quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

o cobrador de promessas (parte 1)



            ― Hum, acho que o senhor gostaria de falar comigo... ― o homem nem esperou a resposta, levantou-se da mesa carregando uma incrível quantidade de embrulhos, pacotes, papeluchos, envelopes e sacolas, e sentou-se ao lado de Cyonil no balcão.
― Como?! Mas rapaz, se eu nem conheço você... ― só lhe faltava essa; fim de um dia cansativo, tinha parado pra tomar um rabo-de-galo antes de recolher a casa. E nem era o boteco onde fazia sua paradinha habitual.
― Desculpe. Você não me conhece, claro, mas insisto: precisamos conversar... ― o desconhecido esticou o braço, largando um cartão encardido ao lado do copo dele.
― Escuta, tive um dia cheio, fudido, você não vai me levar a mal, mas tô querendo ficar aqui no meu canto, sem incomodar nem ser incomodado ― Cyonil sequer dignou-se a conferir o cartão, voltou o rosto pra a frente contemplando as prateleiras repletas de garrafas.
― Bem, na verdade é coisa do seu interesse... humm, entenda, não posso ficar com o que não é meu...
― Ah, sei, então você tem aí algo para mim; deixa eu adivinhar: é um negócio imperdível que só aparece uma vez na vida... acertei? ― deu uma boa golada, girou o corpo sobre o banco para fitar o desconhecido com uma careta de mofa.
― Acertou. É um negócio; você recebeu o que pediu, agora precisa pagar...
― Ih, moço, você está começando mal... quando é assim, você tem que prometer ganhos excepcionais e fáceis, não pode chegar falando em dívida logo de cara. A não ser que seja um lance de religião...
― É fato que algumas pessoas levam muito o meu trabalho pra esse lado da fé, das crenças; há muita incompreensão... na verdade é bem mais simples, uma questão de equilíbrio nas contas...
― Olha cara, tive meus perhaps, suei paca pra limpar meu nome no Serasa, SPC e o carai; mas isso já passou. Muda o disco, tô devendo nada não ― Cyonil examinou o sujeito: vestia uma calça de tergal puída cor-de-burro-quando-foge, tênis pretos gastos, a camisa clara ostentava uma orla de surro na parte interna do colarinho e rodelas amareladas nas axilas; a pele, de tom ferruginoso, apresentava alguns pontos de vitiligo, devia estar umas boas arrobas acima do peso ideal, os olhos, aureolados pelo círculo branco da catarata, pareciam saltar das órbitas; tinha a calva do palhaço, com os cabelos laterais muito compridos e desgrenhados espalhando-se em todas as direções. Os pés dele pareciam pequenos demais, mesmo para a baixa estatura, e tinham as pontas estranhamente arrebitadas para cima; mas o que mais o irritava era o jeito alusivo e reticente de falar, a insinuação implícita de que algo ruim poderia lhe ocorrer se não desse ouvidos àquela lenga-lenga manhosa.
― Bom, se é assim, vou deixá-lo em paz ― levantou-se e começou a arrebanhar seus embrulhos ― mas, em todo caso, isto aqui lhe pertence, não sou de ficar com o que não é meu... ― dito isto, jogou um objeto no balcão e se encaminhou para a mesa.
― Que, que... porra de brincadeira é esta? ― Cyonil sobressaltou-se, sobre a mesa se encontrava uma cigarreira javanesa de madrepérola com granadas incrustadas. Largou seu lugar no balcão e foi na direção da mesa onde o homenzinho tornara a se instalar. ― Faça o favor de me explicar, como é que isto foi parar nas suas mãos?
― Já lhe disse, o senhor precisa falar comigo... me dar um pouco de atenção...
― Vamos acabar logo com esta palhaçada, como é que...?
― Entenda, meu caro, estou aqui porque faz parte da minha profissão... não tenho a sua sorte, nunca me foi dado escolher a forma de ganhar a vida, por exemplo, gosto muito do seu ganha-pão: instala TV a cabo, entra na casa das pessoas... ― o desconhecido bebericava um copo de cerveja dando mostras de experimentar um grande prazer.
― Ah, que piada, agora tá brincando de adivinhar... Na certa me viu estacionando o carro lá fora ― voltou ao balcão para, finalmente, pegar o cartão do cara. Inutilmente, já que as letras do impresso estavam quase apagadas e eram miudinhas demais para ler na luz do bar.
― Tá aí, digo, a minha ocupação atual...
― Não dá pra ler nada. Que é que você faz afinal? ― Cyonil reparou que a cigarreira estava em cima da mesa de fórmica, a meio caminho entre ele e o outro.
― Trabalho num departamento de cobranças, sou cobrador.

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