Tomada por um branco total
radiante, na posse precária de faculdades mentais em pleno apagão, dirigiu-se a
ele caminhando firme para disfarçar o desconcerto. Anna fazia as desnecessárias
apresentações quando aconteceu a bizarrice: uma moça que estava no saguão
surtou e se atirou aos pés do Caetano, beijando-os, banhada em lágrimas. Foi aquele
constrange geral, teoricamente, ali não devia ter ‘bicos’. Ninguém sabia de
onde ela tinha vindo. Alda agradeceu ao Pai do Céu que alguém pagou o mico,
porque a moça fez exatamente o que ela mesma esteve prestes a fazer.
―
Caetano... Caetano...
―
Fale, Alda, que foi que te deu?
―
É que, eu tô aqui falando merda sem parar, tô tendo um ataque de falação e não
consigo conversar com você.
―
Normal, isso também me aconteceu quando entrevistei o Mick Jaegger.
―
Tudo que eu não queria é que você me visse como a velha louca e esquisita que
sou... e agora me pego tagarelando sem parar do canteiro de ervas de poder lá da
minha casa!
―
Olhe, mais importante do que tudo isso é a fruição da imensa grandeza de sua
música, suas parcerias, a generosidade deste show... a grande beleza é coisa
que paira acima da guerra de idéias e egos.
―
Ah, como gostaria que o Beleléu estivesse aqui...
―
Hum, o Nego Dito, é verdade. Personalidade artística rebelde, sempre me
impressionou esse modelo. O samba, por intermédio de seus gênios, é a afirmação
de um poder de outra natureza.
―
Disseram que você não vinha, que tava viajando...
―
Estava sim, cheguei agorinha. Sempre que dá, passo na Bahia as duas festas do 2
de fevereiro: o presente de Iemanjá no Rio Vermelho, e o encerramento da festa
da Purificação em Santo Amaro. Minha
casa é no Rio Vermelho, conhece não?, da varanda dá para ver os barcos que se
arrumam em frente à igreja de Santana e partem para o local em alto-mar onde o
presente será jogado, não sem antes virem margeando a costa para virarem em
ângulo reto em direção ao horizonte; digo vêm, porque é justamente à frente da
minha varanda que eles mudam de rumo. Antigamente eram sobretudo velas que
coalhavam o mar, hoje são lanchas e escunas, todas brancas, a exceção sendo a
grande embarcação cinzenta da Capitania dos Portos. Fazendo espuma e deixando
rastro, todas seguem o saveirinho que leva o presente. A igreja da Purificação em Santo Amaro é uma jóia
barroca, adoro os azulejos, o teto pintado, as pessoas religiosas do Recôncavo.
Mas fico intoxicado de beleza é na praça: o parque de diversões cheio de
crianças, o chafariz apinhado de grupos de samba de roda, de burrinha, de
bumba-meu-boi, sobretudo as pessoas conversando nos bancos, nos passeios, nas
alamedas. Minha gente.
―
Caê do céu, você fala a língua dos anjos, abre a boca e as palavras vêm
direitinho cair no lugar certo. Isso é tão difícil, criatura!
―
Deixe de bestagem, menina, nem tudo que reluz é puro, nem tudo que é ouro
brilha, mas tudo que brilha pode cegar.
―
Viu só? Já tenho vontade de anotar o que cê disse e fazer uma música.
―
Então, quando alguém já tem esse privilégio de tocar um instrumento, vai querer
mais o quê? Acho que você pede da arte o que ela não pode lhe dar, considere, a
poesia se paga com a vida, e nada mais. Glória, aclamação, reconhecimento, são
bilhetes da loteria dos trouxas, já vivi demais para acreditar em falsos
brilhantes.
―
Ai, mas será que não existe alguma outra coisa? Vou ficar, assim, sempre de alma
arregaçada, com os nervos feito fio desencapado, sempre o mesmo coração
cata-vento girando no vendaval?
―
A beleza é um país estrangeiro, no qual reconhecemos, tão logo o visitamos pela
primeira vez, a pátria perdida de onde nunca deveríamos ter saído. Isto para
mim é a Bahia, princípio e fim de tudo que faço.
―
Sim, você tem a Bahia, sempre vai ter. Mas, e eu, que saí novinha do Mato
Grosso? Não tenho pra onde voltar, sou urbana, confusa como a vida que levo.
―
O importante é saber se situar dentro de uma linha evolutiva. Como eu: o
tropicalismo é a conseqüência necessária da música que vem de Caymmi e passa
por João Gilberto, na minha imodesta opinião, é o próprio processo de
internacionalização da música brasileira. Sossegue, você também tem seu lugar
num certo desenvolvimento destas linhas de força.
―
É tão duro poetar com os boletos atrasados, os cachês de fome, a casa cheia de
filhos, os perhaps da vidinha.
―
Esqueça, se você não tem o Recôncavo, tem São Paulo: prédios feios e crack,
violência e vulgaridade. Sua única amiga é a música. Um adulto criativo é uma
criança que sobreviveu. Não devem ser muitas as que conseguem, a julgar pelo
escasso número de adultos no mundo. A vida não é para qualquer um (a arte sim),
ela é um rio largo, informe, e sempre pode acontecer de nos tornarmos quem mais
temíamos.
―
Só uma última coisinha, sei que cê não pode ficar muito, como é que você faz
isso?
―
Isso, o quê?
―
Esse truque: seus pés não tocam o chão, Caetano.
―
Ah, é uma coisa que aprendi há muito tempo, vivo a dois centímetros do chão
real das coisas. Levitação discreta. Permite que eu acompanhe a topografia da
realidade, mas com um certo descolamento crítico, um surf ontológico. Ninguém
percebe, aposto com você que a moça que acabou de beijar meus pés não se ligou.
Um comentário:
Que Caetaneo interessante esse do seu texto.
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