Conta-se que o rei dos pássaros deixou cair no centro da China uma pluma
esplêndida. A radiância das suas cores irisadas atraiu cem mil pássaros dos
quatro cantos do mundo, eram tão numerosos que encobriam a lua e o peixe, as
nuvens e o sol. Sabiam que a fortaleza de seu rei estava no Káf, a montanha
circular que rodeia a Terra. Empreenderam a quase infinita aventura, superaram
sete vales, outros tantos mares; o nome do penúltimo era vertigem, o ultimo se
chamava aniquilação. Muitos peregrinos desertaram, alguns pereceram. Trinta
purificados pelos trabalhos chegaram à montanha real e pisaram a soleira do
palácio de cristal polido.
Enfim, contemplaram.
Aquele sobre o qual recai um encontro afortunado adquire imediatamente a
posse de cem segredos, o sentido misterioso das coisas. No mesmo instante,
aqueles bem-aventurados aprenderam a linguagem dos pássaros e foram cumulados
de todos os bens. Asseguram as tradições que tal ciência possibilita conhecer a
si mesmo, ao mundo e às criaturas na proporção que mantêm entre si, e também
com sua essência ou origem. Foram informados que deveriam instruir a humanidade
nesta língua tão antiga que mais parece canto, música, dança, e a sua expressão
mais pura: o número.
Estavam em êxtase quando o monarca retirou os noventa e nove véus do seu
rosto deslumbrante como o sol, produzindo incontáveis sombras sobre a terra.
Depois, lançando um olhar sobre cada uma dessas puras sombras, desprendeu-se
delas, deixando-as no mundo, e cada uma deu nascimento a um pássaro: poupa,
lavadeira, papagaio, falcão, codorna, pavão, faisão, rola, pomba, rouxinol,
pintassilgo, pato... Puderam compreender como as diferentes espécies de pássaros
que vivem no mundo não são mais que a sombra desta presença, descobriram assim que
se deve admirar com inteligência o mistério, mas divulgá-lo com mais sutileza
ainda.
A poupa, líder e guia dos viajantes, foi quem primeiro percebeu que não
há olho susceptível de admirar esta beleza, nem mente para compreendê-la, pois
ela não se deixa aproximar como às belezas temporais. Porém, tamanha é a
bondade do rei dos pássaros, que ele fez um espelho para refleti-la: o espelho
é o coração. E por isto o coração deve ser um espelho resplendente e profundo,
bastará olhar e ver aí sua imagem. E também por isto é que a linguagem dos
anjos é mais facilmente aprendida pelos bebês, os loucos, os amantes e os
poetas.
Então chegou a hora da poupa incumbir o papagaio da sua missão junto aos
homens e mulheres habitantes das cidades. O papagaio vestia um traje verde como
pistache e usava um colar de reluzente ouro em seu pescoço, comparado a seu fascínio,
o gavião não era mais que um mosquito, por toda a parte o manto verde das
florestas refletia o brilho de suas plumas.
― Ó poupa, os homens têm a alma vil e o coração de aço. Vão trancar-me
numa gaiola de ferro, amarrar-me a correntes, cortar minhas asas e serrar meu
bico. Tão gracioso sou, livre de suas perseguições!
― O cativeiro é duro com todos, principalmente com os espíritos
verdadeiramente livres, mas não te enganes: quem deve aprender é o mais forte.
Só poderás quebrar as cadeias do teu senhor quando ele estiver livre da
escravidão que te impôs.
― As cidades dos homens são como desertos para quem se acostumou com a
doçura dos frutos, a brandura da sombra das árvores, a felicidade de migrar em
bando junto aos seus irmãos.
― Busca, papagaio, a água da vida e não percas a alegria dos caminhos.
Põe-te em marcha, porque não terás a amêndoa, terás somente a casca. Age como o
amante, renuncia à tua alma para procurar o coração do amado.
― E como farei eu, triste e cativo, para derrubar os muros de almas tão
empedernidas que prendem os nascidos para voar e embelezar os céus?
― Repetirás as palavras que eles mesmos dizem, mas das quais são incapazes
de escutar o verdadeiro sentido. Considera o todo, busca o todo, escolhe o
todo, vê o todo.