sábado, 27 de novembro de 2010

o marinheiro mareado

admiro o fluxo dos pássaros
os passos pelo nada
a seta pulsante
que são

nenhuma selva é melhor que a outra
para quem está perdido
e se o bico quebra
a vidraça é porque apesar de tudo
a fala é de todos
informe

vestíamos as crianças de marinheiro
acabavam de desembarcar neste mundo
mais louco
que o Fabuloso Destino do Chapeleiro
Louco

ontem hoje amanhã há tiros
fogo balas traçantes lares
invadidos
uma coisa leva a outra que leva a outra
mas acaba sempre
aqui

há o tempo indeciso
do inacabado
da dúvida
o corpo se equilibra entre
a reflexão e o relato

o lado belo da vida
é o que só está lá
como possibilidade
questionando
tudo ao seu redor

entretanto isto aparece coberto
por imagens que querem ser
poesia
com seus jogos de aproximação desdobramentos
rítmicos

pesando como um túmulo
irradiando morte para todos
os cantos
é como se nada se completasse
nem houvesse compaixão

apenas um rio a correr

Berço


Sou o suor
liquido vivo
escorrendo pelo chão,
pelas frestas
misturado a terra

Sou o barro
o berço da semente
inchada, rompida

Sou a pequena grama
planta atrevida
procurando caminho
estirada
sentindo a brisa
e um pouco de sol
fincada no chão

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

a umidade das formas


o cosmo só existe
enquanto existo eu
e no entanto passa
muito
além do que a mente
creu

incrível não é que haja
a beleza
mas que algumas teorias
funcionem

assombroso não é haver
o mundo
mas acreditar
nele

ser humano é nunca estar
por inteiro faltar
à grande orgia
do ser

homens mulheres e outros gêneros continuam a chafurdar
nos mesmos batidos boleros
de amor ódio sexo
e morte

a vida é arte
a arte
sorte

a arte está na terra
molhada e as sensações que a própria terra
tem por estar
molhada

já sou só uma pena
voando
a vida imita a arte
sorte a dela assim
está viva

domingo, 21 de novembro de 2010

Livro dos Recordes Sexuais: a mulher mais satisfeita do mundo


Uma mulher pode ser bem sucedida na profissão, ser esclarecida politicamente, bonita, mau caráter, inteligente, fofoqueira, gostosa, magra, rica, pegadora de namorado alheio, etc., tudo isso, junto ou em combinações, lhe será perdoado, agora, experimente ela ser bem-comida e perderá todas as amizades que tiver ou supor ter. Nem as amigas mais zen, os amigos mais terapeutizados, agüentariam; a verdade é que ninguém perdoa a mulher plenamente realizada na cama. Aquele sorrisinho maroto no canto dos lábios a afrontar colegas de trabalho, digamos, numa segunda-feira de manhã ― suportar quem há de?

― Quando vou ter filhos?! Querida, minha idéia de sacanagem na madrugada não envolve mamadeira nem fralda, a não ser em dias de perversões mais bizarras... ― pela reação da amiga, percebeu que abrira demais a boca. Afinal, quem, no elegante escritório de arquitetura e design, poderia supor que fosse sexualmente feliz, ainda mais depois de nove anos de casamento com um jornalista cultural? A coisa toda começara há dois anos por culpa justamente dele, o marido, Talarico Berdinesque.

Críticos têm, como outras populações corporativas, uma distribuição em curva de sino no tocante à luxúria: vinte por cento de heteros ou homos de raiz, praticantes e apreciadores empedernidos dos jogos venéreos, e aqueles oitenta por cento de eternos indecisos que não sabem que apito tocam, não desocupam a moita, não saem de cima e só sabem foder mas é com a paciência dos outros. Talarico fazia parte desta maioria cinzenta, embora se destacasse como um proativo lambe-cu do dono do jornal onde trabalhava há vinte e um anos.

― Fia, seu Orixá pede uma obrigação ― dois anéis cinzentos cingiam os olhos de Mãe Catarina, olhos que não desgrudaram da tatuagem de um sol na mão direita dela enquanto mergulhava as suas numa cumbuca com água corrente, infusão de folhas de maçacá, corana branca e mel de abelha.

O que talvez seja mais certo dizer é que houve uma série de equívocos que começaram depois que, vencendo o receio de se deslocar sozinha noite adentro para o bairro distante do terreiro, resolveu que precisava apelar para todos os santos à disposição. De saída, antes que pudesse se explicar, a Ialorixá encasquetou que o problema era o chamego, a escassez de nheco-nheco, ao passo que ela queria mesmo era desamarrar as dívidas financeiras do casal. ― Ora ê ê, Oxum, Ora iê, iê! ― a mãe de santo puxou para si a urupemba de palha trançada com os dezesseis búzios por meio dos quais as poderosas entidades afroamericanas iam mandar sua mensagem.

As impressões do ritual voltaram-lhe em sonhos por meses: a galinha amarela, o pinto preto, a cabra e o cabritinho brancos, o cheiro do sangue mesclado ao do bolo de feijão com rodelas de ovo e cebola picada com malagueta, cebolinha e sal; o aroma acanelado do doce de banana prata, os pontos cantados, a gira, o baticum, os colares, brincos e pulseiras, as flores, o fumo, os incensos de perfumes cambiantes... Os sacrifícios da oferenda tinham sido pagos em dinheiro para as Iabás, a terrível “mão de faca” que mata os bichos, o “cargueiro”, que retirou o Ebó; mas restava um problema: o despacho precisava ser levado por mão de homem a uma queda d’água no meio da mata na lua crescente. A custo de muita teima e beicinho, Talarico aceitou fazer a entrega no sítio da família.

Preparou o banho de madrugadinha em casa, fez um café-tinta de forte para o marido, que ia pegar estrada, e trouxe as ervas trituradas para o box do banheiro: malva branca, vassourinha miúda, medalha, bem-me-quer, rosa amarela, baronesa e botão de ouro. Tirou a roupa puxando pelo avesso e largou-a no chão; depois de se lavar com sabonete, juntou os pés e levantou os braços, cantando para a sua santa de cabeça à medida que despejava a vasilha inteira sobre si. Naquele mesmo instante, o marido desistia da viagem a desoras e decidiu largar as tralhas numa esquina qualquer. Não estava para programa de índio, os deuses que achassem o que lhes era devido; que diferença faria o lugar da desova?

Não é improvável que um erro conserte outro, porém, o mais das vezes só faz piorar o que já era ruim. Parou o carro, retirou do bagageiro a tigela, apanhou as velas e dirigiu-se para a encruzilhada em forma de T; temendo ser reconhecido, incomodou-se com a presença de gente nas imediações (exagerava um pouco a fama que tinha), mas foi só acender a primeira vela que a moçada picou a mula rapidinho. Acontece que o Senhor das Encruzilhadas, assim como não curia bebida que passarinho não bebe, não fica sem entregar nada a quem de direito; Exu levou para a Senhora das Cachoeiras o que lhe era devido e esta achou de castigar o Talarico pela ofensa.

Foi o maior susto da vida dela: o homem que voltou para casa naquele dia não se parecia com o marido, melhor dizendo, falava como ele, comportava-se como ele, mas não era a mesma pessoa! Daí pra frente, toda a noite um outro chegava em casa; ninguém mais percebia isso, os porteiros do prédio, os amigos, os colegas de trabalho, ninguém notava ― só ela podia ver que recebia em sua cama um homem diferente todas as noites. Experimentou marcar um jantar com o chefe dele em casa, só para se admirar com a absoluta normalidade com que todos se comportaram apesar de estar ali um homem negro com o físico de um guarda-costas em vez da sua habitual cara-metade.

O Talarico, em si, não mudou nada, de tudo que se passava inconsciente, continuava igual a si próprio: uma pitada de Todorov, um cheirinho de De Man, duas mãos cheias de Barthes e Benjamin; no mais, o mesmo: seguia mantendo uma relação mal resolvida com a santíssima trindade francesa, Derrida, Lévinas e Foucault, e, no fundo, tal como o patrão, abraçava as idéias de Harold Bloom rechaçando tudo que destoasse do cânone clacissizante. Já na parte da cama, quanta diferença, quanta fartura em diversidade e diversão! O esposo-corno-de-si-mesmo acabou por confessar a falseta e Mãe Catarina pôde lhe explicar que o feitiço não seria desfeito senão ao cabo de sete anos; mas que ficasse sossegada porque os Orixás atuam sobre o plano material e não no plano espiritual, ele voltaria ao mesmo leite-azedo de sempre. Mais cinco anos ainda lhe restavam e ela tratou foi de aproveitar.

Conheceu muitos corpos desde então, descobria anatomias inéditas, comparava pernas, peles, torsos e quadris, jeitos de se mover e se comportar no fogo da carne e no depois do repouso; em cada um desses desconhecidos havia sempre um segredo, que ora se revelava, ora se furtava a ela, havia transas carnudas, úmidas, baixarias indescritíveis, tempestades lamacentas, sexos molhados, tristes ou febris, homens magoados, eufóricos, mortificados, preguiçosos, espontâneos, sem destino, violentos, transparentes ou compactos, uns cheiravam a perfumes e outros a sal, alguns suculentos como um fruto, outros livres como animais selvagens, por vezes difíceis, intensos, transtornados, necessitados, alvoroçados, esquecidos, esfomeados, meigos, suaves, raivosos, lúbricos, frios ou arrependidos; em muitos admirou o prodigioso calor, noutros a coragem, a vaidade, a astúcia, alguns a abordaram com esquivas e cautela, ou tranqüilos como a baía escondida de uma ilha, a outros, desbravou com a fúria das conquistadoras, tantos os que a calcinaram com a secura dos desertos; muitos deitaram-se ao seu lado para dormir, menos foram os que a comeram com um “C” bem grandão, com uns fez amor, mas a maior parte a fodia com “f”, de furreca mesmo; houve quem adivinhasse seus desejos e a possuísse com genuína comoção, mas houve também os distraídos, os prudentes como cobras, os de bocas famintas, (apareceram até mesmo dois transsexuais, um urso, um bebê do tamanho de um adulto e uma mulher!), corpos em desordem que buscavam nela ainda mais desordem, enfim, cada noite lhe trazia um arrepio novo, a perspectiva do assombro e da novidade. Mas não se pode dizer que o traía, a não ser uma vez, em que ele mesmo a levou a uma casa de swing. Numa sala semi-escura da boate Babilônia, amarrada a um estrado giratório, foi comida por doze desconhecidos; Talarico observava calado, à distância.

sábado, 13 de novembro de 2010

ô disse eu

o fato é que estou cada vez mais desatento
cada vez mais bipolar
mais hipertenso
menos

conectado

a verdade é que não acredito
mais
na verdade
(desacreditei até do beijo francês)

não acredito mais em jornais
promessas de deuses
longínquos
ou vizinhos

só continuo vivo por esquecimento
acomodação
e uma praticidade mesquinha que me leva
a fazer sempre as mesmas
poesias

ao mesmo tempo em que acredito em tudo
(TUDO pode acontecer)
nada me apavora
mais

o fato é que não inventei a novidade
do milênio
permaneci quieto e resignado enquanto meu país
deixa
que homens e mulheres escrevam de uma maneira perfeitamente
controlada

as minhas palavras não funcionam
não são antenas da raça nem
antecipam
futuras gerações ou desenvolvimentos sociais
e técnicos

falta uma espécie de energia aquela
que sobra nesta época
desabrocham as gardênias
acres damas-da-noite
atenuadas pelas magnólias manjericos
e jasmins
__________________________________________
foto: Célia Mello (www.fotografiacontemporanea.com.br)

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Zoadinha e o Iluminado


Zoadinha. E dizer que ela descobriu o apelido que a homarada da vizinhança lhe pregara pelas costas só depois que foi trabalhar na casa do velho. A tia que pagava a faculdade do irmão falecera e os herdeiros em guerra cortaram logo o bolsa-escola da solteirona benemerente, de modos que resolveu pegar o turno da noite no home care do ricaço para completar as despesas. Casa de remediado, cai um copo, racha um prato.

― Zoadinha... mas gostosa. A coda do apelido os garanhões de subúrbio, evidentemente, não disseminaram... ― o velho era de falar tudo na bucha, ela, zero burra, devolvia jabs com cruzados, respondia ganchos com diretos. Entenderam-se desde o primeiro encontro.

Saía do trabalho às sete, chegava, dava um talento na casa, deixava a janta pronta e tomava uma ducha rápida antes de sair para a terceira jornada, das nove às seis. De dia era atendente na farmácia do bairro, a falsa magra do balcão; os marmanjos se revezavam em levar-lhe uma cesta provida de camisinhas, ky e comprimidos de levanta-pau só para vê-la no caixa, corando como pimentão enquanto fazia a soma, embalava e indicava os produtos na promoção.

― Faz um desconto do bom, porque ainda vou gastar no rolê com a mina. Mulher e carro, já viu, precisa de dinheiro e gasolina ― disse um.

― Esta casa parece uma caixa com paredes feitas de livros; muitos deles, você que escreveu. Pra quê? ― não era feia, o que é, é que, à primeira vista, o projeto geral parecia meio escangalhado; sobretudo as feições eram esparsas, distribuídas por um crânio alongado demais em que o osso extenso do nariz vinha até embaixo, alargando pouco ao aproximar-se dos lábios generosos. As pupilas, tinha-as fugidias e negras, aqueles olhos quirguizes de caboclo meio puxado a índio, o que os cabelos longos e escuros confirmavam, mas a pele desmentia com uma brancura sardenta e sujeita à ruborização constante.

― Qual deles você gosta mais Zoadinha?... Ah, muito perspicaz, é o meu preferido também; ganhei prêmios com ele ― acabara de completar noventa anos; era de estatura média, não fosse pelo cabeção desproporcional emoldurado por grossas sobrancelhas, nada haveria nele que fosse fisicamente incomum, nem mesmo a magreza que a idade acentuara. Viúvo, seis filhos e cinco netos; ficou morando sozinho no casarão ilhado pela deterioração do bairro. Por causa dos joelhos, não conseguia mais se levantar de cama ou cadeira sem ajuda; um pequeno exército de cuidadores orbitava em torno dele 24 horas por dia. Era considerado um gênio vivo.

O que nela também não colaborava era um começo de giba, conseqüência postural da timidez, que dava a impressão de encurtar o tronco, além de conferir um jeito de cambitinhos arqueados às pernas, além de empurrar para dentro uma bunda que mereceria o destaque da lordose. O velho catucava, chamava-a na chincha, por que acreditava ela ser dedo-podre no amor? ― Aos vinte e sete anos parece cedo, ok, comparada ao senhor sei que não é nada, mas já desisti. Sou que nem curva de rio, só pára tranqueira ― firmes e empinados peitinhos, somados à auto-ironia sarcástica derretiam o ancião.

― “Teomaquia, a luta contra o Deus do mundo e os deuses interiores”... É verdade que teve uma... visão? ― habitualmente iam até meia noite na prosa, raramente tinha trabalho de madrugada, embora às vezes ele se cagasse todo e aí era uma trabalheira dos diabos dar-lhe banho e trocar a roupa de cama. Fora que o coitado ficava pra lá de desconsolado no dia seguinte. O descompasso, cada vez mais acentuado, entre o corpo e a mente acabrunhava-o, sentia-se traído pelo arcabouço em desintegração enquanto o espírito permanecia cruelmente lúcido.

― Senti o Deus que há dentro e fora de nós, fui do visível ao invisível, pulei da realidade subatômica, em que a noção de distância deixa de fazer sentido, aos confins do espaço, onde começa o umbigo do universo que contém este universo, e assim ao infinito; Zoadinha, conheci o sustentáculo do cosmos, a ligação de todas as coisas, o entrelaçamento do humano e da natureza, atingi a mais perfeita beatitude e o mais fundo desespero, onde o místico ultrapassa as aparências e encontra a verdade última, a unidade original em que Deus coincide com a realidade.

― Então foi assim que conseguiu criar a sua maçonaria? Ouvi dizer que só tem granfo lá... Agora, por que é que seus filhos não deixam o senhor aparecer?...

― Ser velho é virar papel higiênico: ou se está enrolado, ou cheio de merda. Por isso meus filhos me afastaram do dia-a-dia do meu instituto, como sustentar a figura de um fundador mítico, apresentando um homem que não anda nem limpa mais o cu sozinho?

― Só não entendo como o criador de uma seita pode falar nos seus livros que é preciso combater o Deus que existe em nós... o senhor é ateu?

― Não sou, nunca fui, religioso e nem fundei cabala nenhuma, sem embargo, não vejo como poderíamos nos livrar Dele, ao menos não definitivamente. Veja, durante a minha epifania não tive apenas um lampejo do que é o universo, mas também enxerguei como as coisas realmente funcionam neste mundo. Daí que passei a vender o único artigo de fé do homem moderno: eficiência.

― Fugiu da minha pergunta, para variar, vamos mudar um pouco, vou lhe ler o que escreveu: “assim como nos chegou, o relato da Criação é uma história mal contada, e toda história mal contada acaba por revelar muito mais do que gostaria”.

― Claro, olhe, quando duas criaturas se encontram, é quase impossível que a mais forte não devore, abuse ou explore a mais fraca. Vale entre animais, vale entre os humanos e Deus; não digo que Ele exista lá fora, no espaço sideral, acontece que, a partir do momento que a linguagem entra em nós, a violência se consuma. A ordem simbólica só entra no corpo causando grandes estragos; Geová, o grande verme, o grande Outro que me habita e me descentra de mim mesmo.

― É arrepiante, o senhor diz que a Bíblia é a história de um estupro. Quer dizer então que nós dois aqui só nos respeitamos porque um não tem mais força que o outro?

― Pode apostar nisso. Leia o Bereshit com muita atenção, Javé cria animais selvagens e domésticos em pares de macho e fêmea e lhes manda frutificar e multiplicar; mas eis que faz exceção ao bicho criado à Sua imagem e semelhança quando leva seu rebanho para o Jardim do Éden, qual o motivo?, esquecimento, distração, lhe garanto que não foi...

― Só que vai uma grande distância afirmar que houve um abuso sexual no Paraíso!

― Um não, dois. Eva também entrou na dança. Atente para o fato de que o pecado original nada ter a ver com sexo, mas sim com o conhecimento; está lá, em Gênesis 3:21, “Eis que o homem se tornou como um e nós, conhecedor do bem e do mal.” Percebeu o “nós”? Deslize de tradução, interpolação tardia? Nada disso, Elohim sabe que não é o único tigre de papel no país das idéias platônicas. Ele cansara das vítimas, mas não do jogo; acompanhe a descendência de Adão e Eva, por que recusa Ele as oferendas do lavrador Caim, mas aceita as do pastor Abel?

― Eu li isso, é outro dos seus absurdos: Caim seria filho de Deus, Abel, de Adão... Já sei o que vai dizer, que Eva afirma ter possuído “um homem com a ajuda do Senhor”, antes de Caim nascer e que isto se repete com Maria e o Cristo, abandonado na cruz... loucura!...

― Chamo-lhe a atenção para a simbologia: árvore, escada e cruz; a árvore do centro do Éden, a escada do sonho de Jacó e a cruz onde morre o Cristo são arquétipos da ligação do mundo sublunar com o supra-sensível, mas também embutem o conflito primordial com a divindade, exemplarmente ilustrado pela luta de Jacó com o anjo.

― Sendo assim, o senhor está dizendo que Deus não é amor...

― Digo que não é só amor, porque há mais que isso em quem o conjurou. Zoadinha, pára de me chamar de senhor...

― Então, senhor, pare de me chamar de Zoadinha!

Alertada por um telefonema anônimo, Rosana, a filha que visitava o velho mais amiudadamente, descobriu que todo um tráfico se estabelecera no seio do improvável casal. Zoadinha vinha contrabandeando umas pilulinhas mágicas para espevitar o sábio geronte, peças íntimas dela foram encontradas nas gavetas do escritório onde se trancavam até altas horas. Demitiu-a sumariamente.

Uma equipe de médicos, incluindo geriatra, ortopedista, gastro e reumatologista, não chegaram a um acordo sobre o fenômeno: o velho passou a gemer dia e noite, a multiplicar queixas de dores por todo lado. Dava dó de ver.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Rrose Sélavy


Rrose Sélavy

quando Katherine Dreier pediu a Duchamp
que produzisse um objeto para a irmã
ele lhe entregou uma gaiola contendo
cubos de açúcar
um termômetro
mármore
e um osso de ave marinha, dizendo
Por que não espirrar?

nada permanece
na alma
nem mesmo a exaustão
o vazio

então, por que não fazer qualquer coisa?
como espirrar
irritação que cresce borbulhando
cócegas
e acaba numa explosão climática
e úmida

eu que vivi sem pátria
eira ou beira
ao ócio do sonho
entregue

que vivi somente ao sol
de Espanha
condenado a ser todas as coisas
e as sombras que elas sonegam
ser a sombra das tuas coxas e da tua boca
valvulada

as panturrilhas e a curva macia dos cotovelos
erguer o ventre não é nada fácil
ainda mais depois de espirrar
depois de descobrir que o mundo é uma fachada
onde se movem enganosos autômatos

eu que vivi em todos os lugares
e fui todas as pessoas
a rota de todos os navios perdidos
percorri o éter de planeta em planeta desfolhando
a intocada flor do futuro

na casa da poesia procuro
andar na ponta
dos pés

temo despertá-la
acordar seu tamanho
imenso

ao menos aprendi
EROS É A VIDA