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― Mas... que cantoria de puta madre é esta agora? ― Xabier Lizardi estava incumbido de uma tarefa diferente das habituais, diurna e extramuros, o que o irritava mais ainda. Não havia como transladar o velho daquela cama sem chamar muita atenção, além do que o desgraçado era carne de pescoço.
― Língua basca, mostra tua cara, língua basca, sai para dançar. É uma canção. Abuelito quase só fala assim... ― Minervita, a neta de 10 anos, tinha se esgueirado para dentro do quarto; não fitava o estranho nos olhos, como a ninguém aliás, agarrava-se a um pedaço descascado da parede do quarto. Certas texturas que lhe davam a sensação de segurança.
― Ah, não, assim não dá, até a monguinha pode entrar e sair desta merda a qualquer hora? Lupe, Lupe, me tira a chica daqui, porra! ― Xabier não entendia aqueles destroços de uma família: Lupe, mãe adotiva de Minerva, cuidava bem do pai entrevado, apesar dele nunca ter ligado a mínima para ela ou para o meio-irmão, Huáscar, transsexual que mantinha um salão de manicure na frente da casa de 3 cômodos naquele musseque nos arredores miseráveis da capital de Mirassoles.
― Escuta bem Esteban Urkiaga, não estou pra charlas, vim até aqui porque você nos deve OITO, apenas 8 números que estão aí, dentro dessa sua cabeça confusa. O partido necessita desse dinheiro para a campanha de reeleição da presidenta; trata-se de uma conta numerada na Suíça à qual só você e Luís Amiana tinham acesso. Já temos os códigos-fonte e os backups digitalizados do Banco de Custódia de Zurique, são mais de cem milhões de dólares que podem ficar enterrados lá, compreende? O problema é que Luisito morreu num acidente de barco, você sofreu um derrame e nós, nós estaremos fodidos e mal pagos se não conseguir se lembrar; PRECISAMOS desses números, companheiro ― qualquer um que acompanhasse minimamente a política de Mirassoles temeria encontrar-se com o Sombra, aliás, Xabier Lizardi, aliás, Johnny Abbes García, aliás, Joaquín Balaguer, aliás... ninguém sabia ao certo quem ele era, embora todos soubessem muito bem o que ele fazia. A “restauración democrática” de Mirassoles, uma genial invenção dos marqueteiros, permitiu aos governos de esquerda que sucederam a longa ditadura do Generalíssimo Benfeitor chegar a uma cômoda divisão: a polícia podia continuar torturando os pobres, enquanto os partidos mantinham tonton macoutes como Xabier em prontidão. Uns e outros só tinham de ser discretos, agora que vigorava uma relativa liberdade de imprensa.
― Lancei a âncora no entardecer, tovarisch, ponho o pé no outono... A memória tem sido a minha prisão, uma prisão irônica de todo modo... Sabe o que o meu filho Huáscar me ensinou?, que os esmaltes de unha são todos ruins a despeito de preço ou marca, o que acontece é que alguns são piores... o mesmo se dá com os destinos humanos, cuja diferença é uma ou outra cor mais rara. Meu pai nasceu no mesmo dia e ano da Revolução Russa, meus avós, fundadores do partido comunista basco, foram fuzilados pelas tropas franquistas durante a Guerra Civil; com a minha mãe já grávida de mim, meus pais se exilaram logo depois, quando Mirassoles acabara de banir o PC. Nasci e vou morrer na clandestinidade e, cúmulo dos cúmulos, pelas mãos de um cidadão inexistente!... Acredita-me Xabier, esse maldito acidente vascular cerebral não me jogou somente nesta cama, tirou de mim também a capacidade de calcular... não consigo me lembrar de um número que seja ― baixou os olhos e, mais lentamente, virou a cabeça de lado, só então o visitante notou que o quarto havia mergulhado numa sombra opaca.
― Esteban, você me julga mal, não sou seu anjo exterminador, quero apenas os números. Quando ainda estava no movimento estudantil comecei cobrindo seus “pontos”, lembra? Caí preso como você, agüentei choques e pau-de-arara por 3 dias sem “cantar”, quando abri o bico a meganha não podia pegar mais ninguém, assim salvei a operação em que estava a sua irmã mais nova. Isso você não pode ter esquecido. Companheiro, você sabe o que está em jogo: nossos adversários políticos não são a verdadeira esquerda, eles fugiram do país, foram dar aulas em universidades estrangeiras bancados pela CIA; não estão, nunca estiveram, do lado do proletariado, nunca quiseram libertar o povo! ― a pequena debilóide continuava ali, lambendo o estuque da parede; Xabier nutria um horror físico para com os “loucos”, motivo pelo qual não arrastava a menina dali pra fora a tapas. Onde andaria Lupe, perguntava-se.
― Ninguém liberta quem não quer ser libertado, Xabi, a ditadura militar em Mirassoles acabou por esgotamento senil, corrupção generalizada, corrosão da hierarquia... tal como na Itália do pós-guerra assumimos o poder fazendo acordos humilhantes com um leão desdentado, mudando tudo para manter tudo igual, substituiu-se a ditadura do proletariado pela da imagem, ganhamos eleições... e o que conseguimos?, fizemos um país de verdade?, ou somos ainda, como nos filmes de Hollywood, um refúgio de ladrões, terroristas, mafiosos, traficantes, nazistas e ex-ditadores? Com as rédeas do país na mão, já não assaltamos bancos, nos vendemos aos donos deles, não mais seqüestramos diplomatas e empresários, achacamo-los na hora de financiar eleições, deixamos de fundar jornais, preferimos comprá-los com propaganda oficial, não nos envolvemos mais com movimentos sociais e sindicatos, damos-lhes verbas para que se calem. Itzal, perdoe o desabafo deste náufrago... bem vejo que você imagina que lhe escondo algo, olhe em volta, repare a pobreza da minha família... Espere, há algo que pode ajudar... outro dia sonhei com uma palavra enorme, acho que tem a ver com a tal senha...
― Palavra?, não, nada disso; veja, nós recuperamos no notebook do Luisito uma parte da seqüência, são 3 letras: M, L e S, que conferem segundo o banco, mas ainda falta a parte numérica. Como já te disse, são 8 números apenas e o que achamos foi um código binário de 0s e 1s que não conseguimos decifrar. Veja, tá aqui no meu celular: 111001101000000010001101. Te diz alguma coisa, essa porra?!
― Yamátárájabhánasalagám. Foi essa a palavra que sonhei... anotei também, quer?
― Esquisito, vale, creio que andamos em círculos, mas... vou mandar para a equipe de criptoanálise da Casa da Caoba, quem sabe? ― levantou-se e começou a disparar telefonemas para a sua poderosa rede de contatos.
― É sânscrito, o abuelito... ― Minerva podia não compreender o que se passava naquele quarto, mas fazia a sua parte para entregar logo o que aquele homem odioso queria para que deixasse seu avô em paz.
― Ah, claro, e entendes também dessa língua de pagãos né, pirralha?... Alô, Quiñones, não esqueça de dizer que pode ser que a palavra esteja em sânscrito, ou seja lá que bosta de língua for, hem? OK, mas rápido, então, quero respostas! ― esperou em pé junto à janela que dava para um corredor que interligava as habitações da casa. Meia hora depois, a resposta: negativo, não era sânscrito nem nenhuma língua conhecida; a tal palavra não codificava nada. Sentou-se de novo de frente para o doente. ― Você não está me ajudando Esteban, se você não me ajuda como é que eu vou poder te ajudar?...
― Estou fazendo tudo que eu posso, juro... Hmm, compreendo a sua função, não o julgo... mas, e de que vai adiantar, Xabier, matar quem já está morto? ― naquele momento, ouviu-se a voz de Lupe vinda dos lados da cozinha. Olharam-se. O rosto do velho crispou-se, subitamente vincado pela dor; as palavras saíram-lhe trêmulas, arrancadas a custo num murmúrio lancinante: ― Não... não a maltrate muito, por favor... você tem experiência nessas coisas, vai ver logo que ela não sabe nada, vai ver que é um sofrimento inútil... so-só te peço uma coisa: acaba comigo antes, não quero ter que encará-la depois, sabendo... sa-sabendo que mais uma pessoa sofreu por minha causa...
***
Os capangas do Sombra fizeram uma razzia naquela noite: reviraram a casa toda, espancaram brutalmente Huáscar, não sem antes destruir todos os espelhos e equipamentos do salão dele, levaram Lupe prometendo devolvê-la em 3 dias. Pouparam apenas a aterrorizada Minerva ― nem precisaram, já que ela própria batia a cabeça contra a parede durante a operação. No entanto, era a única que poderia ter lhes dado o que buscavam. Dias mais tarde, quando Lupe voltou, ficou evidente que algo nela se desligara para sempre; Esteban Urkiaga já tinha sido enterrado, a casa estava mergulhada num silêncio só entrecortado pelo barulho das teclas do computador de Minervita; ela conversava pela internet com um dos seus amigos hackers no PC antigo que se salvara da destruição.
― Uau! 100 mijones de doletas $$$$!!! C/o q vc crackeou a senha?
― Meu vô tava estudando sistemas autovorazes, uroboros, a cobra que come o próprio rabo, yamátárájabhánasalagám não quer dizer nada, os hindus inventaram para mnemônica de ritmos, tripletos, o segredo é a acentuação, substitua silabas acentuadas por 1s e as outras por 0s e temos: 011101001, seqüência que codifica todos os triplos possíveis de batimentos curtos e longos, é só se deslocar uma casa p/ esquerda...
― Pesquei! 0 fica 011, 1 fica 111, 2 fica 110 e assim por diante... duca!
― Então ficou: M, L e S, são Marx, Lênin e Stálin, os heróis do meu avô, e os números são 17, revolução russa, 36, início da guerra civil, 64, revolução em Mirassoles e 73, o ano em que os pais do meu vô foram mortos pela ditadura do Generalíssimo na guerrilha rural.
― E o q vc vai fzr agra?
― Esperar. Quando fizer 18 vou até lá (escondeu que era na Suíça) e pego a grana.
3 comentários:
Muito bom e para não desmentir o velho Poe e outros sabios: as coisas mais dificeis de ver, são as que estão na nossa cara.
Fluência, estilo, contundência nas palavras, muito bom! Parabéns! Abraço forte a todos os calaboradores, em especial ao autor do texto.
tks leitores, o mais difícil é não conseguir se livrar dessas obsessões - bom, vamos contando as histórias que a gente pode.
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