Por um curto período quando comecei a enricar,
fui assediado por pensamentos intrusivos que quase me escapavam da boca ― eram
as idéias-berro ―, quando descia no ponto final do trem e voltava para casa pelos
becos da favela, a cabeça punha-se a gritar de forma tão veemente que chegava a
temer que as palavras saíssem pelos olhos. ‘Vocês estão vendo, imbecis? Sabem
como se vira rico? É só aprender a extrair o ouro escondido na burrice do
pobre. Vocês entenderam? Estão vendo eu aqui, andando no meio de vocês?, pois
bem, daqui a pouco vou vir de helicóptero cagar em cima da cabeça dos otários.
Seus otários!’ Era horripilante ouvir-me culpando as vítimas, desprezando-as,
mesmo que em pensamento.
Entretanto, nunca me atrevi a dar livre
curso aos rompantes de fúria, sou antes de tudo um rapaz cordato e educado. Tinha
fé no sistema. Eu, Orlando, vim ao mundo com uma habilidade inata para decifrar
códigos, nada mais natural que ascendesse socialmente para a casta dos eleitos,
com sorte, ainda conseguiria trazer a família junto. Não que fosse cego para as
injustiças, percebi de imediato a grande massa de excluídos amontoados em extensas Trenchtowns
com cara de cenário Mad Max que circunda os resorts dos ricos. Nestes, o seleto
grupo dos imortais curte a sua aisance em sofisticados bairros-conceito cujo
urbanismo fluido combina os ambientes de floresta, jardim, clube e shopping
center. A chave do paraíso era (ao menos assim acreditava) o mérito pessoal, a
desigualdade então parecia-me feia, mas não injustificável.
Tudo ia bem, não fosse aquela conversa
esquisita com o meu amigo Carlinhos. Dali em diante não pude mais sossegar até
descobrir o segredo das vans laranja; com o acesso que a minha posição me
franqueava, foi relativamente fácil solucionar o mistério. Na verdade, se
mistério havia, talvez eu fosse um os poucos a estar por fora: era moeda
corrente, tanto do lado de fora, como dentro da redoma dos endinheirados. Um
segredinho sujo que mantinha aquela ordem de coisas em pé. Os metidos a bacanas
surgiram pra mim numa insuportável luz negra: a vida eterna deles era uma
gaiola de ouro, um pântano infinito de tédio e depressão no qual se afundariam,
não fosse o requinte de exploração que ainda tinham a cara de pau de redobrar
pra cima do povão.
Comprei a arma do Carlinhos. Havia contas
urgentes a acertar.
Parei no bar da esquina, o dono me estranhou
por ali tomando pinga e pagando rodada pra bebum. Não havia mais volta. Cambaleei
na direção de casa, meus irmãos e irmãs menores não estavam, festa-de-sei-lá-o-quê.
Só os velhos, dormindo. Diante da porta, perplexo: não consigo enfiar a chave
na fechadura. Ganho impulso, derrubo o madeirite que faz as vezes de porta.
Caio de pé no tapete da soleira. Ao cruzar a cozinha derrubo o maldito tacho
fazendo um barulho dos diabos. Que se dane, melhor que acordem. Paro pra
escutar, ninguém se mexe no quarto. Vou até eles, a dupla de monstros que me
botou no mundo. Abro a porta, minha mãe se remexe na cama. Um, dois, três tiros
no meu pai. Nem acorda, geme por alguns segundos. A cama se tingindo de sangue.
“Meu filho, que horror, por quê?”
“Por quê, mãe, você tem a coragem de me
perguntar por quê?”
“Seus olhos, você bebeu? Como pode me olhar
com tanto ódio?”
“E você, mãe? Como pode me olhar depois do
que você e... ele fizeram? Acharam que eu nunca ia descobrir? Ou talvez tenham
pensado que ia aceitar, afinal a vida é assim mesmo, né?”
“Abaixe essa arma, filho, me escute. Você
está pondo tudo a perder, nós fizemos tantos sacrifícios por você, pra que
pudesse...”
“Sim, vocês fizeram muito sacrifícios, mas
esse sacrifícios eu chamo de barbaridade, de crime. Vocês ofereceram meus
irmãos para aqueles... aqueles monstros da cidade rica! Mãe, onde estava com a
cabeça? Achou que eu ia aceitar isso e simplesmente seguir em frente?!”
“Filho, essa é uma coisa que acontece já
muito antes de você nascer! A gente não tinha escolha, ou acha que pra virar
rico basta ter um talento? Eles pedem mais.”
“Muito bem, a senhora disse que não tinha
escolha. Mas eu tinha! Devia ter me perguntado se eu aceitava os termos do
negócio. Tenho cara de quem gosta de saber que aqueles malditos abusam dos meus
irmãos?”
“A vida nem sempre é como a gente espera.”
“A morte também não, mãe!”
Dois tiros na cabeça dela. Na hora de
estourar meus próprios miolos, a arma travou.
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