sábado, 14 de julho de 2012

A mulher de algodão (parte 1)




            Seguindo religiosamente a ordem das senhas retiradas horas antes, as pessoas se levantam dos bancos de madeira pintada de verde em silêncio e se aproximam do altar. Ninguém conseguiu até hoje explicar o mistério das “materializações” que estão prestes a acontecer diante de todos. A pequena multidão de oitenta consulentes vai se aglomerando num círculo irregular a meio metro do patamar de alvenaria onde fica o altar inusual: um tanque raso, uma cadeira de tira de plástico e uma mesinha com as imagens de Santo Antônio de Pádua, Nossa Senhora do Rosário, Iemanjá e Arádia, alta sacerdotisa da Antiga Religião.
            Carregam na mão, uma, duas, até quinze sacolas de plástico ― dessas há pouco banidas dos supermercados ―, que levarão para casa as materializações; no momento, porém, as sacolinhas contêm apenas algodão em rama e custaram dez reais cada no caixa da Casa Luz da Aurora. Após nova chamada, os romeiros sobem um a um o patamar e acercam-se do tanque de noventa centímetros de diâmetro para desfiar o algodão sobre a água; a superfície fica parecendo um lago juncado de improváveis icebergs, graças à grelha de arame acoplada na borda que mantém os chumaços à tona. O filho mais velho da médium (ela tem dez, seis de sangue e quatro adotivos) rega o algodão com água de mangueira e álcool benzido.
            O sol do começo da tarde derrama sua luz cálida através da porta por onde todos hão de sair, carregando nos braços as suas desgraças; por enquanto, no salão de paredes cobertas de frases motivacionais os presentes estão hipnotizados por aquela mulher de longos cabelos liso-acinzentados totalmente vestida de branco. É segunda feira, o dia consagrado aos que sofrem de problemas familiares, Eldenezir Munhoz dirige algumas palavras de boas vindas ao público, emenda um pai-nosso numa salve-rainha e entra em transe profundo. No momento em que mergulha os braços na maçaroca branca, um frêmito sacode a platéia; o murmúrio se eleva, ressoando no teto de telhas de amianto.
            No rosto da vidente transparece uma mescla de compenetração e cansaço, afinal, este é o seu trabalho há mais de cinco décadas. Eldenezir, conhecida como a “benzedeira do algodão”, a “médium do algodão”, faz surgir do tanquinho circular uma cornucópia de objetos que dão forma aos maus pensamentos, energias ruins e magia negra que todos acumularam ao longo da vida. Ela crava as mãos na pasta que se adensa, molha-se, macula as vestes alvas diante dos olhos atônitos dos espectadores; vai puxando de lá ossos de animais, cacos de vidro, fivelas, bricabraques, panelas, velas coloridas, frascos de perfume, peças íntimas, sapatos, bonecos de cera de pombas-gira, caveiras e exus de todas as estirpes.
            As mãos vão e vêm, ela faz força; como um escultor que enfrentasse gigantesco bloco de pedra, os braços parecem lutar para desentranhar a forma do informe, a matéria dura das felpas pardas. Em menos de meia hora retira dali mais de cem objetos: uma seleção bizarra que resume as dores, as perdas, as separações, as traíragens e as angústias que rapinam a alma dos sofredores. O descosido exército de trastes vai sendo jogado displicentemente por Eldenezir sobre folhas de jornal dispostas na mesa do altar; um outro ajudante-filho as embrulha e acondiciona para a viagem de volta. Com a sacola cheia de suas maldições, o consulente se retira pela porta lateral ― a mesma por onde entra o sol, que agora já arrefece seus raios.
            Irma aguarda receosa a sua vez; agora que está quase chegando o número da senha que tem na mão, hesita. Sente vontade de sair correndo dali, que se dane, já não lhe importa desperdiçar a longa viagem de ônibus desde Santos até Votuporanga, não quer mais saber; quer as respostas menos do que teme obtê-las. Procura distrair-se ouvindo a conversa  de um casal que conheceu na fila.
            ― Senti alívio na hora, é impressionante! Foi como se tirasse um peso de dentro ― ele carrega um osso enorme, talvez de boi, o que significa dificuldades em tudo que realiza.
            ― A gente só leva toba no dia a dia, tudo quase parando, problema financeiro. Aqui a gente ganha um encorajamento, e tem já que vai dar certo, vencer ― a mulher recebeu uma corrente, sinal de que a vida está amarrada.
            Irma se recolhe dentro de si, e é então que nasce a sua materialização. Enquanto desfiava as ramas sobre o tanque, evocara antigas sensações: o frio nevoso da serra, a sombra voadora dos pássaros, os perfumes do mato dormindo, que se juntam na brisa por um breve instante e pousam na água. Cada fibra do algodão se desprendia das suas mãos fazendo vibrar as outras coisas à sua volta, como partículas densas, tensas, expectantes, acostumadas a viver sem nós, contra a nossa ignorância sobre aquilo de que somos feitos.
            O veredicto da médium é de que deve ficar para uma consulta individual no dia seguinte. Vai lhe custar mais cento e vinte pilas, fora a hospedagem numa pensão. Eldenezir fez questão de não esconder a preocupação com o que saiu para Irma.
           
            

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