O
professor Mortimer e o capitão Blake, da Scotland Yard, tinham ido passar
algumas semanas na encantadora Ilha de São Miguel, a Ilha Verde dos Açores; uma
tradição muito antiga considera-a como um dos cumes submersos de Atlântida,
misterioso continente desaparecido de que fala o grande filósofo Platão; o professor
e o capitão, que não tira o cachimbo da boca nem para ir à casa de banho, vivem
à procura do imprevisto e de novas aventuras, por isto logo se metem a explorar
as gargantas e desfiladeiros selvagens das proximidades do vale vulcânico das
Furnas, dando com a entrada de uma profunda caverna na região conhecida como
Forno do Diabo; assim começava o enredo do “Enigma da Atlântida” de Edgar P.
Jacobs, história aos quadradinhos que tinha na capa um enxame de naves
parecidas a mosquitos encarnados a fugir da Terra; assim me sentia eu, um
fugitivo do planeta azul, um náufrago à deriva no Atlântico, assim passei a
viver pelo resto da vida: sempre em fuga, sempre pronto a abandonar tudo e
todos a qualquer hora e seguir adiante; uma vez perdido “o” lar, percebe-se que
sobre a terra não existe lar, apenas hospedagem; sem pouso, nem repouso, só
estadia.
Pousamos
em Portugal, aliás, no Porto; “segue sempre por bom caminho”, como dizia o
Aniki Bóbó.
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais
ordena
Dentro de ti, ó cidade
A
mui nobre, leal e invicta cidade do Porto; aqui moram tios, primos, amigos,
parentes e a Avó paterna; o Menino se lembra de quando a mamã do Pai veio
visitá-los em Angola e foi-lhe servido mamão: “se não precisei até hoje da papaia,
não há de ser agora que a hei de experimentar”; chamam a Avó de
mulher-de-armas, pois criou quatro filhos sozinha na dureza do pós-guerra
depois de perder o marido para a tísica (e também, dizem, para a boêmia), ela é
a senhora Directora de uma escola para meninas que abriu naquele ano para os rapazes;
como o ano lectivo ainda não terminara, teria de cumprir um mês e meio antes
das férias; no intervalo grande do colégio, enquanto abro a merenda, olho em
volta e não vejo mais do que três gajos em todo o pátio ― jogar bola está
descartado, paciência, vamos pular corda e brincar ao passa-anel pela primeira
vez na vida; durante as aulas, o Menino acumula bilhetes sem assinatura
contendo declarações das rapariguitas ― fartura inédita, nunca antes, nunca
depois.
―
Quero, posso e mando! ― o lema da Avó é conciso em cada palavra, verdadeiro em todas
as sílabas, adamantino letra a letra; teria existido alguém capaz de a ter feito
realmente abaixar a grimpa?, se
calhar, nem o Marcelo Caetano, nem o próprio Salazar.
Este
último era um nome que carregava medo e fascínio e raiva e saudade; apenas um
nome, mas que nunca saltava sem adjetivos da boca dos adultos: “o fascista do
Salazar”, “assassino do Humberto Delgado”, ou, “respeito havia nos tempos do
Salazar, não era esta pouca-vergonha”; com efeito, a metrópole mudara muito, os
ventos sopravam uma brisa irresponsável, os barómetros de casinha (moça, bom
tempo; rapaz, mau tempo) registavam o ar menos opresso, as passeatas a se formar
espontaneamente nas esquinas, as tertúlias a brotar como cogumelos nas tascas,
as cantorias, as minissaias, as bolsas de ráfia, as calças de ganga apertadas
nos tomates, os saltos plataforma ― o Porto, cidade murada de ruas apertadas,
de casas espremidas, de prédios unidos à ilharga e passeios estreitos, a foz bravia
dos heróis do mar, capital primeira a que os mouros nunca deitaram a unha, tudo
como que se tinha banhado de um colorido feérico e musical; aspirávamos
inebriados o perfume efémero da liberdade, pois que ainda era tempo de cravos
(“rosas em janeiro, minha rainha?”).
Em cada esquina um
amigo
Em cada rosto
igualdade
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
Os
meninos, porém, vão ficar com a família da Mãe no norte, lá na aldeia; toca a
andar para Trás-os-Montes, Serra do Marão acima, e para cá do Marão, já diz o
adágio, mandam os que cá estão; cá neva, mas não se esquia; cá também se fala
muito de política e de muitas siglas, mas estas não parecem tão ameaçadoras
como as que se ouvia em Luanda: MFA, PPD, CDS, PS, PCP, era o berda-merdas do
Bochechas pra cá, o filho-da-côrta do Cunhal pra lá; tudo que consegui saber ao
certo é que o Álvaro Cunhal tinha metido nos chavelhos de nos vender a Moscovo
(e, Deus seja louvado, não conseguiu), quanto ao Bochechas, consta que nunca
tomou a sopinha que a mamã dele tanto pedia; parecia-me ter atravessado o
espelho da Alice: a metrópole era pequenina, a colónia (província ultramarina,
dizia o outro), grande; Portugal era alegre e festivo, de Angola, só chegavam as
notícias tristes dos combates; lá, havia uma guerra por procuração (americanos
e sul-africanos do FNLA e da UNITA, contra russos e cubanos do MPLA), enquanto aqui,
quase se podia apalpar a esperança; cá, construía-se uma democracia, lá, meus
pais, numa cidade sitiada.
Um comentário:
Tem vezes que até da gente mesmo a gente se perde.
a vida é impermanência...
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