu, agora precisa pagar...
― Ih, moço,
você está começando mal... quando é assim, você tem que prometer ganhos
excepcionais e fáceis, não pode chegar falando em dívida logo de cara. A não
ser que seja um lance de religião...
― É fato que
algumas pessoas levam muito o meu trabalho pra esse lado da fé, das crenças; há
muita incompreensão... na verdade é bem mais simples, uma questão de equilíbrio
nas contas...
― Olha cara,
tive meus perhaps, suei paca pra
limpar meu nome no Serasa, SPC e o carai; mas isso já passou. Muda o disco, tô
devendo nada não ― Cyonil examinou o sujeito: vestia uma calça de tergal puída
cor-de-burro-quando-foge, tênis pretos gastos, a camisa clara ostentava uma
orla de surro na parte interna do colarinho e rodelas amareladas nas axilas; a
pele, de tom ferruginoso, apresentava alguns pontos de vitiligo, devia estar
umas boas arrobas acima do peso ideal, os olhos, aureolados pelo círculo branco
da catarata, pareciam saltar das órbitas; tinha a calva do palhaço, com os
cabelos laterais muito compridos e desgrenhados espalhando-se em todas as
direções. Os pés dele pareciam pequenos demais, mesmo para a baixa estatura, e
tinham as pontas estranhamente arrebitadas para cima; mas o que mais o irritava
era o jeito alusivo e reticente de falar, a insinuação implícita de que algo
ruim poderia lhe ocorrer se não desse ouvidos àquela lenga-lenga manhosa.
― Bom, se é
assim, vou deixá-lo em paz ― levantou-se e começou a arrebanhar seus embrulhos
― mas, em todo caso, isto aqui lhe pertence, não sou de ficar com o que não é
meu... ― dito isto, jogou um objeto no balcão e se encaminhou para a mesa.
― Que, que... porra
de brincadeira é esta? ― Cyonil sobressaltou-se, sobre a mesa se encontrava uma
cigarreira javanesa de madrepérola com granadas incrustadas. Largou seu lugar
no balcão e foi na direção da mesa onde o homenzinho tornara a se instalar. ―
Faça o favor de me explicar, como é que isto foi parar nas suas mãos?
― Já lhe
disse, o senhor precisa falar
comigo... me dar um pouco de atenção...
― Vamos acabar
logo com esta palhaçada, como é que...?
― Entenda, meu
caro, estou aqui porque faz parte da minha profissão... não tenho a sua sorte,
nunca me foi dado escolher a forma de ganhar a vida, por exemplo, gosto muito
do seu ganha-pão: instala TV a cabo, entra na casa das pessoas... ― o
desconhecido bebericava um copo de cerveja dando mostras de experimentar um
grande prazer.
― Ah, que
piada, agora tá brincando de adivinhar... Na certa me viu estacionando o carro
lá fora ― voltou ao balcão para, finalmente, pegar o cartão do cara.
Inutilmente, já que as letras do impresso estavam quase apagadas e eram
miudinhas demais para ler na luz do bar.
― Tá aí, digo,
a minha ocupação atual...
― Não dá pra
ler nada. Que é que você faz afinal? ― Cyonil reparou que a cigarreira estava
em cima da mesa de fórmica, a meio caminho entre ele e o outro.
― Trabalho num
departamento de cobranças, sou cobrador.
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