quarta-feira, 23 de março de 2011

Dasdoidando - parte 1


Dasdoida: uma experiência em constante mutação[1]

A oficina experimental de moda Dasdoida é um dispositivo clínico-ético-estético-político que, até pouco tempo, estava consolidado no CAPS Prof. Luiz Cerqueira da Rocha ou, como é mais conhecido, o CAPS Itapeva. A Dasdoida apresenta-se formatada – veremos como, mais adiante – estruturalmente desde 2008. A oficina organizava-se, minimamente, em torno de atividades semanais, regulares, que ocorriam às segundas e quintas-feiras. Devido ao seu caráter aberto a participação dos usuários nas atividades se dava de modo livre, assim como ficava permitida a presença de participantes não-pacientes do CAPS. Esse tipo de arranjo possibilita a construção de um espaço facilitador de encontros, sendo esses marcados, não pela identidade, mas, sim, pela diferença. Essa característica da oficina acabava produzindo diversos modos de comprometimento com as atividades, ou seja, proporcionava engajamentos singulares. Alguns participantes, por exemplo, freqüentavam ambos os espaços de oficina. Outros optavam por uma ou por outra atividade. Há, ainda, aqueles que simplesmente “esbarravam” na Dasdoida, durante suas andanças (perambulações errantes) pelo CAPS. Existiam, também, os que surgiam somente nos momentos de desfile – do qual falaremos mais adiante –, enfim, essas entre outras inúmeras possibilidades de participação. Para citar um exemplo de encontro inusitado com a Dasdoida, recorro a um depoimento, na verdade a um recorte de um poético texto, publicado em um blog[2] por um dos voluntários da oficina com quem me deparei naquela época:

Falando em gente boa, deixei pro final minha paixão atual: Por acaso entrei no "casarão" da Paulista num domingo e conheci Ronaldo [voluntário]; estava expondo algumas coisas da griffe "dasdoida"; conversamos um bocado e acabei me motivando a ir na semana seguinte ao Caps-Itapeva para ver de perto como funcionava tal oficina e não deixei de ir mais. Aí conheci uma das responsáveis: Dra. Júlia Catunda - amor à primeira vista. Que figura, que pessoa, que profissional... Conversamos pouco, mas como me entende! Não é minha médica, sendo. (...) Minhas idas por lá e aos eventos (ontem à tarde, descemos vestidos com "parangolés" a Teodoro Sampaio até a Praça Benedito Calixto para receber um prêmio – na próxima quarta, pretendo estar com eles em Embu) têm sido mais terapêuticos para mim do que todas as terapias que já fiz. Sem comentar nos outros agora, para não entediar. Só citarei Márcia Pompermayer, linda terapeuta ocupacional; co-reponsável pela oficina; e outras figurinhas carimbadas; que ainda não diferenciei se são usuários ou voluntários (...).

Voltemos agora à caracterização das atividades semanais da oficina. Às segundas-feiras ocorria a atividade de esquizitização, uma modalidade de customização que privilegia a produção de desvios e não a produção de cópias dos instituídos sociais, dessa forma, “há uma valorização da representação do sintoma”, como se refere um dos voluntários da Dasdoida com relação ao potencial clínico-criativo da atividade. Às quintas, desenvolvia-se a atividade de silkagem, que consistia no design de telas (planejamento, desenho e confecção) e na estamparia de peças de roupa. Vale ressaltar que os objetos produzidos circulavam por ambas as atividades, sendo investidos/desejados por mais de uma pessoa. Esses produtos elaborados pelas dasdoidas (participantes) acabam tornando-se “objetos de moda”, pois podem servir como meio de divulgação da marca, sendo passíveis de intervenções vídeo e fotográficas; como roupas/modos de expressão que vestem os corpos dos modelos performáticos; como itens de troca ou vendagem que investem em uma forma de trabalho não-exploratória.
Além das atividades que se desenrolavam nas dependências do CAPS, uma outra atividade, não menos importante, também ocorria, periodicamente, em diversos outros locais: o desfile. Essa atividade, que ocorria sazonalmente, faz parte da “grade” da Dasdoida, tendo uma grande importância terapêutica e uma imensa relevância social. Além de ser um meio de divulgação da marca Dasdoida, o desfile autoriza às pessoas implicadas – usuários, técnicos, voluntários ou simpatizantes – protagonizarem momentos de pura manifestação artística, de devires, nos quais há uma ruptura com as repetições sociais rígidas e uma ascensão das singularidades. Essa “clínica a céu aberto”, como se refere uma das técnicas da Dasdoida, também possibilita a articulação com outros projetos sociais que não estão somente ligados à Saúde Mental, permitindo, assim, que a diferença se multiplique nos mais diversos segmentos/âmbitos da sociedade e, conseqüentemente, envolvendo outros atores sociais. Portanto, pode-se pensar o desfile como uma estratégia clínico-política que permite a construção de laços sociais de seus participantes com o entorno, possibilitando à ampliação de suas redes de pertencimento e garantindo, dessa forma, o exercício, a promoção, da reabilitação psicossocial.

Os desvios e a potência da moda desinstitucionalizada

A partir dessa breve descrição, podemos delinear o funcionamento global do dispositivo-Dasdoida e como ele operava tanto no interior do CAPS, como na comunidade. Pode-se dizer que a Dasdoida se constitui enquanto “corpo não fragmentado” que serve àqueles que vivenciam, na psicose, um dilaceramento total do corpo. A Dasdoida acaba construindo essa unidade corpórea através da organização das etapas de trabalho de modo prescrito, que tem por finalidade orientar os participantes no que diz respeito ao objetivo aparente das atividades – que se refere à confecção dos produtos. Esse fio condutor, que norteia o trabalho nas oficinas, é importante, pois possibilita um direcionamento comum aos participantes, permitindo, assim, a construção coletiva e, ao mesmo tempo, singular de cada sujeito, já que cada um, transitando nessa linha, produz desvios que lhe são próprios. Pode-se dizer que uma direção comum, reconhecível, é traçada, mas os caminhos que são trilhados se dão nos mais diversos sentidos, embora sempre haja um cruzamento com o eixo-referência que é coletivamente pactuado.
(continua)

[1] Os encontros meus com a Dasdoida se deram ao longo de todo o ano de 2010, portanto, o artigo refere-se às experimentações que pude fazer parte durante esse período, logo o tempo verbal encontra-se no pretérito.
[2] Disponível em: . Acesso em: 22 de março de 2011.
Artigo de Bruno Henrique Bengel de Paula

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