quarta-feira, 23 de março de 2011

Dasdoidando - parte 2


Por exemplo: para se realizar a estamparia de uma camiseta é necessário utilizar uma tinta específica (própria de silk screen) e aplicá-la sobre a tela para que, desse modo, o desenho-arte possa ser marcado na peça – essa é a prescrição do trabalho. Em diversas ocasiões, o participante que se responsabilizava pela silkagem acabava não preenchendo com tinta o desenho-arte em sua totalidade, o que gerava “falhas” na estampa. Essas supostas “falhas” não eram vistas como um erro executado pelo aplicador, mas como marcas de autenticidade, desse mesmo aplicador, na roupa que acabou de ser estampada. Esse exemplo se refere ao modo como esse mesmo trabalho se desenrola nas atividades, o que vai se constituir, ao meu ver, no objetivo principal das atividades: a produção de subjetividade. A maneira como cada um executa o trabalho revelará, simultaneamente, os desvios que são próprios da singularidade emergente. Privilegia-se, então, a produção de objetos despadronizados, em que o desvio não se consolida enquanto erro, mas como marca autêntica. Ou seja, esse eixo organizador – essa composição hierárquica dos procedimentos – deixa transbordar, constantemente, aquilo que surge do plano criativo da vida. Não há possibilidade de reprodução idêntica de um protocolo predeterminado, pois a loucura (desinstitucionalizada) manifesta-se de modo imprevisível.
Observa-se, dessa maneira, que as atividades da oficina se relacionam não somente pelos aspectos intrínsecos à produção em moda (planejamento, confecção do produto, vendagem, desfile etc.), mas por sua proposta de ampliação de sentidos de vida. Nesse sentido, a moda se constitui como um operador clínico-institucional que possibilita agregar diferentes modos de expressão, permitindo, assim, a realização de diversas experimentações.
Outro exemplo: um dos participantes tem um grande interesse pela cultura gótica. A partir disso, foi produzida uma personagem: a psigótica (a personagem Hello Kitty marcada por características góticas). A psigótica tomou corpo a partir do investimento coletivo na idéia, expressando-se através de desenhos, estampas, marcando roupas e sujeitos. O participante que desencadeou esse movimento, posteriormente, organizou uma vernissage com produções artísticas manifestas na forma de poesia, pintura e música. Isso só para ilustrar um agenciamento possível.
A partir desse exemplo citado, podemos perceber que ocorre, na Dasdoida, uma reapropriação da máquina-moda. A moda é subvertida! Não se encontra totalmente a serviço do CMI (Capitalismo Mundialmente Integrado), capturando subjetividades e produzindo modos de ser homogeneizados e homogeneizantes, em consonância com a identidade-modelo vigente. A moda operada no e pelo CMI, decodifica e recodifica as criações espontâneas, para armazená-las em seu banco de dados e introduzi-las, forçosamente, na industria cultural através dos mais vastos recursos midiáticos de que dispomos. Na Dasdoida atua-se com a desinstitucionalização da moda, produzindo, assim, não uma, mas mil modas, pois não está em jogo a vida produzida, mas a produção de vida.
Pode-se dizer que, a partir dessa concepção desinstitucionalizada da moda, está em jogo, também, um outro modo de se pensar a reabilitação psicossocial, porque a sociedade que se tem de fundo, na perspectiva que se efetua na Dasdoida, não é aquela que tolera a diferença e a inclui em seu modo de funcionamento normatizante e normatizado, mas aquela que privilegia a produção constante de diferenças no corpo social em detrimento da monotonia da repetição, das cópias idênticas. A utopia é outra!

As especificidades do trabalho e da geração de renda na Dasdoida

A Oficina experimental de moda Dasdoida era de caráter aberto, como já foi dito, o que permitia a entrada não somente de usuários do CAPS Itapeva, mas também de outras pessoas, possibilitando, dessa forma, a co-existência de objetivos e sentidos variados para a oficina.
Para alguns usuários do CAPS, por exemplo, a Dasdoida era concebida como uma oferta de geração de renda. O funcionamento da oficina, pensada dentro dessa categoria (geração de renda), estaria destinada, única e exclusivamente, à produção de renda para os seus participantes, com o intuito de incluí-los, não explorando seu trabalho, no sistema produtivo do CMI. Pois bem, possuir renda, sem dúvida, permite aos usuários obter uma maneira de realizar trocas sociais e isso, por si só, já se constitui como uma forma de inclusão. Apesar disso, a proposta da Dasdoida não se restringe à inserção de seus participantes na maquinaria capitalista, pois ela investe no trabalho de construir redes de trocas alternativas (almeja-se serem substitutivas), que não visam exclusivamente o lucro, mas a valorização de modos de expressão singulares. A Dasdoida busca, incessantemente, construir economias alternativas àquelas instituídas, isto é, capturadas pelo CMI. De acordo com uma das técnicas “a psicose, por si só, já dá muito trabalho”, por esse motivo é preciso pensar na relação dos usuários com o trabalho com cuidado, devendo estar sendo constantemente acompanhada.
As parcerias que a Dasdoida já realizou ilustram bem esse modo da oficina produzir economias. Os contatos extra-institucionais se davam a partir da convergência de interesses singulares, que se condensavam em algo que poderia ser criado (uma produção de camisetas, um desfile, uma entrevista, uma notícia etc.), não visando, necessariamente, a produção de riquezas para as partes envolvidas. Nesse sentido, o dinheiro que ficava destinado à oficina era investido na própria Dasdoida e servia para consolidar as trocas entre os parceiros, não servindo de pagamento direto aos usuários, já que não havia sobras significativas. Os usuários, engajados nessas organizações espontâneas com outros parceiros, acabavam recebendo as camisetas produzidas como forma de pagamento por sua participação.
Segundo as técnicas responsáveis, a Dasdoida se qualifica enquanto um projeto de “imaginação de renda” e não de geração. A partir da recolocação dessa questão da renda, a proposta da oficina não se limitaria à geração de renda para o usuário freqüentador, mas, na verdade, se constitui como uma forma de, juntamente com o usuário interessado, elaborar/pensar/imaginar maneiras de produzir dinheiro que façam sentido para eles, ou seja, a Dasdoida sustenta projetos singulares de imaginação, para uma posterior geração, de renda. Ou seja, a oficina abre outras portas para aqueles que necessitam obter mais renda, dando apoio para investimentos próprios, pessoais, fora do projeto.
Uma das usuárias, por exemplo, nas atividades de esquizitização, mostrou ter um grande conhecimento sobre trabalhar com tecidos. Uma de suas produções que mais se destacou foi a confecção de colares feitos com retalhos de tecidos. Tão logo houve esse reconhecimento de seu trabalho, a usuária demonstrou interesse em comercializar seus artigos produzidos. Juntamente com os outros membros que compõem a Dasdoida, foram pensadas estratégias que viabilizassem essa vontade e necessidade da usuária. Como resultado, a usuária conseguiu inserir-se em feiras artesanais de diversas localidades, assim como pode comercializar seus produtos em espaços voltados para a economia solidária e a saúde mental[1].
É possível constatar que, a partir desse modo de funcionamento, a Dasdoida consegue agregar aspectos referentes ao modelo de organização de uma oficina terapêutica e de uma oficina de geração de renda. A oficina experimental de moda, como havíamos visto, se propõem a ser um espaço facilitador de produção de subjetividade e, assim como acabamos de ver, um lugar para se projetar maneiras de se obter renda. Dessa maneira, podemos pensar que a Dasdoida manifesta um outro arranjo possível para se trabalhar na reabilitação psicossocial dos usuários da Saúde Mental. Vislumbra-se, aqui, um novo dispositivo clínico-institucional. Inclusive, no início de 2010, a Dasdoida estabeleceu uma parceria, com os alunos da Faculdade de Psicologia da Universidade Federal de Assis, com o intuito de proporcionar um certo tipo de incubação de oficinas experimentais de moda para a Saúde Mental.
Vamos voltar, agora, a esmiuçar um pouco mais a questão da renda. Os projetos de geração trabalham na confecção de produtos, que entram em certos circuitos econômicos, que a partir de suas exigências mercadológicas, muitas vezes, acabam determinando a “cara”, a forma final do produto. Vemos, dessa maneira, uma inserção clara na lógica do mercado, que pode operar, dentro dos projetos de geração de renda da Saúde Mental, como um fator que serializa a produção, contendo, desse modo, os desvios. Apesar de não estarmos lidando com produtos industrializados, mas com produtos artesanais, a produção acaba sendo comprometida por um modo de se executar o trabalho que visa o mercado e não os sujeitos envolvidos no processo, padronizando, dessa forma, a própria produção artesanal. Muitas vezes, em projetos de geração de renda, pode-se observar que o próprio técnico ou oficineiro, responsável pelas atividades, privilegia uma mera imitação do modelo prescrito, fazendo com que o desvio se constitua como erro ao padrão.
Com o intuito de combater essa padronização patológica do trabalho, a Dasdoida, em sua produção, coloca-se como um espaço aberto a todo e qualquer tipo de suposto erro. No processo de silkagem, como já foi exemplificado, durante o momento de transposição da arte da tela para a roupa, pode ocorrer algum borramento, respingo de tinta, apagamento da estampa, disposição não centralizada etc. Esses desvios, longe de serem condenados ou punidos, muitas vezes são valorizados pelo próprio efeito de diferenciação que eles geram na roupa e nos sujeitos que acompanham ou realizam a atividade. Os participantes são apresentados à técnica de silkagem por alguém mais experiente, mas como essa técnica será utilizada, além de ser uma incógnita, é o que permite a emergência da subjetividade. Portanto, não se trata de um regime tecnocrático, mas de uma organização que desorganiza a todo instante e que (re)inventa técnicas.

[1] Participou, por exemplo, da III Feira de Saúde Mental e Economia Solidária, que ocorreu no dia 29 de maio de 2010, na Escola de Enfermagem da USP.
Artigo de Bruno Henrique Bengel de Paula