domingo, 4 de dezembro de 2016

Super K (4)



Por um curto período quando comecei a enricar, fui assediado por pensamentos intrusivos que quase me escapavam da boca ― eram as idéias-berro ―, quando descia no ponto final do trem e voltava para casa pelos becos da favela, a cabeça punha-se a gritar de forma tão veemente que chegava a temer que as palavras saíssem pelos olhos. ‘Vocês estão vendo, imbecis? Sabem como se vira rico? É só aprender a extrair o ouro escondido na burrice do pobre. Vocês entenderam? Estão vendo eu aqui, andando no meio de vocês?, pois bem, daqui a pouco vou vir de helicóptero cagar em cima da cabeça dos otários. Seus otários!’ Era horripilante ouvir-me culpando as vítimas, desprezando-as, mesmo que em pensamento.
Entretanto, nunca me atrevi a dar livre curso aos rompantes de fúria, sou antes de tudo um rapaz cordato e educado. Tinha fé no sistema. Eu, Orlando, vim ao mundo com uma habilidade inata para decifrar códigos, nada mais natural que ascendesse socialmente para a casta dos eleitos, com sorte, ainda conseguiria trazer a família junto. Não que fosse cego para as injustiças, percebi de imediato a grande massa de excluídos amontoados em extensas Trenchtowns com cara de cenário Mad Max que circunda os resorts dos ricos. Nestes, o seleto grupo dos imortais curte a sua aisance em sofisticados bairros-conceito cujo urbanismo fluido combina os ambientes de floresta, jardim, clube e shopping center. A chave do paraíso era (ao menos assim acreditava) o mérito pessoal, a desigualdade então parecia-me feia, mas não injustificável.
Tudo ia bem, não fosse aquela conversa esquisita com o meu amigo Carlinhos. Dali em diante não pude mais sossegar até descobrir o segredo das vans laranja; com o acesso que a minha posição me franqueava, foi relativamente fácil solucionar o mistério. Na verdade, se mistério havia, talvez eu fosse um os poucos a estar por fora: era moeda corrente, tanto do lado de fora, como dentro da redoma dos endinheirados. Um segredinho sujo que mantinha aquela ordem de coisas em pé. Os metidos a bacanas surgiram pra mim numa insuportável luz negra: a vida eterna deles era uma gaiola de ouro, um pântano infinito de tédio e depressão no qual se afundariam, não fosse o requinte de exploração que ainda tinham a cara de pau de redobrar pra cima do povão.
Comprei a arma do Carlinhos. Havia contas urgentes a acertar.
Parei no bar da esquina, o dono me estranhou por ali tomando pinga e pagando rodada pra bebum. Não havia mais volta. Cambaleei na direção de casa, meus irmãos e irmãs menores não estavam, festa-de-sei-lá-o-quê. Só os velhos, dormindo. Diante da porta, perplexo: não consigo enfiar a chave na fechadura. Ganho impulso, derrubo o madeirite que faz as vezes de porta. Caio de pé no tapete da soleira. Ao cruzar a cozinha derrubo o maldito tacho fazendo um barulho dos diabos. Que se dane, melhor que acordem. Paro pra escutar, ninguém se mexe no quarto. Vou até eles, a dupla de monstros que me botou no mundo. Abro a porta, minha mãe se remexe na cama. Um, dois, três tiros no meu pai. Nem acorda, geme por alguns segundos. A cama se tingindo de sangue.
“Meu filho, que horror, por quê?”
“Por quê, mãe, você tem a coragem de me perguntar por quê?”
“Seus olhos, você bebeu? Como pode me olhar com tanto ódio?”
“E você, mãe? Como pode me olhar depois do que você e... ele fizeram? Acharam que eu nunca ia descobrir? Ou talvez tenham pensado que ia aceitar, afinal a vida é assim mesmo, né?”
“Abaixe essa arma, filho, me escute. Você está pondo tudo a perder, nós fizemos tantos sacrifícios por você, pra que pudesse...”
“Sim, vocês fizeram muito sacrifícios, mas esse sacrifícios eu chamo de barbaridade, de crime. Vocês ofereceram meus irmãos para aqueles... aqueles monstros da cidade rica! Mãe, onde estava com a cabeça? Achou que eu ia aceitar isso e simplesmente seguir em frente?!”
“Filho, essa é uma coisa que acontece já muito antes de você nascer! A gente não tinha escolha, ou acha que pra virar rico basta ter um talento? Eles pedem mais.”
“Muito bem, a senhora disse que não tinha escolha. Mas eu tinha! Devia ter me perguntado se eu aceitava os termos do negócio. Tenho cara de quem gosta de saber que aqueles malditos abusam dos meus irmãos?”
“A vida nem sempre é como a gente espera.”
“A morte também não, mãe!”
Dois tiros na cabeça dela. Na hora de estourar meus próprios miolos, a arma travou.



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