Ignoro se ele era
alagoano ou mais um dos muitos imigrantes portugueses estabelecidos em Maceió
que enriqueciam no ramo de tecidos, passamanaria, secos e molhados, e
terminavam comendadores antes de se retirar para a terrinha. Porém, no bangalô
da rua do Farol, na exuberância equatorial do jardim, caminhando pela sombra de
árvores tronchas com o mormaço equatorial, havia algo que era a fusão
improfundável dos mais faustosos elementos nativos com uma substância remota ―
a esposa do Sezefredo Taveira.
O passado é
esse animal que nunca termina de agonizar, até hoje me maltrata não ter retido
o nome daquela deusa, a jovem senhora que a cidade, uníssona, proclamava
adúltera. A mulher do Sezefredo. As coisas sem forma são as mais pronunciadas
por crianças: recordo-me especialmente de seus olhos garços, cintilando infixos
entre esverdeados e azuis, uma cor na fronteira de céu e mar. Toda vestida de
branco, ela se aproximava da varanda do sobrado e seu olhar seguia o trajeto do
amante que vinha caminhando pela calçada defronte, pausado, elegante,
insaciavelmente feliz.
Quando ele
passava diante da varanda, ela lhe sorria, e nesse sorriso, que tornava mais oscilante
a cor dos seus olhos, fremia um universo de desconhecidas volúpias, toda a
glória da carne à espera. Possivelmente, a memória, com suas tintas falsárias,
pintou-a para mim de branco, envolta em sedas e tafetás na antecipação do
êxtase vespertino numa alcova misteriosa. A cama larga, de patente, haveria de
ter travesseiros altos e rendados e castos lençóis de linho cheirando a
alfazema, e não faltaria mesmo um mosquiteiro para resguardar o idílio da
investida dos piuns vindos dos mangues e sarjetas.
Inclinando
levemente a aba do chapéu chile, roupa de imaculado linho cru e sapatos de duas
cores, o amante dobrava a esquina saudando-a uma última vez. Ela se retirava da
janela (e da vista da molecada escondida e à espreita), ia dedicar-se aos
afazeres domésticos, cuidar do de-comer do marido manso; sumia no interior do
sobrado cheio de vasos de flores e bibelôs sobre o piano.
Ninguém perdoava
― embora muitos, silenciosamente, compreendessem ― Sezefredo Taveira por
dividir a beleza deslumbrante da mulher, usufruindo a meias (quiçá a quintas) o
lânguido pestanejar daqueles olhos garços. Não ousava separar-se dela ou
matá-la, apesar da tradição local assegurar aos machos traídos em seus brios pronta
absolvição no tribunal do júri, caso resolvessem, como então se dizia, “lavar a
honra com sangue”.
Nisto residia
o mais arcano aspecto que o mundo confrontava ao olhar e à fantasia de menino:
mal podia imaginar como era possível aos adultos viverem na confusa amálgama de
putaria e moralismo em que, efetivamente, vivem. Mas é inegável que o arranjo do
casal a três bafejou aqueles anos distantes com a doce maciez da infância dos
curumins; a mansão Taveira, crivada de sacadas, cegas janelas e vitrais
coloridos, em sua rotina devassamente plácida, no balançar das copas das
mangueiras e cajueiros do seu jardim com a viração no fecho da tarde, foi assim
me ensinando paciente cada rococó da inesperada arquitetura do desejo.
E foram
aquelas duas palavras, tão imbuídas para mim de misturados sentidos, que
tiveram o poder de extorquir a única opinião política que cheguei a ouvir de
meu pai. O grande silêncio gravado na parede da memória, a mudez rombuda e
obstinada de papai. Foi na época de uma grande eleição, a nossa casa,
normalmente pacata, estava cheia da parentada vinda do sertão brabo; alguém
comentou que Sezefredo Taveira declarara publicamente seu apoio à candidatura
Góis Monteiro.
― Quem, o
corno? Belo incentivo o Silvestre teve, um monte de bacharelismo em papel de
jornal... Parolagem!
― Se ao menos
ele botar comida nos comícios do Góis Monteiro, já é alguma coisa. Mas rapaz, é
verdade verdadeira, fato sabido e havido por certo, a bandalha no palacete do
Comendador come solta e sossegada?
― Dizem que
ele gosta demais da ingrata; tem o coração mole, é o que é. E depois, fazer o
quê, se nos particulares do amor, tudo que não pode, manda?
― Ah, mas não
se preocupem, cornos somos todos ― fosse pelo teor da assertiva, fosse por
papai ser orador bissexto, fez-se pesado silêncio ― Não se iludam: nas
eleições, todo mundo é corno.
― Oxe, mas que
conversa é essa, macho velho? E como é isso?
― É simples,
na política o chifrudo é o povo, sempre o último a saber.
Um comentário:
Vai que vai longe essa história. ..rsrs
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