A
vida passou de morosa, a difícil como nunca. Pensavam nos outros povoados ao
norte mais afortunados, construídos em vales floridos, cheios de árvores
frutíferas perfumando o ar, e riachos de águas frias e límpidas. Começaram a se
dar conta de que viviam numa planície estreita e cercada de montanhas
escarpadas, varrida por um vento quente que lhes soprava poeira nos olhos.
Encontrar água virou uma batalha diária, porque os poços, até os mais fundos,
quase sempre estavam secos. Havia um rio, mas os aldeões precisavam enfrentar
uma caminhada de meio dia para chegar lá, e mesmo assim as águas corriam
lamacentas o ano todo. Efeito da feroz estiagem, os canais de irrigação
pareciam trilhas pedregosas sem sentido; eles trabalhavam duas vezes mais para
conseguir metade do necessário para sobreviver.
Por
que você não compra um carro?
Porque
teria que comprar logo dois.
Ah,
ia esquecendo dessa sua mania duplicadora... É verdade o que dizem?, que há uma
réplica de cada objeto em sua casa?
Na
verdade possuo um exemplar repetido de tudo em minha vida: dois cães, duas
casas, dois infartes, etc., digo principalmente num sentido mental.
Acontece
que um procedimento assim, sem falar no TOC colecionista, superpovoa a
realidade com espelhos, sexualiza o mundo no limite do insuportável.
Sombras
são mais confiáveis que espelhos, pelo menos não se põem a multiplicar, inverter
as imagens! São os nossos dublês mais simples, veja, tudo pede seu ersatz: o
outro nos sacode do sonho da identidade.
O
verdadeiro nó da questão reside na relação íntima entre dois termos, e não nas
conveniências ou inconveniências que cercam toda relação. De toda maneira, recaímos
no infinito ao dobrar a aposta: um substituto leva ao outro...
Ah,
sim, claro... os incas já conheciam isto, faziam calculadoras sofisticadas,
começa com o zero e o um (sempre a dualidade fundamental), então, é só
acrescentar novos elementos à seqüência somando os dois anteriores. Deste modo se
constroem as catedrais, crescem as ninhadas de coelhos, as pirâmides, os mercados
financeiros, as conchas, a disposição dos galhos na árvore, o arranjo das
folhas no coração da alcachofra, ou o desenrolar das samambaias. Um simples
deslocar da série, a partir da oscilação entre nada e alguma coisa.
Bem,
quando temos um princípio, passamos a vê-lo em toda parte, não?
Aí
é que está, não inteiramente. Passei anos colecionando os duos à minha volta: as
duas igrejas, a estrada que se divide, a dupla vida de homens, bichos e
plantas; se encontrava um assassino entre os meus vizinhos, logo aparecia um blasfemo,
aos santos correspondiam os orates, e assim por diante. Até que surgiu esse
obelisco atormentador... é um abismo à luz do dia, algo capaz de ir de zero a
tudo, capaz de roer o oco do coletivo: um acontecimento sem sombra. Você não
percebe a monstruosidade do conjunto vazio? A essa caixa que apareceu, não
responde nada em lugar nenhum!
Também
não é pra tanto, cara, não entendo como é que um acontecimento tamanhamente besta
pode tirar do sério tanta gente boa. Que diferença faz uma coisa que não faz
diferença nenhuma?
Se
quiser ficar, fique, te dei a letra, por falta de aviso não foi. Pra mim, deu,
vou nessa que é bom à beça.
Foi
o primeiro a se mudar. Posteriormente, em conseqüência de fatos que serão
relatados adiante, outros moradores foram abandonando o vilarejo; neste período,
inclusive, as pessoas já não se mudavam, simplesmente desapareciam. Ninguém
mais ouvia falar delas, era como se tivessem sumido do mapa. Relatos de ousada
imaginação falavam de anônimos sendo acordados no meio da noite por milícias,
espancados, algemados e conduzidos para centros comerciais. Enfim, naquele
contexto, crenças estúpidas achavam guarida em cérebros sadios; qualquer um,
mesmo sendo rigoroso, racional e inteligente, podia errar gravemente na
avaliação da conjuntura.
Um comentário:
Vai todo mundo pra caixa!
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