domingo, 26 de dezembro de 2010
Conto de Natal
De modo que fiquei restrito, por tibieza e hábito, a me aboletar em mesas e balcões de bar e esperar. Beber é um requinte da milenar arte da espera; já fumar, usar drogas, destruir carrões e motos, me dão a impressão de pressa, de uma certa displicência, algo como acelerar os ponteiros acrescentando peso aos mecanismos do carrilhão no relógio da vida. E se há uma coisa que detesto é a falta de critério dos tempos que correm, as pessoas saem a esmo imitando qualquer tendência para não ter que criar nada de intimamente seu. Nem mesmo a despedida. Comecei a beber de forma, digamos, mais competitiva, depois que a Yolanda se foi, deixando-me com as meninas; no ano em que a mais nova se formou, perdi meu último emprego registrado em carteira.
Não sei o que há comigo; por que continuo se já ultrapassei o préstimo?, o que é que ainda tenho que ver ou viver?. Já passei faz muito dos sessenta (meu pai, um avô e uma avó morreram do coração antes dos cinqüenta), parei com todos os remédios, estou pré-diabético, hipertenso e uns bons trinta quilos acima do peso, todas as madrugadas enxugo hectolitros de destilados, fermentados, perfume, desinfetante, qualquer coisa que contenha álcool... e nada me acontece. Acordo todos os dias inchado, sem poder fechar os dedos da mão sobre as palmas, meu nariz é um obsceno morango recortado por veias escuras no rosto semi escondido pela barba branca; às dez em ponto, ainda de fogo, chupando a primeira bala de menta do dia, chego no promocenter onde estou defendendo uma graninha de fim de ano.
Até às sete fico lá, vestido com um roupão acetinado, botas e cinto de fivela, além do gorrinho vermelho de bolinha, com uma sineta na mão anunciando as ofertas imbatíveis do mini-shopping de bugigangas chinesas. Neste calor de fritar calango no meio-fio, não sei o que é pior: a canícula, as crianças me puxando a barba (“é de verdade, mãe!”) ou ter que passar a seco oito horas e meia, descontada a meia horinha do almoço, quando engulo uma esfiha, um torresmo ― e um martini com duas pedras de gelo, que ninguém é de ferro. Moro de favor nos fundos de um estacionamento próximo, o que me introduziu na seleta casta de habitantes do centro da cidade-dormitório. A cidade faz parte da Grande São Paulo; não é tão ruim quanto parece, os políticos daqui praticam o saudável esporte de se fuzilarem uns aos outros, o que vem estimulando a imprensa e o setor de serviços locais.
O centro comercial e administrativo é pequeno, mas o município é amplo; a maioria vive em subúrbios meio distantes, descampados, com ruas de terra batida servidas por excelente malha de córregos que também faz as vezes de esgoto. Mas não posso reclamar, vou a pé para a firma que fica na Avenida Brasil com a Araújo de Castro; o duro é que, como lá não tem vestiário masculino, tenho de já ir vestido de Papai Noel, e tome-lhe gozação no caminho. Nos estandes predominam as vendedoras, umas meninas enfiadas em calças jeans dois números menores do que o recheio, que passam a maior parte do dia coladas no celular falando com Deus e o mundo. Tomei gosto por conversar com a Jucilaine, uma dessas coitadas, que ainda por cima está grávida; a velha história: dezoito anos, segunda barriga, segundo pai que desaparece, a avó cria o primeiro brasilino, a mãe trabalha em São Paulo em casa de família.
“Você tem pai?”
“Nem o Noel.”
“E o do... da criança, quem é?”
“Um motoboy do Pizza Express, chama Gabriel.”
Fim de expediente, numa sede da quenga, só pensava na hora de sair dali e já tomar a primeira breja da noite num pé-sujo da vizinhança, só pra lubrificar dando uma banana para quem achasse graça da roupa e para a tal Ceia de Natal. Não sou de ficar emotivo por datas, não antes de encharcar a alma de manguaça, não antes de relembrar que a Yolanda saiu de casa para viver com outra mulher, que as minhas filhas são gerentes de multinacional e já desistiram de me internar em clínicas de reabilitação. Só dei para a mais velha o telefone do estacionamento. Começou então uma daquelas chuvaradas que foi virando enchente em pouco tempo, trânsito parado, os ônibus e peruas passando apinhados de gente sem pegar ninguém no ponto. De repente, a magia das compras havia cessado e as pessoas foram para a porta assistir à fúria das águas que desciam em torrente na direção da parte mais baixa da avenida.
Jucilaine ia dormir na casa de uma amiga, já que no bairro dela o córrego transbordara e nada nem ninguém passaria por ali naquela noite. A mãe ligou dizendo que também não conseguia voltar de São Paulo; ligou para tranqüilizar a avó, que guardasse o peru, fariam a comilança e a entrega de presentes no dia seguinte, paciência. Mas a amiga também estava com problemas na sua quebrada, a Defesa Civil tinha acabado de mandar desocupar toda a rua por risco de desabamento. Ofereci-me para lhe dar um pouso naquela noite de caos; do estacionamento poderia ligar para saber como estavam as coisas com a avó ― ela tinha ficado sem créditos no celular. Não deve ter sido um belo espetáculo, uma dupla bizarra espremida sob o guarda-chuva virado do avesso pelo vento, meio a reboque da enxurrada e com rajadas de chuva batendo de tudo quanto é lado. Menos bonito ainda foi quando fizemos uma parada técnica num boteco, onde abri os trabalhos mandando duas Steinhäger com limão pra baixo; ela recusou o ovo colorido que o garçom lhe trouxe no pires.
Quase que ela poderia ser a neta que não tinha, mas, enquanto caminhávamos aos tropicões pelas ruas alagadas, pensei que tudo aquilo poderia estar ligado ao motivo de eu continuar, misteriosamente, vivo. Fiquei constrangido ao sentir o meu barrigão encostado no dela e, sem entender o que uma coisa teria a ver com a outra, não conseguia tirar a pergunta da cabeça: “qual lição ainda tenho que aprender?” Papo mais besta, esse; acomodei-a no muquinfo em que vivia, presenteando-lhe o colchão e me estiquei na poltrona. O banheiro ficava num puxadinho do lado de fora da edícula; você que neste momento tem acesso a tudo que penso, sabe que velei toda a noite porque faltavam ainda muitos graus GL para me derrubar nos braços de Morfeu, e também que ansiava vê-la levantar-se, ir ao toalete lá fora e voltar toda molhada, se aninhar ao meu lado.
Dar umazinha hoje até que não ia mal, já faz tempo a última. Quantos Natais? Mas o que ninguém poderia suspeitar é que ali, semi-adormecido na poltrona, mamando os restos de uma garrafa de Pitú esquecida no almoxarifado, eu lembrei. Veio tudo, o dia em que pedi a Yolanda que abortasse o que seria nosso primeiro filho, recordei o terror por estar desempregado, o olhar dela; mesmo que duas filhas saudáveis tenham vindo depois, nunca mais dormimos na mesma cama. Será que era isso, finalmente o destino estaria me dando uma mensagem cristalina, eu ainda precisaria conhecer o filho da Jucilaine? Certo, uma criança está vindo; pode não ser muito, mas sempre é alguma coisa. Não acha?
sexta-feira, 24 de dezembro de 2010
sopro
onde há ondas sou como
o eco a te eco ar
de seda e sangue entendo
neste tempo inextenso
o dragão na lua desce
tem a sede da bestas a
cada mênstruo da bosta
da lesma do elefante
o cio está nas coisas
da almassolta se cheiro
na relva o orvalho doce
ácido é o pensamento
de quem chora a chuva do
dia que teria sido
você pode se enganar
o que eu não posso fazer
é me enganar por você
domingo, 19 de dezembro de 2010
à espera
força
eu estou no mundo e
o mundo está em mim
é inevitável
no ponto em que cheguei
que as coisas sejam
feitas a partir de outras
mais simples
(e menos reais)
tudo poderia muito bem
nem ter acontecido
hidrogênio gravidade radiação
e tempo
deve existir um motivo
para tanta complicação
mas escapa
como poesia vazante
nos teus gestos lassos
talvez a vida seja
o mais improvável dos destinos
manifestos
mas ainda acredito em sorte
clinamen acaso ou milagres
do amor
quinta-feira, 16 de dezembro de 2010
quarta-feira, 15 de dezembro de 2010
a sagração do alimento
sábado, 11 de dezembro de 2010
NEM SEMPRE
acorda
nem tudo que é doce
engorda
nem todo mar é
azul
nem tudo que é belo
nu
nem todo sonho
finda
nem uma utopia
ainda
nem toda paixão há de ser
incerta
nem sempre o sexo
liberta
nem tudo na China será
vermelho
nem chega todo sábio
a velho
nem que eu espere você
volta
nem você gritando ele
nota
nem toda esperança morre
frustrada
nem será toda inocência
abandonada
nem todas as manias
pegam
nem todas as mensagens
chegam
nem toda mulher
chora
nem todo amor vai
embora
nem toda escuridão
alumia
nem sempre há luz
de dia
quarta-feira, 8 de dezembro de 2010
o café da manhã do lagarto
como se estivesse trocando
de pele
cada manhã custa renovados compromissos
acordo comigo mesmo
ruminando
cada vida que um dia
me aconteceu espero
algo
que ainda não tem contorno
(apenas pulso) continuo
a vigília mas deixei
de reparar deixei de me importar
com a chuva
com padrões de privacidade mas
relâmpagos alagam de luz
pontes vias expressas e logo as devolvem
ao breu
rasga a madrugada o raio-serpente
iluminam-se os sete bilhões de rostos
do Senhor do Mundo
a rede aviventa os mortos-vivos
banais consumidores de infernos
bairros ruas e condomínios
fechados
sábado, 4 de dezembro de 2010
os adiamentos da manhã
o verão chega e estou
atrasado
sem ar para as comemorações
cruas
a vida pesa a soma dos meses
perdidos
mudo movimento das nuvens
embaixo
de um céu demasiado
azul
uma claridade chispa
sem chuva
sem música
vento virando
no porto intangível o poema desperdiça
domingos
manhãs tristes carinhos
a escrita
é um capitão raivoso
a doce inutilidade de morrer
na praia
quinta-feira, 2 de dezembro de 2010
Criação
permanece à soleira de minha porta
Aguarda, insiste, muda de textura
Deixa-me alheia, perplexa, intensa
Grávida de palavras afoitas
que me desejam uma boa hora
Ávidas pelo momento de se transmutarem em luz
quarta-feira, 1 de dezembro de 2010
se eu fechasse os olhos agora
não há mais Tristão
eu sou o seio
o deus
o anjo
o íncubo
o hermafrodito
e a besta
por que não suporto o verdadeiramente
outro
ao invés de buscar um outro exemplar
de mim
?
no bolso do tempo andará o poeta
a revelar buracos revolver
abismos
onde não os supúnhamos
(antes de me fundir à existência
fui
o mundo ele mesmo no momento que ignora
cisma
entre ser e querer)
vaguei por mares sem guia
na perigosa
estação das lembranças
venci tempestades de lágrimas
imagens temores estados de alma
e o vento que me
seguia
inútil fechar os olhos tapar
os ouvidos
sempre alguma coisa se passa
dentro
imaginação fluxo torrente
incessante de representações desejos
afetos
que se preserve o couro do sapato e os dias
sábado, 27 de novembro de 2010
o marinheiro mareado
os passos pelo nada
a seta pulsante
que são
nenhuma selva é melhor que a outra
para quem está perdido
e se o bico quebra
a vidraça é porque apesar de tudo
a fala é de todos
informe
vestíamos as crianças de marinheiro
acabavam de desembarcar neste mundo
mais louco
que o Fabuloso Destino do Chapeleiro
Louco
ontem hoje amanhã há tiros
fogo balas traçantes lares
invadidos
uma coisa leva a outra que leva a outra
mas acaba sempre
aqui
há o tempo indeciso
do inacabado
da dúvida
o corpo se equilibra entre
a reflexão e o relato
o lado belo da vida
é o que só está lá
como possibilidade
questionando
tudo ao seu redor
entretanto isto aparece coberto
por imagens que querem ser
poesia
com seus jogos de aproximação desdobramentos
rítmicos
pesando como um túmulo
irradiando morte para todos
os cantos
é como se nada se completasse
nem houvesse compaixão
apenas um rio a correr
Berço
quinta-feira, 25 de novembro de 2010
a umidade das formas
enquanto existo eu
e no entanto passa
muito
além do que a mente
creu
incrível não é que haja
a beleza
mas que algumas teorias
funcionem
assombroso não é haver
o mundo
mas acreditar
nele
ser humano é nunca estar
por inteiro faltar
à grande orgia
do ser
homens mulheres e outros gêneros continuam a chafurdar
nos mesmos batidos boleros
de amor ódio sexo
e morte
a vida é arte
a arte
sorte
a arte está na terra
molhada e as sensações que a própria terra
tem por estar
molhada
já sou só uma pena
voando
a vida imita a arte
sorte a dela assim
está viva
domingo, 21 de novembro de 2010
Livro dos Recordes Sexuais: a mulher mais satisfeita do mundo
sábado, 13 de novembro de 2010
ô disse eu
cada vez mais bipolar
mais hipertenso
menos
conectado
a verdade é que não acredito
mais
na verdade
(desacreditei até do beijo francês)
não acredito mais em jornais
promessas de deuses
longínquos
ou vizinhos
só continuo vivo por esquecimento
acomodação
e uma praticidade mesquinha que me leva
a fazer sempre as mesmas
poesias
ao mesmo tempo em que acredito em tudo
(TUDO pode acontecer)
nada me apavora
mais
o fato é que não inventei a novidade
do milênio
permaneci quieto e resignado enquanto meu país
deixa
que homens e mulheres escrevam de uma maneira perfeitamente
controlada
as minhas palavras não funcionam
não são antenas da raça nem
antecipam
futuras gerações ou desenvolvimentos sociais
e técnicos
falta uma espécie de energia aquela
que sobra nesta época
desabrocham as gardênias
acres damas-da-noite
atenuadas pelas magnólias manjericos
e jasmins
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foto: Célia Mello (www.fotografiacontemporanea.com.br)
quarta-feira, 10 de novembro de 2010
Zoadinha e o Iluminado
― Zoadinha... mas gostosa. A coda do apelido os garanhões de subúrbio, evidentemente, não disseminaram... ― o velho era de falar tudo na bucha, ela, zero burra, devolvia jabs com cruzados, respondia ganchos com diretos. Entenderam-se desde o primeiro encontro.
Saía do trabalho às sete, chegava, dava um talento na casa, deixava a janta pronta e tomava uma ducha rápida antes de sair para a terceira jornada, das nove às seis. De dia era atendente na farmácia do bairro, a falsa magra do balcão; os marmanjos se revezavam em levar-lhe uma cesta provida de camisinhas, ky e comprimidos de levanta-pau só para vê-la no caixa, corando como pimentão enquanto fazia a soma, embalava e indicava os produtos na promoção.
― Faz um desconto do bom, porque ainda vou gastar no rolê com a mina. Mulher e carro, já viu, precisa de dinheiro e gasolina ― disse um.
― Esta casa parece uma caixa com paredes feitas de livros; muitos deles, você que escreveu. Pra quê? ― não era feia, o que é, é que, à primeira vista, o projeto geral parecia meio escangalhado; sobretudo as feições eram esparsas, distribuídas por um crânio alongado demais em que o osso extenso do nariz vinha até embaixo, alargando pouco ao aproximar-se dos lábios generosos. As pupilas, tinha-as fugidias e negras, aqueles olhos quirguizes de caboclo meio puxado a índio, o que os cabelos longos e escuros confirmavam, mas a pele desmentia com uma brancura sardenta e sujeita à ruborização constante.
― Qual deles você gosta mais Zoadinha?... Ah, muito perspicaz, é o meu preferido também; ganhei prêmios com ele ― acabara de completar noventa anos; era de estatura média, não fosse pelo cabeção desproporcional emoldurado por grossas sobrancelhas, nada haveria nele que fosse fisicamente incomum, nem mesmo a magreza que a idade acentuara. Viúvo, seis filhos e cinco netos; ficou morando sozinho no casarão ilhado pela deterioração do bairro. Por causa dos joelhos, não conseguia mais se levantar de cama ou cadeira sem ajuda; um pequeno exército de cuidadores orbitava em torno dele 24 horas por dia. Era considerado um gênio vivo.
O que nela também não colaborava era um começo de giba, conseqüência postural da timidez, que dava a impressão de encurtar o tronco, além de conferir um jeito de cambitinhos arqueados às pernas, além de empurrar para dentro uma bunda que mereceria o destaque da lordose. O velho catucava, chamava-a na chincha, por que acreditava ela ser dedo-podre no amor? ― Aos vinte e sete anos parece cedo, ok, comparada ao senhor sei que não é nada, mas já desisti. Sou que nem curva de rio, só pára tranqueira ― firmes e empinados peitinhos, somados à auto-ironia sarcástica derretiam o ancião.
― “Teomaquia, a luta contra o Deus do mundo e os deuses interiores”... É verdade que teve uma... visão? ― habitualmente iam até meia noite na prosa, raramente tinha trabalho de madrugada, embora às vezes ele se cagasse todo e aí era uma trabalheira dos diabos dar-lhe banho e trocar a roupa de cama. Fora que o coitado ficava pra lá de desconsolado no dia seguinte. O descompasso, cada vez mais acentuado, entre o corpo e a mente acabrunhava-o, sentia-se traído pelo arcabouço em desintegração enquanto o espírito permanecia cruelmente lúcido.
― Senti o Deus que há dentro e fora de nós, fui do visível ao invisível, pulei da realidade subatômica, em que a noção de distância deixa de fazer sentido, aos confins do espaço, onde começa o umbigo do universo que contém este universo, e assim ao infinito; Zoadinha, conheci o sustentáculo do cosmos, a ligação de todas as coisas, o entrelaçamento do humano e da natureza, atingi a mais perfeita beatitude e o mais fundo desespero, onde o místico ultrapassa as aparências e encontra a verdade última, a unidade original em que Deus coincide com a realidade.
― Então foi assim que conseguiu criar a sua maçonaria? Ouvi dizer que só tem granfo lá... Agora, por que é que seus filhos não deixam o senhor aparecer?...
― Ser velho é virar papel higiênico: ou se está enrolado, ou cheio de merda. Por isso meus filhos me afastaram do dia-a-dia do meu instituto, como sustentar a figura de um fundador mítico, apresentando um homem que não anda nem limpa mais o cu sozinho?
― Só não entendo como o criador de uma seita pode falar nos seus livros que é preciso combater o Deus que existe em nós... o senhor é ateu?
― Não sou, nunca fui, religioso e nem fundei cabala nenhuma, sem embargo, não vejo como poderíamos nos livrar Dele, ao menos não definitivamente. Veja, durante a minha epifania não tive apenas um lampejo do que é o universo, mas também enxerguei como as coisas realmente funcionam neste mundo. Daí que passei a vender o único artigo de fé do homem moderno: eficiência.
― Fugiu da minha pergunta, para variar, vamos mudar um pouco, vou lhe ler o que escreveu: “assim como nos chegou, o relato da Criação é uma história mal contada, e toda história mal contada acaba por revelar muito mais do que gostaria”.
― Claro, olhe, quando duas criaturas se encontram, é quase impossível que a mais forte não devore, abuse ou explore a mais fraca. Vale entre animais, vale entre os humanos e Deus; não digo que Ele exista lá fora, no espaço sideral, acontece que, a partir do momento que a linguagem entra em nós, a violência se consuma. A ordem simbólica só entra no corpo causando grandes estragos; Geová, o grande verme, o grande Outro que me habita e me descentra de mim mesmo.
― É arrepiante, o senhor diz que a Bíblia é a história de um estupro. Quer dizer então que nós dois aqui só nos respeitamos porque um não tem mais força que o outro?
― Pode apostar nisso. Leia o Bereshit com muita atenção, Javé cria animais selvagens e domésticos em pares de macho e fêmea e lhes manda frutificar e multiplicar; mas eis que faz exceção ao bicho criado à Sua imagem e semelhança quando leva seu rebanho para o Jardim do Éden, qual o motivo?, esquecimento, distração, lhe garanto que não foi...
― Só que vai uma grande distância afirmar que houve um abuso sexual no Paraíso!
― Um não, dois. Eva também entrou na dança. Atente para o fato de que o pecado original nada ter a ver com sexo, mas sim com o conhecimento; está lá, em Gênesis 3:21, “Eis que o homem se tornou como um e nós, conhecedor do bem e do mal.” Percebeu o “nós”? Deslize de tradução, interpolação tardia? Nada disso, Elohim sabe que não é o único tigre de papel no país das idéias platônicas. Ele cansara das vítimas, mas não do jogo; acompanhe a descendência de Adão e Eva, por que recusa Ele as oferendas do lavrador Caim, mas aceita as do pastor Abel?
― Eu li isso, é outro dos seus absurdos: Caim seria filho de Deus, Abel, de Adão... Já sei o que vai dizer, que Eva afirma ter possuído “um homem com a ajuda do Senhor”, antes de Caim nascer e que isto se repete com Maria e o Cristo, abandonado na cruz... loucura!...
― Chamo-lhe a atenção para a simbologia: árvore, escada e cruz; a árvore do centro do Éden, a escada do sonho de Jacó e a cruz onde morre o Cristo são arquétipos da ligação do mundo sublunar com o supra-sensível, mas também embutem o conflito primordial com a divindade, exemplarmente ilustrado pela luta de Jacó com o anjo.
― Sendo assim, o senhor está dizendo que Deus não é amor...
― Digo que não é só amor, porque há mais que isso em quem o conjurou. Zoadinha, pára de me chamar de senhor...
― Então, senhor, pare de me chamar de Zoadinha!
Alertada por um telefonema anônimo, Rosana, a filha que visitava o velho mais amiudadamente, descobriu que todo um tráfico se estabelecera no seio do improvável casal. Zoadinha vinha contrabandeando umas pilulinhas mágicas para espevitar o sábio geronte, peças íntimas dela foram encontradas nas gavetas do escritório onde se trancavam até altas horas. Demitiu-a sumariamente.
Uma equipe de médicos, incluindo geriatra, ortopedista, gastro e reumatologista, não chegaram a um acordo sobre o fenômeno: o velho passou a gemer dia e noite, a multiplicar queixas de dores por todo lado. Dava dó de ver.
sexta-feira, 5 de novembro de 2010
Rrose Sélavy
quando Katherine Dreier pediu a Duchamp
que produzisse um objeto para a irmã
ele lhe entregou uma gaiola contendo
cubos de açúcar
um termômetro
mármore
e um osso de ave marinha, dizendo
Por que não espirrar?
nada permanece
na alma
nem mesmo a exaustão
o vazio
então, por que não fazer qualquer coisa?
como espirrar
irritação que cresce borbulhando
cócegas
e acaba numa explosão climática
e úmida
eu que vivi sem pátria
eira ou beira
ao ócio do sonho
entregue
que vivi somente ao sol
de Espanha
condenado a ser todas as coisas
e as sombras que elas sonegam
ser a sombra das tuas coxas e da tua boca
valvulada
as panturrilhas e a curva macia dos cotovelos
erguer o ventre não é nada fácil
ainda mais depois de espirrar
depois de descobrir que o mundo é uma fachada
onde se movem enganosos autômatos
eu que vivi em todos os lugares
e fui todas as pessoas
a rota de todos os navios perdidos
percorri o éter de planeta em planeta desfolhando
a intocada flor do futuro
na casa da poesia procuro
andar na ponta
dos pés
temo despertá-la
acordar seu tamanho
imenso
ao menos aprendi
EROS É A VIDA
domingo, 24 de outubro de 2010
LOWCULTURA na Casa das Rosas
Agradecimentos: Donny, Nicole, Luana, Mayra, Jackson e toda a equipe da Casa das Rosas
23 de outubro de 2010
quarta-feira, 20 de outubro de 2010
terça-feira, 19 de outubro de 2010
quinta-feira, 14 de outubro de 2010
Sem Saída
sábado, 9 de outubro de 2010
A Lenda da Maria Sangrenta
Naquela altura Anápolis mal chegaria aos trinta mil habitantes, mas tinha aeroporto, ou melhor, havia lá uma pista asfaltada onde pousava um bimotor por semana. O Presidente ia para a Amazônia com escala em Goiânia, o mau tempo forçou o pouso na cidade, onde, cem anos antes, Da. Ana das Dores perdera uma mula com a imagem de Santana. Da fazenda das Antas fez-se a cidade das Anas, como ficou cristãmente batizada.
A excitação foi geral, o Presidente fez comício, botou falação comprida e ali foi que assinou a declaração em que dizia ao povo que a capital seria transferida para a região central do país. Lindomar gostou logo daquele homem fino de rosto e de maneiras, que magnetizava a todos falando de um país grande e próspero que viria; o sobrenome do homem é que lhe não entrava na cabeça: ouvia “cu-de-chefe”, mas isso não era nome de gente.
O servente de pedreiro Lindomar não pensou duas vezes, assim que os empreitas começaram a recrutar, ele se mandou com mulher e três filhos para construir Brasília. Em novembro de 1956 ele estava lá quando começaram a esburacar as fundações do Brasília Palace Hotel e do Palácio da Alvorada. Nos próximos três anos e meio de insanidade épica, ele ajudaria a erguer aquelas caixas de vidro, mármore e concreto armado com seixos de quartzito.
Antes disso, porém, ele liderou uma revolta dos candangos no canteiro de obras do palácio; quebraram barracões da empreiteira e até derrubaram o “Catetinho”, galpão rústico de jacarandá e peroba do campo onde Juscelino se hospedava nas visitas à futura sede do Poder Executivo. A peãozada recusou-se a comer a carne bichada do rango. Os patrões responderam estralando o reio: mandaram dar uma coça nos líderes da rebelião, vitimando o amigo Paraibinha. Lindomar passou a freqüentar a casa da viúva.
Construir a cidade a partir do nada, no meio daquele cerrado seco e calorento, foi um desafio ao gênio da raça; o Brasil mostrava ao mundo um estilo próprio e único, amálgama do engenho e da arte de um povo voltado para a modernidade. As superquadras emolduradas por largas avenidas desembocando em rotatórias, a esplanada dos ministérios com a barragem do Paranoá ao fundo, a arquitetura de colossais vãos e curvas, os pilares de extrema leveza, os brises de fibro-concreto, os granitos, o elemento vazado dos combogós, tudo lhe dizia que virara um gigante. Vieram mais três filhos.
Como na vida ninguém passa sem aperreio, a viúva do Paraibinha, agora convertida em amante, emprenhou. Arrelia danada. O parto foi uma agonia, a criança, um macho, nasceu bem, mas a mãe quase morreu de uma hemorragia incontrolável. Uma vizinha amamentou o bebê enquanto a mãe se recuperava; Lindomar ia todos os dias visitá-los em Taguatinga. Até que Feliciana, a esposa traída, apareceu na porta do barraco, louca, virada no Coiso, ameaçando o marido, a amásia e a criança. Um pampeiro. Na saída, ainda chutou o cachorrinho cotó da outra.
Pressionado pela patroa, Lindomar mijou pra trás, negou-se a registrar a criança, ofereceu dinheiro e passagem para que a viúva deixasse o Distrito Federal. Ela recusou. Batizou o menino com o nome de Omar, homenagem ao pai fujão e lembrança perene de que, para ela e o filho, a vida nada tinha de linda. Mudou-se para o Rio de Janeiro, foi morar na Rocinha, no puxadinho do barraco de um irmão. Ele se tornou um pai exemplar para os filhos legítimos, conseguiu formar advogada a mais nova, Guiomar, que alcançaria altos cargos na Secretaria de Segurança, na Eletronorte e no ministério de Minas e Energia.
A ascensão da caçula tirou o pé de todos da lama, após trinta anos de sacrifícios a família deixou a cidade-satélite do Guará. Lindomar nunca mais soube notícias do filho, embora Omar freqüentasse a mídia carioca e nacional, traficante conhecido pela alcunha de Mazinho Biluca. Mazinho, implacável nos “negócios”, era um bom filho: instalou a mãe na cobertura de um prédio na favela, botou deque e piscina na varanda, ofurô, TV tela plana, piso de porcelanato e acabamento com pintura texturizada. Namorava Maria da Penha, a popozuda do pedaço. Vidão.
Biluca tinha o costume de pular a cerca, bandido quase nunca é homem de uma mulher só. Acontece que ele passou do ponto e catou a meia-irmã falsa loira da Maria, que, inconformada, resolveu se vingar do casalzinho. Maria era popozuda e linda, mas louca; entregou a fita para os traficantes rivais, molezinha, eles se encontravam fora da favela num apê de cinema que o safado comprara na Barra da Tijuca. Fez questão de acompanhar toda a operação: a tocaia, o julgamento dos chefões no alto do morro, o esculacho dos matadores e a execução de ambos com requintes de crueldade.
Os assassinos deixaram os pertences do Mazinho com Maria: um molho de chaves, o celular, um patuá e a automática. Desvairada, ela saiu a esmo, vagando horas a fio pelos dédalos da favela; chegando ao asfalto, foi tomada por uma firme resolução: queria conhecer o ninho de amor em que a traição se consumara. Pegou o lotação para a Barra. O apartamento era de um luxo delirante, os quadros rodavam à volta dela, as cortinas, os sofás, as luminárias; sufocou com todo aquele chiquê de uma vida estofada que não lhe tinha cabido. Deixou-se cair na cama redonda do quarto, chorava de soluçar.
O espelho, que tomava todo o teto do quarto, refletia cenas tórridas de sexo dos amantes mortos em alternância confusa com a imagem de uma mulher abandonada; como que acompanhava à distância seus próprios atos. Alguns dos livros mais antigos sobre a construção de Brasília trazem fotos invertidas, já que os primeiros registros foram feitos com filmes próprios para slide; da mesma forma, Maria enxergava aquela mulher lá no alto apanhar na bolsa uma arma, ficar de pé sobre a cama e colocar o cano na boca antes de estourar os miolos. A última coisa que viu foi o sangue salpicando o espelho.
O apartamento passou sete anos fechado. Nas noites de lua nova, corriam histórias de vizinhos sobre horríveis e inarticulados gritos vindos do quarto da Maria Sangrenta. Até que uma família se mudou para lá, um lobista de Brasília com a segunda mulher e o filho pequeno. A rádio-pião do condomínio logo noticiava que ele tinha sido pivô de um escândalo recente de intermediações fraudulentas na Controladoria Geral da União. Mudados às pressas, os novos condôminos se instalaram no novo lar sem reformas minuciosas, reservando o quarto do espelho manchado para acomodar o excedente do depósito. Proibiram o menino de freqüentar o cômodo.
Mas criança, já viu, proibiu, tentou. Lindomarzinho, xará do avô, buscava um boneco encaixotado do Ben Dez na ala proibida de seu novo castelo; os pais tinham ido buscar as compras de supermercado na garagem, era um sábado de folga da empregada. Deparou-se com o espelho que emanava uma luz baça, curioso, subiu numa pilha de caixas. Diz uma versão horripilante que o menino foi pego pela alma atormentada da Maria Sangrenta, que o escangotou até lhe quebrar o pescoço. O certo é que a partir daqui começa um mistério que o inquérito policial nunca conseguiu resolver: nas roupas da vítima foi encontrado o sangue de uma mulher.
Lindomar soube da notícia em Brasília, o antigo pedreiro não suportou o acúmulo deste golpe à dolorosa perda da indicação ao Ministério das Cidades pela filha Guiomar. Morreu de enfarte numa idade avançada que ele mesmo desconhecia; a última coisa que ouviu foi o neto de sete anos chamando por ele enquanto caía no abismo.
quinta-feira, 7 de outubro de 2010
sexta-feira, 1 de outubro de 2010
quinta-feira, 30 de setembro de 2010
A Roberto Piva
sexta-feira, 24 de setembro de 2010
Apanhador de sonhos
ERA TEMPO DE GOIABA
Até aquela noite, ela tinha aguentado tudo: os gritos, as surras, a humilhação. Ela era casada...
Muitas e muitas vezes amanheceu com um olho roxo e botou o cabelo por cima, para esconder o hematoma. Mentiu que caíra encerando o assoalho, uma vez. Que o dente era um pivô mal feito, e que o quebrou comendo pão.
Aguentou tudo firme, sem gritar e nem dar a entender para o povo que era infeliz no casamento, que sofria maus-tratos dentro da sua própria casa. Que era vítima do próprio marido.
Na primeira noite, ao chegar em casa, foi violentada. Conheceu as verdades do sexo na marra, a poder de tabefe. Quieta, bufando no escuro horroroso do quarto. Ela era casada...
Foram anos e anos assim: apanha, serve o homem, apanha de novo, serve e cala a boca. Quanto tempo? Uma eternidade tão triste e tão longa que já nem lembrava mais o que era sorrir.
Mas, naquela noite, sabe-se lá por quê, sentia um negócio esquisito no peito, feito um rosnado de bicho acuado. Naquela noite aconteceu o que não era para acontecer, mas que já era de se esperar.
Naquela noite, mais uma vez ele chegou em casa bêbado, fedendo a bebida e a perfume de bordel, a rosas murchas e pó-de-arroz barato. Jogou em cima da mesa um pacote com carne de porco:
- Faz aí, anda!
Ela ficou um bom tempo olhando o pacote. Pensou na goiabeira da casa da mãe e na própria infância. Pensou que já era tempo de goiaba e que elas deviam estar maduras, de abrir na mão feito caixinhas de jóias. Lembrou da mãe, das irmãs pequenas e da vidinha até bem feliz que ela já tivera, um dia .
Um cheiro gostoso de goiaba começou a inundar a casa inteira, vindo da noite quente lá fora. Ela abriu a porta da frente e começou a andar sem rumo na noite escura, sem olhar para trás. Nunca mais voltou.
foto: "Dog Woman" - Paula Rego
2006
quarta-feira, 22 de setembro de 2010
dezoito segundos
perto é o mais perto que você consegue chegar de um dinossauro? Do lado de um esqueleto de epóxi pintado numa exposição de arqueologia? Quanto a mim, lutei contra uma fera dessas com todas as minhas forças por dezoito segundos e, se não saí inteira, pelo menos estou aqui para contar a história.
Parece pouco,
dezoito segundos. Contados pelo meu marido que viu o começo da cena no alto de um barranco sem poder fazer nada. O importante é que me salvei, ele me salvou e os médicos também me salvaram.
Engraçado,
as duas primeiras coisas que me passaram pela cabeça, aparentemente, não tinham nada a ver com o que estava acontecendo; pensei na pesca do aruanã, um peixe carnívoro da amazônia, e no meu casamento.
Converti-me
ao judaísmo para poder casar com o Joel, em vão, já que descobri depois que não podia participar das principais festas do calendário religioso com os pais dele, freqüentadores da sinagoga dos Safra. O sobrenome Kogan, que não adotei, tem importância fundamental na tradição judaica: indica a descendência direta da tribo Cohen. Rabinos de verdade são da linhagem dos Cohen ou dos Levi.
Nunca
tive religião, queria apenas agradá-lo, conquistar a mãe dele e poder conviver com uma família grande e unida. Não tenho irmãos, perdi pai e mãe aos 20 anos, só restaram uns tios afastados e duas tias esquisitonas, Sônia e Vera, que cuidam da minha prima autista, Aline.
A outra
coisa que me veio à mente foi uma imagem terrível, a armadilha para o aruanã-prateado usando botos feridos. O aruanã sente o cheiro de sangue e vem de cardume para cima da gaiola onde está a isca viva, caindo nas redes da pesca predatória. Às vezes conseguimos tratar desses botos, abandonados feito lixo depois da
barbárie.
Vim para a Amazônia realizar a coleta de dados do meu pós-doutoramento; estudo o comportamento territorial e reprodutivo do pirarucu em Mamirauá, reserva ecológica no médio Solimões. O Joel desenvolve projetos de gestão pesqueira com populações ribeirinhas em áreas aquáticas protegidas; nos conhecemos na USP, ele terminando etnologia, e eu, caloura da biologia.
A noção
de desenvolvimento sustentável começou aqui em Mamirauá. Quase um milhão e meio de hectares de floresta tropical submersa, um mundo flutuante submetido a um regime de variação do nível de água da ordem de 20 metros. Um paraíso para cientistas, artistas, ativistas e... turistas.
Nada
contra o ecoturismo, o problema é que muitos pensam que estão no zoológico. Restos de comida humana, por exemplo, prejudicam a relação com animais in natura; uns imbecis aqui deram de alimentar um jacaré-açu de 5 metros e meio, só para filmá-lo alçando seus 500 kg para fora da água e abocanhando peixes no ar.
O vacilo
também foi meu, é verdade, mas a estupidez alheia contribuiu. Havia acabado de pesar e verificar as anilhas de um lote de pirarucus e despejava o tanque de coleta devolvendo-os para o rio. Um deles saltou de volta para o deque, peguei-o com jeito e me debrucei na beirada segurando firme pela guelra. E então,
o bote.
Uma bocarra com 80 dentes afiados saiu das águas escuras e fechou suas mandíbulas no meu braço esquerdo, me arrastando para o fundo. Como o som de taquaras secas, escutei os ossos do braço, do cotovelo e os ligamentos se quebrando instantaneamente. Ouvi um grito antes de cair
na água
― o Joel. Era como ter o braço esmigalhado por uma prensa mecânica, uma torquês operada por músculos descomunais; senti uma dor selvagem, desumana, uma dor que ninguém deveria conhecer; podia localizar cada ponto em que os dentes do bicho se enterravam na minha
carne
dilacerando o que encontravam pela frente. Os jacarés descendem de caçadores que estão aí há 230 milhões de anos, eficientíssimos, são predadores do topo da cadeia alimentar, tão eficientes, que caçam até outros predadores de topo como onças, pumas, jibóias e sucuris. Eu sabia exatamente o que ia acontecer
a seguir:
a dor tem esse efeito de nos tornar brutalmente conscientes. Tudo se passava rapidamente, embora fosse capaz de perceber a passagem de cada centésimo de segundo distintamente. Ele me levava mais e mais para baixo e para o meio do rio, remando propulsado pela cauda e as patas traseiras, enquanto à minha volta minguavam os fiapos de luz coados da superfície.
TRRLOOC!
Girando repentinamente sobre o seu eixo longitudinal, o gigante desencaixou completamente a articulação do ombro, supinando o meu braço num ângulo absurdo; a dor, que acreditava já estar no ápice, sofreu um acréscimo impossível, me conduzindo também a novos e insuspeitados patamares do medo pânico.
Perdi
os sentidos na volta do parafuso, o bicho voltou a atacar com violência, girando agora o membro que já não sentia, na direção oposta; desceu sobre mim uma calma escuridão pouco antes de registrar que o meu braço tinha sido arrancado de vez por um último puxão
acordei de uma noite cega em pleno campo de batalha, conhecia as regras da luta: ele ia voltar, precisava engolir o naco que me arrancou para caber outro. Jacarés comem diariamente 10 % do peso na forma de presas vivas; eles não caçam propriamente, esperam imóveis, aguardam pacientes a vítima chegar desavisada, e só então se movem, rápidos, letais.
Algo
quis viver em mim; nadei louca para o cais, chorando alucinada, berrando, engolindo água, pedindo outra chance ― não queria morrer com 34 anos, não desse jeito. Realizei o sacrifício, entreguei uma parte à mãe d’água para ficar com o todo que sobrasse. Senti as mãos do Joel a me puxar pelos cabelos e camisa para cima do flutuante, do meu ombro jorrava uma coluna de sangue; nos beijávamos
abraçados
e ensangüentados, soluçando como crianças. Desmaiei de novo. Fui levada de barco e monomotor para a cidade de Tefé, onde fui operada de urgência; não posso exprimir em palavras a dívida de gratidão para com o Instituto, que me disponibilizou sua infra-estrutura incondicional e prontamente. Meu marido não saiu do meu lado.
Passei
um bom tempo me tratando, tranquei a pós, fiz análise, tomei 3 tipos de remédios para a depressão. Para minha surpresa, a sogra agora me tratava como da família, engolia sem questionar minha conversão fajuta na sinagoga reformista, onde homens e mulheres rezavam juntos, em português, e até rabina admitia. Joel me contou que desceu o barranco contando os segundos, procurando manter a vista no lugar onde eu desaparecera; ia encarar o jacaré-açu quando me viu subindo à tona.
A cabala
transmuta letras em números, e vice-versa, dezoito equivale ao valor numérico da palavra hebraica “Chai”, que significa “vivo”; no misticismo judaico, o número 18 corresponde ao poder da vontade na alma.
Finalmente
decidimos voltar para a floresta. Deixei a megacidade para trás como se fossem as fotos envelhecidas da infância de outra pessoa, hoje, no mapa do meu mundo, São Paulo é só memória, um pano de cimento sujo semeado de shopping centers. Selva bem mais perigosa que desejo
longe.
quarta-feira, 15 de setembro de 2010
Lá do lado de lá
Seis horas e nada, só o sol. Ilumina a casa, ilumina o quarto, ilumina… Parece ter dormido bem. Bom dia! Eu aqui por meu lado não posso dizer o mesmo: mais uma noite vagando a sombra, correndo o silêncio… nenhuma resposta. Saberia você me responder ou, estrela que é, seguirá suas amigas lá pro lado de lá, uma noite e um dia, me largando aqui pra trás? Quero saber da luz! Da sombra também, – êta sombra! – ontem e agora; pois que tudo se esconde pra se mostrar em seguida, ainda encoberto…
Estranho. Da noite o dia e este ar secando a garganta e o pensamento. Parece nem perceber que é. Ora, deixa a noite pra trás! Se ela já te abandonou… Levanta, segue seu caminho, deixa, deixa…
Um pouco de água.
Brilha, brinca. Que coisa este sol! Dentro da água como se parte dela, como se a conhecesse por força, por ser. E eu? Conta. Só um pouco de entendimento, só um pouquinho. Das perguntas que ouço e faço, das que investigo, das que nem mesmo chego a suspeitar…
Ela foi mesmo pra lá? Lá pro lado de lá? Não quis me contar… Conta, então, você: viu minha mãe por lá? Viu ou não viu? Ora, deixa de bancar o bobo. Como se não fosse pra lá toda noite. Tá bem, se não quer não fala. Esquece.
Você é como ela, pensam que eu não entendo. Só que eu não sou burro não, viu? Não sou. Tanto que fui o único com quem ela pôde contar. O único! Ora, e de que adianta isso agora? Ela já não te deixou?
— Por quê, mãe? Por quê?
Vai embora sol, vai você também. Acha que é só chegar e me tomar tudo? Nunca mais. Nunca mais!
Aparece, risca o céu e logo vai se esconder. Então vai tranquilo, sei que conhece bem seu caminho, mas por que não me conta do meu? Sim, eu sei, eu sei… Mas se só eu posso, por que não me ajuda? Por que não me ilumina? Segue em frente sem nem me notar, sem um carinho, só pra me atormentar… como ela.
— Não adianta. Pode gritar o quanto quiser. Não adianta.
Faço eu meu caminho. Saio desta casa. Busco meu destino.
E esta árvore bem em cima do túmulo? Deviam te arrancar. Tinha de nascer logo aí? Só pra me avisar todo dia? Mãe, conta, o que é que eu faço? Quero tanto… O que é que eu faço? Mas não grita, mãe, não grita. Por que você sempre faz assim?
— Eu já disse que não adianta, não disse?
— Aqui não é tua casa, rapaz. Gritar não vai te ajudar.
Era calma sua voz, bem calma. De onde, então, o medo que eu sentia? Parecia o zoológico.
— Relaxa. A gente só quer te ajudar.
— Eu não fiz nada.
— Eu sei, eu sei.
— Foi ela que pediu…
Deram-me umas roupas muito limpas, eu me lembro, nem tinham meu cheiro. Disseram que depois devolviam as minhas. Nelas foi junto o João. Fiquei só, eu.
Em volta só um azul, meio sujo, mas um cheiro de limpeza. A cama macia.
— Dorme. Pode dormir.
Como se sobre a cama se abrisse um olhar e, tranquilo, deixasse apagar. E do quarto nada, da fonte só uma gota. Nada de mais. Ao lado a senhora observando o sono, uma ponta de dúvida arregalada, meio escondida. Talvez não querendo estar ali. Pensando mesmo em como é que podia ser uma coisa daquelas. Menino ainda…
Chave medrosa, na ponta dos dedos balança indecisa, mas acaba por se decidir: duas voltas no ferrolho e se vai. Para trás só o cheiro de pinho e as paredes vazias, uma cadeira e a cama guardando um sono amargo, mais sabido que o dono; um sono esquecido, que mesmo com esforço não lembraria do sorriso que se fez – a mãe logo ali – para logo se apagar; a angústia de perder a quem se tem, martírio de toda noite. Agita o corpo todo, ameaça mesmo um soco, mas o sono sempre esquece, se droga e esquece…
Da porta, um corredor escuro até alguma luz. O passo inquieto pedindo, um olhar a recebeu, o posto de enfermagem cansado pelo adiantado da hora.
— Não passa de um garoto…
— Tem a força de um homem.
— Sim, mas não passa de um menino.
A colega olhou o chão, o que adiantaria argumentar? O que fez, o que deixou de fazer… Realmente era um menino, provavelmente gostava de jogar bola e mascar chiclete, sair por aí em grupo com ares de quem tudo pode só pra ter coragem de ser alguém, aí arranjar uma briga na rua, ou pior, em casa. É, um menino como tantos outros, como o que eu tenho lá em casa… Minha Nossa Senhora! Não. Não como o meu filho. Meu filho nunca faria tal coisa.
— É um monstro!
— É doente.
Os olhos se medindo, resolveram pelo silêncio. Do silêncio um pouco de paz, ao menos. E assim, um sorriso, uma bala e a noite; lá no horizonte a manhã com pressa de trazer uma esperança. Quem sabe um pouco também de entendimento, e coragem, para avançar o corredor, rodar a chave, abrir a porta:
— Oi.
Fitou o rosto confuso como sempre, mais vontade que naturalidade.
— Tudo bem?
Fato, nada mais.
— Gostou da cama?
Dois passos e estendeu a mão, nada.
Achava que sempre compreendia, mas às vezes percebia que não. Nestas se perguntava pela certeza rotineira…
— Queria conversar com você.
A palavra, acreditava nela. De sua posse, sujeito. Teve de se contentar, porém, com o silêncio. Como se já não bastasse o que fizera.
Voltou no dia seguinte e no outro e no outro, porque acreditava na cura. Palavra por fonte, medicina por instrumento, tinha esperança. Até que chegou.
— O sol veio.
— É.
— Estou aqui.
Na verdade queria só o tempo, nada de passeios ou festas. Não entendia tudo aquilo, mas aceitou. Aceitou a roupa, aceitou seu quarto, recebeu um amigo. E, por um tempo ao menos, acreditou-se feliz; uma flor bordada na camisa. Até perceber, mais de ano, que nada se lhe recebia de seu. Procurou, tantas vezes se ofereceu, mas conseguiu apenas o mesmo olhar de aprendida compreensão. Não que não notassem, absolutamente, até mesmo reunião fizeram para discutir sua mudança de comportamento, mas outra resposta não souberam. De novo, uma tentativa de ajudá-lo, aumentaram a dose da sua medicação.
Desiludiu-se.
“Dr. Amigo,
Trago o coração riscado.
Sei da dedicação, mas não sei de mais. Há mais? Desde muito sinto toda noite um menos, para no dia seguinte se afagar, afastar; mas que nos últimos não se apaga. Fica forte quando se pensa, fica invencível quando se esquece.
Lá do lado de lá, quem sabe?
Até um dia,
João”
E fugiu.
Mas não escrevera tudo, pois não o saberia escrever, ou mesmo pensar. Do quanto ele próprio podia, da vida ponto e vírgula, das noites, dos dias… Mesmo sentir não sabia, do que o levou embora, uma liberdade que era só aspiração. Uma vingança.
Fugiu.
O ar lá fora mais pesado, – quem sabe voltar? – mas não era escolha de conforto ou tranquilidade. Mãos no bolso, camisa aberta, a lembrança das roupas do João, a certeza de que o que buscava só nu. Certeza? E o que é certeza? Incerto e nu, e sem nome, e assim à noite, escondido aos olhos dos que não querem ver, e assim ao dia.
— Ao sol.
Único companheiro.
À noite, então, completamente só; a não ser por ela mesma, a noite em si, a própria ausência, materializando-se em cada obstáculo, em cada pedra no meio do caminho. Ao menos uma pedra se pode chutar, chutar e seguir: direção marcada. Que outra coisa a fazer quando não se sabe a direção a seguir? Uma pedra, sim; um salto à frente. E a certeza que não se tem até uma nova pedra, como num jogo de amarelhinha: uma pedra, alguns saltos e se chega ao céu. Como numa brincadeira de criança…
Atirei o pau no gato, tô
Mas o gato, tô
Não morreu, reu, reu
Dona Chica, ca
Dimirou-se, se
Do berro, do berro
Que o gato deu
MIAU!
Então, em frente! Riacho seco, garrafa quebrada, pedra amiga… Pra onde vamos? Lá pro lado de lá. Lá é que é bom! Vai pedra, mostra então o caminho. Só não vai quebrar o vidro da vizinha, ela já nem troca mais os dela. Só rindo mesmo… A vizinha só pensa na filha; a moça tem cheiro, tem dengo. Por que não me olha? Por que me olha? Bem podia mais que olhar… nunca mais que um olhar. Ela tem fogo no olho. Faísca, fervente, feminina. Queima feito não sei o quê! Mas joga água quando sorrio… Falsária! Vou-me embora, pode esquecer, encontro quem me queira. Longe daqui. Daqui só uma árvore no lugar errado. Mãe, por que no lugar errado? Onde fica o lugar certo? Todo mundo procura, todo mundo me olha. Só olha, pareço artista de TV. Basta me desligar. Será que querem me desligar? Por que querem me desligar? Este cheiro no ar… fumaça, fogo, foguete… mas não cheira a queimado. Cheiro visguento, fedoroso, chilismento. Tá bom, tá bom, já tô indo. Engole sua fumaça sozinho! Não volto mais aqui, mesmo. Vou lá pro lado de lá que é muito melhor. Muito melhor! Bico de pato, tabaco em chumaço, trigueiro latindo, furunda no mato. Muito melhor.
— Pro lado de lá, mãe?
— É muito melhor.
— E eu?
— Me ajuda, filho. Por favor…
— Vou com você.
— Deixa, menino, deixa. Sua hora vai chegar.
— Eu quero ir…
— Não fica assim, não.
— Que qui eu faço?
— A vida…
— Sozinho, mãe?
— O sol.
— Do lado de lá?
— Filho, deixa…
— Do lado de lá…
Veio a noite e ela foi embora, pro lado de lá. Nem ensinou o caminho… Por que me levaram com eles? Fritubentos! Amarrado, assustado, molecote todo tremelicado. Nem um cobertor. Quanto frio! Fingidos fricotentos! Um chão poeirento e a parede toda marcada, que nojo! Nem palavra, nem cuidado. Só os outros cochichando:
— É ele.
— Sério?
— É.
— Só um moleque!
Moleque! Assassino, bandidinho, bandidão. Um olho alarmado, outro tranquilo; as mãos negras da sujeira. No fundo um sentado, gordo, medindo, coçando a careca. Gota de suor, palha de cadeira cutucando a orelha, um cuspe no chão.
— Deixa ele em paz.
— Mas é o…
— Em paz!
Nem um toque, espaço aberto. Na catacumba só rato; não se conta o que não se pensa, não se fixa assim o foco da estrela. De cada lado um olhar, amigo à direita, malévolo à esquerda. Só esquerda. O cheiro do mofo, uma olhadela à janela e só a dureza do chão para deitar.
— João!
Silêncio.
— João!
Sem resposta, enfureceu:
— Levanta daí, moleque.
Meio-dia ardendo, meio perdido, meio charmoso, tiveram de puxá-lo pelo chão.
— Ninguém vai te dá carinho aqui, não.
Na frente do delegado chorou.
— O que você tem a dizer?
Encolhido, desaprumado, encolheu-se ainda mais. Do outro lado quase pena:
— Não quer falar nada?
Até que lembrou:
— Tira esse olhar de bonzinho da cara, moleque!
No quase, segurou a bofetada já armada. A ética, a mídia… além do mais a mãe era dele. Arrumando o paletó voltou para a cadeira e acenou que o levassem embora. Esperou a porta fechar para resgatar uma garrafa.
— Como é que pode?
Deixou o gole surtir efeito antes de voltar aos bandidos. Às vezes era quase impossível manter a calma, mas era preciso, para acabar com eles. Prender, matar, trucidar! Mas não pode, não deve… é preciso evitar. Lei é lei: se não pode matar, então tranca. Eles lá e nós cá. Tá na Bíblia: inferno neles! O céu aos homens de boa vontade.
— Doutor, tem um cara aí querendo falar com o senhor.
— Quem é?
— Sei lá. Diz que é médico…
Médico? Fazer o quê aqui?
— Manda.
Entrou inquieto, um olhar morno a recebê-lo.
— Médico?
Percebeu a ironia. Tentou ao menos parecer ter certeza:
— Ele precisa se tratar.
— Tratar o quê?
Quis chamá-lo de ignorante, até por ter percebido que acabara de ser chamado assim, mas preferiu não.
— O senhor sabe, ele…
— Ele é louco, pirado!
Não era um diagnóstico, era uma condenação.
— Posso conversar com ele?
O delegado achou graça: para quê?
— Para saber do que ele é capaz basta ler o jornal, doutor.
— Por favor…
Teve pena: curar o garoto? Como existe gente ingênua! Por um instante, porém, chegou, ou melhor, quis até acreditar que ele pudesse melhorar, mesmo se arrepender… Já ía até chamando o carcereiro, mas se conteve. Sentiu uma coisa crescendo por dentro: uma certeza, com força de raiva, doída. Ou seria só raiva mesmo? Dolorida, machucada; muita, muita raiva! É essa gentinha que bota os bandidos na rua. Será possível que não percebem? Eles lá e nós cá. É o único jeito.
— Não.
— Mas…
Segurou o palavrão, o murro, o cuspe…o nojo:
— Não!
O doutor teve medo, partiu.
Voltou. Ainda o medo, mas escondido atrás de uma ordem judicial. Ao entregá-la sorriu, a coragem de um momento.
— Está no pátio…
No caminho, porém, o prazer foi passando, o momento se foi. Olhares ariscos, muita sujeira, olhares agressivos… Pensou em voltar atrás, não se entra no inferno para salvar o demônio. Mas fez força, concentrou-se: há esperança. Eu sou a esperança. Chegou:
— Eu sou amigo.
Nem mesmo um olhar.
— Eu sou AMIGO.
Agora sim, mas o olhar dizia que quem o olhava não era burro. Mudou de tática:
— Vou te tirar daqui.
Pouco caso.
— Você vai ficar bom.
Um chiclete.
— Vai poder voltar pra casa.
A lembrança da filha da vizinha. Morena…
Desisitu, um vinco no lábio. Andou até lá fora para uma nova discussão, palavra qualquer, com o delegado. Olho no olho, pareciam marido e mulher: um só, dividido. Foi-se, mas voltou. Dia sim, dia não. Medroso e corajoso, atento; sempre o vinco ali. No fundo parecia o chefe da cela:
— Por quê, garoto?
— O sol.
— Tá bom. Vai com Deus.
O dia estava claro, não deixava sombra pra raiva do delegado se esconder. Aperto apertado na mão, sorriso amarelo fingindo, não adiantou amainar a voz: raiva, muita raiva. Do fundo da cela, lá atrás, uma gargalhada:
— O sol, seu delegado!
Eu sorri. Na minha frente os dois, marido e mulher:
— Ele é perigoso.
— É, como nós.
Corri, como corri! Ele sorriu também, esqueceu o vinco, mas no fundo só a lama, da água só a lembrança dos remédios… lá do lado de lá não tem remédio pra dormir, pra acalmar, pra não pensar na árvore do hospital plantada lá em casa, mas nada da minha mãe… já vou, já vou, não demoro, caminho sempre há. Um pouco só de calma, de discernimento, do acolhimento da filha da vizinha quando olha por dentro, queimo inteiro por dentro! Quem sabe um remédio pra não mulher… Mas é isso! Só pode ser! A mulher do Dr. Amigo junta remédio tem mais de ano, doa pra morena que passa triste na rua de não cantar.
— Ei, morena! Basta cantar.
Lá do lado de lá é só cantar. Locomotiva, já chego, já, que a vida não quer esperar o ponto avesso de uma estranheza como só Nosso Senhor sabe mandar. Morro acima o Senhor pede que eu vá avistar a água do mar azul cheia de sol a me envolver, pura força maliciosa da vizinha plantada em árvore no jardim em cima do túmulo esperança, onde me deito pra poder voar, pra poder sonhar com a flor bordada na camisa de uma criança a rir no colo da mãe, chacoalhando um mais inesquecível ou invencível ou irascível fincado na gota de chuva amorosa que brotou do mar.
— Amar! Amar!
Amarga a tempestade de gotas precisas do menos desdentado do lado de lagarto invencível, pegajoso, pestilento, coroando as risadas dos plebeus azularando o cosmogonauta solar perdido no zoológico.
— A falar cada vida estrevancada na voz calma de sombra do sol que bindola e amedronta a ponta dormente do pistilo
preciso da palavra fertilizada pelo céu que avisa da fonte da vida guardada lá do lado de lá que é muito melhor para senhoras se regozijarem nos pingos de chuva que chegam às roupas azuis e amarelas penduradas no varal do além
— mar crispado por força e gratidão de ser que desditoso chefe amplifica ao suadouro enluarado mais ou mente a forca dos martírios numitindelo a mãe esfacelada por facacistas de coração riscado com a promessa distinta
de nunca esquecer deste mais brigarando um menos chincalhado de britadeiras brasileiras
bronzeadas sob o solar
só o solar
o solmar
— Tá chovendo, rapaz.
a sol
— Vem comigo.
sol
Gargalhavam, mas ela não ria mais.
— Vem.
Pelo braço, porta adentro; o espaço que ela guardava para si.
— Vai adotar?
Mais risadas, mas ela seguiu o caminho todo, surpresa consigo mesma: melhor mesmo deixá-lo na chuva e continuar a rir, amanhã nem sinal. Mas hoje…
—Você vai pegar uma gripe.
Ele a olhava em silêncio, meio perplexo, nada mais da salada de palavras de antes, feliz por inteiro. De tudo o que ouvira só quando ele gritou “amar”, foi o que bastou. Estranha palavra a se perder em meio à confusão, como se se escondesse, camuflasse entre as outras para não ser ouvida.
— Vai tomar um banho.
Tentava acertar os pensamentos, justificar-se: um homem perdido, não pode ficar assim.
— Pode usar a toalha azul.
Foi ao telefone, uma busca de ajuda: polícia? bombeiros? quem sabe algum serviço médico… mas não soube.
Preparou uma cama no sofá da sala, tudo o que podia, e um sanduíche de presunto, o que tinha.
Ao deitá-lo quis sorrir, mas não pôde. As risadas, as fofocas, seu marido… mais de ano…
— Você está bem?
— Sol.
Filho de alguém…
Logo ele dormia e lá fora a chuva deixou.
— Amanhã, quem sabe?
Cabeça no travesseiro se estranhou mais uma vez: um completo estranho… e nenhum medo. Riu-se, meio envergonhada, depois ficou séria:
— Gritou “amar”.
Um completo estranho… e dormiu também.
Seis horas e o sol. Chuva lavadeira, o dia chegou claro. Um pouco de frio e nem uma vontade de se mexer, mas inspira, que gota de manhã não se deixa escapar e fome de dia se segura e mantém. Ainda um pra se saciar.
Televisão, cruz na parede e a janela aberta pra despertar. Tanto tempo sem um despertar…
— Lembra o banheiro? A toalha azul?
Ah! Chove, chuva, chove… Pinga o arco-íris que é tão raro ter olhos pra ver. Luz e água, só luz e água, e muito mais…
— Sua roupa tá seca. Em cima da mesa.
Acolhimento. Só um pouquinho… Camisa amarela, calça azul; velha e limpa. Um pouco de sal, pitada de pimenta; simplicidade tá no toque. Adoro pimenta!
— Dona, queria agradecer…
Que cozido cheiroso!
— Cê num vai embora sem comer alguma coisa, não.
Como cheira bem!
— Imagina, dona. Minha mãe tá lá do lado de lá me esperando.
Cheira desconhecido, parece que cheira um aviso…
— Mãe não cansa. Senta aí.
Cheiro oferecido, alegre.
— Que qui tem na panela?
Ela riu.
— Cê vai ver…
Eu ri também.
— … cê vai ver…
E cheiro lá pode cercar, cuidar? Esquisitice de mulher, de mãe.
— Dona, cê tem filho?
Alho, farinha, gordura… água fervendo. Dali mesmo o cheiro? Pimenta! Que cheiro é esse, afinal?
—Bem eu queria…
Cheiro do… cheiro de… cheiro de amor?
— Sol?
Ela se enterneceu, gostou.
— Fala.
Sorriu.
— No lado de lá? Tem esse cheiro?
Riu.
— Que cheiro?
Ele ficou encabulado, baixou o rosto. Mas de repente não havia mais o que esconder:
— Sol!
Ela, surpresa, enrubesceu; de sol a sol um universo. Quis não fugir, responder como fizera antes, mas o corpo, digo, a voz gaguejou. Serviu-o, sentou-se, serviu-se também, mas só quando ele pediu mais conseguiu olhá-lo:
— Qual o seu nome?
Enrubesceu ele então, e gaguejou também, baixando o olhar por fim. Ela, ternura, ardor, tocou-o:
— Está tudo bem.
E assim comeram, e aí a hora de ir. Ele mencionou um toque, que ela procurou, mas o medo a confundia demais:
— Cuide-se bem.
Céu aberto, sol alto, um passo. Tempo de sobra, nuvens poucas, dois. Só um pouquinho de carinho, acolhimento só. Mais nenhum.
—Sol, posso ficar?
Queria tanto ouvir a pergunta, tanto… E a coragem? Mas era um estranho, um completo estranho. É claro que não. E a coragem?…
— Até amanhã…
Amanhã? Sim, até amanhã… mas e os vizinhos, e seu espaço, e o marido? Amanhã… bem sabia ela que amanhã nunca é hoje, é sempre depois.
— Olha…
Não conseguiu completar, olhou o chão. Ele sorriu triste, mas mesmo triste quis a alegria para se despedir:
— Muito obrigado. De verdade mesmo.
E se foi.
Ela o olhou e, enquanto olhava, sentiu um sentimento engraçado, estranho àquela certeza de que ele deveria ir. Sentindo-o com prazer, deixou que fosse a tomando, achando divertido o jeito que vinha surgindo, meio escondido, camuflado mesmo entre tantos outros sentimentos, como se não quisesse ser percebido. Quando quase se ria conheceu e mais do que rápido escondeu-o de novo. Isso lá era hora? Tanto tempo! Isso lá é hora…
E tudo num segundo, tudo em dois ou três passos, que assim ela decidiu deixar serem quatro, cinco… mas não mais. Noutro segundo, luz exígua, verdadeira, pescou seu amor lá do fundo e deixou que lhe enchesse de coragem.
— Moço!
Os vizinhos, os vizinhos também ouviram… Mas, ora, que se danem os vizinhos!
— Ei!
Virou-se e, talvez medroso, não confiou. Pensou num adeus, num sorriso, não quis acreditar.
— Até amanhã?
Balançou a cabeça com um sorriso envergonhado e começou a voltar. Ficou feliz, muito feliz. Chegou mesmo a pensar: será que encontrei? É aqui o lado de lá? Mas em tal alegria uma ponta de tristeza: amanhã. Demora amanhã?
Ela sorriu:
— Pode ficar.
E a ponta da tristeza se quietou. Afinal, se ali não era o lado de lá, o lado de lá é ali, amanhã.
Pois fiquei, até amanhã.