quinta-feira, 14 de abril de 2011

Os Fukushima - parte 1


Supunhetemos
que de repentelho
o mundo se escabaçasse,
o que siririca de nós?
Nádegas, nádegas, nádegas...


Nos últimos tempos, essa cantilena, vinda de um ponto longínquo da infância de Hideo, irrompia-lhe no pensamento a qualquer hora do dia ou da noite; às vezes trauteava-a distraidamente em momentos vagos, até que se desse conta de que o fazia e parasse encabulado. Não tinha muitos ultimamente, os tais momentos ociosos, que lá isso não podia se dar a muitos desfrutes reflexivos; era uma situação muito delicada no mundo inteiro, e ele, na condição de homem de ação, tinha sido chamado a assumir uma liderança que lhe fora negada nos tempos da bonança. Se no plano coletivo a conjuntura era catastrófica, pessoalmente, Hideo experimentava, aos cinqüenta e seis anos de idade, uma inédita sensação de realização e plenitude: estava tão ciente como os outros de que ia morrer no cataclismo que se avizinhava, mas o reconhecimento tardio lavava-lhe a alma.

Tudo começara há quase um ano, quando a notícia começou a escapar dos meios científicos; a princípio, houve discórdias na confirmação independente dos dados, até que finalmente a comunidade dos astrônomos entrou em acordo que um calhau de cem quilômetros de diâmetro estava em rota de colisão com a Terra. Logo ficou óbvio que a espécie humana não sobreviveria ao impacto: o trambolho era dez vezes maior do que aquele que havia exterminado os dinossauros. O SKA, Square Kilometer Array, maior radiotelescópio do mundo, situado na África do Sul e o LINEAR, Lincoln Near-Earth Asteroid Research, consórcio da Força Aérea Americana, da Nasa e do Laboratório Lincoln do MIT, confirmavam que duas pedras gigantescas haviam se chocado no cinturão de asteróides que fica entre Marte e Júpiter, desprendendo um bólido batizado sarcasticamente com o nome do deus Maia dos sacrifícios humanos: 2012 Buluc Chabtam.

Hideo Fukushima meditava sobre a balbúrdia que era finar-se o mundo de maneira tão sem sentido, uma desorientação em escala planetária se instalara: as instituições, os freios éticos, as religiões, tudo despencara num fenômeno global e simultâneo em que se assistiu ao derretimento dos laços sociais no decorrer de poucas semanas. O Apocalipse com hora marcada da ciência suplantava os pânicos milenaristas das profecias, mandando o esmalte civilizatório para a casa do chapéu; as pessoas abandonavam suas casas, suas famílias, as cidades ficaram desertas, bandos erráticos em busca de alimento tornaram-se a principal ameaça. A paralisação da infraestrutura energética levou à suspensão geral do transporte e das comunicações, o mundo voltava a ser local. Toda a cultura, tecnologia e desenvolvimento se mostraram impotentes para deter o emissário cego da morte e do caos; seria castigo divino por conta da pílula e do casamento gay, os séculos de queima de hereges e combustíveis fósseis, ou apenas a indiferença moral da natureza?

Em tempos tão confusos, o clã dos Fukushima ocupava um território privilegiado no cinturão verde da Grande São Paulo e dispunha da tecnologia adequada para subsistir, já que havia se estabelecido entre os principais fornecedores da região horti-fruti-fungi-flori-granjeira de Salesópolis. A extensa rede fluvial, as matas de proteção a mananciais, a experiência com agricultura orgânica e a disponibilidade de enxofre, carvão e salitre ― ingredientes da pólvora ―, fazia daquela uma região auto-suficiente, desde que ali houvesse uma comunidade disposta a defendê-la. Hideo foi o primeiro a perceber isto e a convencer todos de que se se espalhassem, nada mais os juntaria; morrer por morrer, quanto mais tarde, melhor, e, permanecendo juntos, não estariam à mercê dos roubos, assassinatos e estupros das gangues nômades.

A mãe e os cinco tios, que o haviam preterido na sucessão da empresa familiar que fundaram, aplaudiam-no agora que, por um golpe do destino, ele tomava as rédeas e mantinha a todos unidos em torno de um objetivo comum: sobreviver enquanto desse. Como líder, sabia intuitivamente que a saúde de um grupo depende do bem estar de todos e cada um e por isso é que andava tão preocupado com as atitudes de Iuri; o sobrinho era o geninho da informática, passava o dia conectando-se aos fiapos de conexão que alguns abnegados ainda conseguiam manter na internet, mas o emburramento sorumbático do garoto ficava cada vez mais evidente. Era o tio querido do garoto, que o escolhera como padrinho da perda da virgindade; Hideo levou-o à zona e o apresentou a cada uma das putas pelo nome, como cavalheiro que era.

Um comentário:

angela disse...

Mais um conto interessante que vou ficar pendurada aguardando a continuidade.