Estão
todos na sala, calados e constrangidos, não sabem o que dizer, não olham uns para
os outros; claro, os Pais negam, mas os miúdos e a criadita já compreenderam
que é a última vez que estarão ali, naquela mesa, naquela casa, naquele país
que um dia pensaram que podia ser deles; e quem tinha razão era o catraio mais
novo, que andava sempre a dizer que íamos todos para a Catralhamba; a Mãe fez
uma aletria desastrada que insiste para que comam antes de ir para o aeroporto,
a canela mal espalhada, os cabelos de anjo meio esfiapados demais, o leite talvez
estragado demais, é a cacimba a dar cabo de tudo, ou talvez a guerra, que faz
tudo sair do costume, que fecha o Park Miramar para o brinquedo e faz o pão
chegar atrasado e as más notícias antes; e vai levando os vizinhos, os amigos,
os professores, como levou a cabeleireira, o sapateiro e os colegas da escola,
e faz aumentar os musseques, e traz a música monótona dos morteiros e dos tiros
ao longe; o Menino nunca mais vai voltar a comer, sequer a ver, aletria sem nausear,
a muitas tias vai fazer desfeita, em muitas casas fará cerimónia, porque já na
massa doce do trigo ficou misturado o gosto azedo e distraído daquilo que não
se compreende, apenas se vive.
―
Olhem que perto do que está por vir, os massacres da UPA em sessenta e um vão
parecer uma festa saloia... O Almirante Vermelho, este comuna de merda do Rosa
Coutinho, vai levar isto aqui, conosco na boleia, à breca! ― o Doutor Cardoso
não cansou de o alertar, mas o Pai tinha a cabeça dura das pacaças; achava-se
mais esperto e bonito e abençoado do que os outros e custou a acreditar que o
pior também acontece de vez em quando.
―
As notícias não são boas nem de um lado, nem do outro: lá na metrópole, são
maluqueiras atrás das outras desde o Vinte e Cinco de Abril, e cá... candengues
ainda, já matam e esfolam, cortam mãos e orelhas à catanada por uma galinha;
não digo nada se não voltarem ao canibalismo... ― a Dona Judite, esposa do Dr.
Cardoso, tem muita paciência com as esquisitices da Mãe, ela, que ficou tão
nervosa depois que o mais novo operou a vista na África do Sul; a Mãe é muito
atirada, atravessa as falas dos outros, sai-se com assuntos pouco a propósito
nas conversas, vive como se andasse no chão de gelatina da lua, onde os
americanos espetaram uma bandeira antes dos russos; gasta a vida em infindáveis
reuniões de entusiastas da TupperWare,
um mundo de plásticos coloridos e felizes, um mundo de modistas da Prenda que
copiavam os modelos das Burdas que havia em todas as casas, em que se ia ver as
montras da casa Sarita; um mundo em que as mulheres fumavam e enchiam o cabelo
de laca e punham lenço para andar de lambreta e usavam vestidos de estampas
psicodélicas: O-bla-di-o-bla-dá...
O
Menino só sossegou depois de ver todos os livros que queria levar dentro da
mala: os Tintins, os Astérix, os clássicos da Disney, as aventuras de Blake &
Mortimer, a Série dos Cinco, Philemon, o náufrago do T; este era mesmo
porreiro, a história de um rapaz que o barco afundava e ele ia parar no T do
Oceano Atlântico... tínhamos sido despejados de uma existência pacífica para a condição
de náufragos em poucos meses desde a Revolução dos Cravos; as conversas dos
adultos, que o Menino escuta do alto da escada pretextando sonambulismo, deixaram
de comentar os filmes de cowboiada do Trinitá, ou baixar o tom ao falar das
marmeladas que fazia a Emanuelle no avião, ou das alhadas do Cantinflas, e de repente
se enchem de palavras e siglas enigmáticas: Junta de Salvação Nacional, MRPP,
MPLA, FNLA, UNITA, Jonas Savimbi, General Spínola, Holden Roberto, Agostinho
Neto; em algumas das janelas do bairro começam a aparecer as bandeiras do Galo
Negro: kwacha UNITA, kwacha Savimbi, talvez os pretos
financiados por Pretória não nos deitassem ao mar.
A
rádio agora dava as listas dos desaparecidos antes da Simplesmente Maria, as
aulas foram interrompidas após uma rajada de Kalashnikov destelhar a escola, a
cabeça de um branco espetada num pau foi encontrada à beira da avenida lá para
o lado dos Combatentes; o mundo voltava a ser em preto e branco depois de já ter
sido a cores no cinema e nas fotografias, que televisão não tínhamos; o que havia
era o Miramar, cinema ao ar livre com vista para o mar (já diz o nome), logo ao
fim da nossa rua, a Alameda do Príncipe Real, número 14; da varanda da casa, a
Criada ensinava ao Menino as cores das pessoas: aquela acolá é uma senhora
(podia ser preta ou branca), lá vem um senhor (é branco), aquele lá, a descer
do machimbombo, é um preto da tugi; e não se lhe metia na chipala que também ela
podia ser uma pretinha do Quitexe, que nunca teve pai conhecido e que a mãe
entregou para que pudesse ter comida e educação com os brancos da capital; mas
agora, com a famelga massacrada pelos terroristas, também ela teria de fugir
para o mundo, náufraga como nós; tínhamos ido todos para a Catralhamba, o puto
estava certo.
4 comentários:
Caro filipe com i,
Memórias de Menino...
abs
Pois é caríssimo, não perdes por esperar, hás de cá aparecer - e como! Aliás, pedirei licença para te roubar uma foto q usarei na parte 3.
Muitas crianças tem o azar e a injustiça de viver aquilo que só deveria habitar nossos pesadelos.
Tenho algumas dúvidas, companheira: creio que toda infância é um pesadelo e um paraíso em algum sentido - o que há é o acaso, esse deus cruel que distribui tão desigualmente as sortes.
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