“O quadro inicial se esclarece. Estaria completamente morto para a beleza aquele que não se enamorasse da divina Anunziatta uma vez que a visse, e o novo Duque da República de Veneza, apesar da provecta idade, não ficou imune à aura virginal que dela emanava. Anunziatta vinha a ser filha de um nobre de antiga cepa, Oreste della Quercia, com várias gerações da família inscritas no Libro d'Oro, no qual se registravam todos os nomes da nobreza veneziana. As bodas foram realizadas com a pompa do patriciado e a pressa do ardente desejo que espicaçava Tonino Palocci, o salvador da república, o conde eleito Duque. São eles, Doge e Dogaressa, que o quadro a óleo retrata.
Fechava-se deste modo a teia de poder e influência que o talento de bastidores de Giuseppe Dirceo tecera: tornara-se fiador do líder máximo e, de quebra, apadrinhara uma aliança matrimonial com o influente círculo dos corretores da bolsa de Rialto. Fiel ao seu estilo de perfil baixo, o líder do influente Conselho dos Quarenta assistia ao Dia da Ascensão, que celebra a união de Veneza com o mar, de um balcão da Loggia do Palazzo Ducale. Na laguna à sua frente, tendo a Isola de Giudecca a limitar sua visão do mar para além do Gran Canale, assistia às manobras da galera oficial do estado, o Bucentoro.
O sol cadente resplandecia em brunidos tons de amarelo, vermelho e fúcsia, quando colossais massas de nuvens cobriram repentinamente os céus; o rugido apavorante dos trovões atroava, raios de prata iluminavam os ares, as águas, encapeladas por ondas gigantescas, balançavam o Bucentoro perigosamente aterrorizando a tripulação e o povo no porto. No trirreme de fundo chato, inapropriado para manobrar em mar tão agitado, viajavam 168 marinheiros, 90 autoridades da República sob um baldaquino de veludo vermelho e, no trono da popa, o Duque e sua esposa. Dir-se-ia que Netuno recusava o anel de ouro atirado às águas pelo Doge no ritual que marcava o dia da sua consagração.
Partindo do mole do porto de San Nicolò, um destemido gondoleiro faz-se ao mar manejando destramente sua pequena embarcação na tempestade, salvando Palocci e Anunziatta do naufrágio iminente. Era o belo Luigi Calamaro, vulgo Seppiolina. A multidão no cais carrega os três até à Piazzetta em delírio, pedindo aos brados que a Seppiolina fosse conferida a honra de ser o ‘Turco’ na festa do Giovedi Grasso. Oculto pela treliça de madeira de um muxarabi, Dirceo, que não perdera nenhum lance dos dramáticos acontecimentos, decide cooptar o novo herói popular, principalmente ao perceber o jovem magnetizado pela inebriante duquesa.
Chega o Carnaval, todos aguardam o ‘volo del Turco’, em que Seppiolina descerá uma vertiginosa tirolesa que se arma no campanário da basílica e cujo fio termina no balcão em inigualável estilo gótico da Dogana. Lá, em troca do ramalhete que traz em mãos, será recebido com honras e recompensado da proeza com régia quantia em ouro e ducados. Mas o boquirroto gondoleiro, alçado à condição de celebridade, não largara o hábito de se embebedar nas tascas e tabernas: numa destas esbórnias, um agente do serviço secreto de Dirceo aprende que ele reconhecera na duquesa sua meia-irmã, da qual fora separado em criança.
A história fazia sentido, era voz corrente que Oreste della Quercia gerara um filho bastardo, criado junto com filha legitima até à idade de dez anos, quando a Signora della Quercia descobriu tudo e expulsou a empregada e a criança de casa. Seria um escândalo se o novo queridinho das massas fizesse um discurso acusador aproveitando o palanque festivo. Assim que Seppiolina aterrissa e recebe sua recompensa, o consigliere o leva para conhecer o palácio, a um tempo, residência ducal e centro administrativo e judiciário da curiosa república, mistura de aristocracia e democracia.
Ciceroneado por Beppe Dirceo, Seppiolina se deixava levar como que enfeitiçado: afrescos, marinhas, esculturas pagãs, frisos de templos, espólios de nações bárbaras, sucediam-se numa panóplia infinita ao longo das alas do Palazzo Ducale, que, apesar da imponente fachada voltada para a laguna do Gran Canale, possui uma arquitetura interna extremamente leve e arejada. Mesmo para um veneziano nato, era arte demais.
Circulavam então versões maldosas de que o velho Doge tinha já muitas dificuldades em acordar suas forças viris; falava-se à boca pequena de nefandos sabás, no qual chegaria a correr sangue de inocentes, realizados nas câmaras secretas da Dogana, apenas para espevitar fugazmente o ‘nervo’ micróbio do macróbio guerreiro. Num aposento de altas portas folhadas a ouro, adamascado em tons escuros, maciços lambris, movelaria exótica e uma imensa cama de dossel de veludo lilás e lençóis de seda chinesa, Seppiolina soube que a verdade ia além do imaginável.
Ali, nobres e mercadores nacionais, embaixadores estrangeiros e tutti quanti, faziam fila para desfrutar do corpo angelical de Anunziatta; a pobre criança acreditava assim honestamente servir a seu país, enquanto o caviloso Dirceo celebrava seus acordos ― e o Duque se comprazia destas abomináveis orgias e profanações ao seu próprio leito conjugal! Luigi Calamaro, conhecido como Seppiolina, descobriu que idolatrara uma entidade bela, mas efêmera, a sua amada Serenissima Repubblica incorrera na mesma desmedida que havia destruído o seu modelo e limite, Atenas.
Enquanto ele se refocilava no leito de Anunziatta, o povo cantava nas ruas em dialeto vêneto: ‘Il Dose Palocci/ della bella mujer/ I altri la gode/ é lui la mantien!’*
Naquela noite dançaram a Bunga-Bunga."
***
“Nós tínhamos poucas diversões e passeios. Fui criada na primeira metade do século vinte, uma época em que o lazer era para poucos, e muito pouco para os pobres. Fazíamos muita economia porque havia um desejo mudo, mas sempre subentendido, de melhorar de vida. Festa de pobre, ao menos de pobres como nós, significava comilança.
“Nós tínhamos poucas diversões e passeios. Fui criada na primeira metade do século vinte, uma época em que o lazer era para poucos, e muito pouco para os pobres. Fazíamos muita economia porque havia um desejo mudo, mas sempre subentendido, de melhorar de vida. Festa de pobre, ao menos de pobres como nós, significava comilança.
Tenho vivas saudades dos piqueniques que fazíamos nas margens do Córrego da Água Rasa; também era comum pegar carona na camionete de frango e ir com merenda e parentada mais longe, até ao Tamanduateí.
Os rios de São Paulo são invertidos, isto é, correm para o interior em vez de irem para o mar. O Tamanduateí, por exemplo, desembocava no Tietê, mais ou menos onde hoje é a Avenida do Estado; já o Tamanduateí recebia as águas do antigo rio Anhangabaú lá onde a Avenida São João encontra o vale do Anhangabaú.
O vale sobrou, o rio não. Enterraram muito córrego, retificaram e desviaram muito rio nesta cidade construída em cima de várzeas. Foi numa destas várzeas, nas barrancas do Córrego dos Meninos, onde tudo aconteceu.
Eu não deveria ter feito dez anos e me encarregaram de olhar por Neuda, a caçulinha tão mimada por papai e mamãe. Neuda está com três anos, um verdadeiro azougue de menina a quem mamãe nunca disse não. Foi quando descobri a maldade, ao menos aquela que cabe no coração de uma criança.
Ela foge de mim, apressando o passo ao virar um capoeirão que ocultava a descida para a margem do riozinho. Corro gritando, mandando que ela esperasse por mim; na saída dos tufos de capim-gordura, paro no topo do barranco. Neuda me olha com uma expressão estranha no rostinho sardento.
Não, não é possível... não consigo ver o que acontece então! Quando volto a mim, Neuda rolou morro abaixo e está se afogando. Há gritos. Meu pai se atira nas águas para pegá-la, minha mãe corre para a margem. Meus irmãos chegam.
Daí mamãe me pega, a fisionomia retorcida, os cabelos revoltos ao vento da tarde quente de novembro. Ela berra comigo. A princípio não escuto, mas aos poucos as palavras me atingem como lâminas em brasa, ela me aperta os braços e grita na minha cara: ‘Que é que você fez? Por que você empurrou sua irmã?’ Tento responder: ‘Não fui eu mamãe, não fui eu, juro!’ O choro me sufoca.
Neuda teve muitos problemas a vida toda. Bebia demais, aprontava demais. Sempre cuidei dela, como também cuidei de mamãe e papai até morrer. Passei a minha vida querendo provar que não tinha feito aquilo, que podiam confiar em mim, que sempre fui boa. Servi aos outros porque achei que não prestava para outra coisa.
Estou cada vez mais certa de que meus pais deram aquele filho que nasceu antes da Neuda para a adoção. Só isso pode explicar as trevas que envolvem a minha infância depois disso, só assim para entender os mimos e quindins com que criaram a filha que veio depois. Não acho outra explicação para a raiva que havia naquele olhar de minha mãe.”
***
Quanta ironia. Quanto mais vivemos, mais voltamos para a infância. O professor não consegue abandonar seu amor incestuoso pela irmã gêmea, Maria da Anunciação. Nunca se conformou de a ver casada com um homem bem mais velho, nunca deixou que outra mulher ocupasse o lugar dela, a mulher com quem se iniciou sexualmente e a quem nunca conseguiu renunciar completamente.
Quanta ironia. Quanto mais vivemos, mais voltamos para a infância. O professor não consegue abandonar seu amor incestuoso pela irmã gêmea, Maria da Anunciação. Nunca se conformou de a ver casada com um homem bem mais velho, nunca deixou que outra mulher ocupasse o lugar dela, a mulher com quem se iniciou sexualmente e a quem nunca conseguiu renunciar completamente.
Já a senhora à direita do meu leito tem um problema também infantil, mas com uma volta a mais no parafuso. Ela não pode saber o que realmente aconteceu naquele dia. Ninguém pode. Por baixo da versão não há fato, apenas outras versões. É quase impossível sermos irmãos, queremos o amor de papai e mamãe só para nós. Que ela não tenha ido além da narração familiar foi um tremendo desperdício de vida.
Fui concebido por meio de uma técnica de fertilização assistida. O médico responsável encontra-se foragido da justiça acusado de inúmeros crimes. Nunca consegui contar aos meus pais que não sou filho deles, ao menos não em um sentido biológico. O tal especialista em reprodução utilizou material genético de outros, fez experiências comigo.
Há outras 44 crianças de várias idades em coma com a Doença do Sonho ao redor do mundo, todas foram geradas com a técnica de inoculação intracitoplasmática. Resumindo: injeta-se uma célula na outra furando-a com uma agulha muito fina. Isto fica bem bonito em telas de alta definição.
Embora este não seja o linguajar que se espera de uma criança da minha idade, devo lhes dizer que, neste momento, já existem governos e empresas que estão manipulando o genoma humano. Continuem sonhando.
(* Em tradução pudica: ‘O Doge Palocci/da bela mulher/os outros a aproveitam/e ele a mantém!’)
Um comentário:
Gostei demais! O primeiro é hilário e os três mantém um dialogo interessante.
Abs
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